Rifa - Clarice Lispector
Rifa-se um coração quase novo. Um
coração idealista. Um coração como poucos. Um coração à moda antiga. Um coração
moleque que insiste em pregar peças no seu usuário. Rifa-se um coração que na
realidade está um pouco usado, meio calejado, muito machucado e que teima em
alimentar sonhos, e cultivar ilusões. Um pouco inconseqüente que nunca desiste
de acreditar nas pessoas. Um leviano e precipitado, coração que acha que Tim
Maia estava certo quando escreveu... "não quero dinheiro, eu quero amor
sincero, é isso que eu espero...". Um idealista... Um verdadeiro
sonhador... Rifa-se um coração que nunca aprende. Que não endurece, e mantém sempre
viva a esperança de ser feliz, sendo simples e natural. Um coração insensato
que comanda o racional sendo louco o suficiente para se apaixonar. Um furioso
suicida que vive procurando relações e emoções verdadeiras. Rifa-se um coração
que insiste em cometer sempre os mesmos erros. Esse coração que erra, briga, se
expõe. Perde o juízo por completo em nome de causas e paixões. Sai do sério e,
às vezes revê suas posições arrependido de palavras e gestos. Este coração
tantas vezes incompreendido. Tantas vezes provocado. Tantas vezes impulsivo.
Rifa-se este desequilibrado emocional que, abre sorrisos tão largos que quase
dá pra engolir as orelhas, mas que também arranca lágrimas e faz murchar o
rosto. Um coração para ser alugado, ou mesmo utilizado por quem gosta de emoções
fortes. Um órgão abestado indicado apenas para quem quer viver intensamente e,
contra indicado para os que apenas pretendem passar pela vida matando o tempo,
defendendo-se das emoções. Rifa-se um coração tão inocente que se mostra sem
armaduras e deixa louco o seu usuário. Um coração que quando parar de bater
ouvirá o seu usuário dizer para São Pedro na hora da prestação de contas:
" O Senhor poder conferir", eu fiz tudo certo, só errei quando
coloquei sentimento. Só fiz bobagens e me dei mal quando ouvi este louco
coração de criança que insiste em não endurecer e, se recusa a
envelhecer". Rifa-se um coração, ou mesmo troca-se por outro que tenha um
pouco mais de juízo. Um órgão mais fiel ao seu usuário. Um amigo do peito que
não maltrate tanto o ser que o abriga. Um coração que não seja tão
inconseqüente. Rifa-se um coração cego, surdo e mudo, mas que incomoda um
bocado. Um verdadeiro caçador de aventuras que, ainda não foi adotado,
provavelmente, por se recusar a cultivar ares selvagens ou racionais, por não
querer perder o estilo. Oferece-se um coração vadio, sem raça, sem pedigree. Um
simples coração humano. Um impulsivo membro de comportamento até meio
ultrapassado. Um modelo cheio de defeitos que, mesmo estando fora do mercado,
faz questão de não se modernizar, mas vez por outra, constrange o corpo que o
domina. Um velho coração que convence seu usuário a publicar seus segredos e, a
ter a petulância de se aventurar como poeta.
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