RESSURREIÇÃO
Machado de Assis
Ressurreição é o
primeiro romance publicado por Machado de Assis, em 1872. Durante a vida do
autor, saiu mais uma edição, em 1905, também pela casa editora Garnier.
Para cada uma dessas edições, o autor escreveu uma
"Advertência": na primeira, que assina (M. A.) e data de 17 de abril
de 1872, explica o propósito do livro e, recorrendo a Shakespeare, que traduz
em nota de rodapé, declara que vai escrever um livro sobre a questão da dúvida;
na segunda, que assina (M. de A.) e não data, a advertência é bem mais curta e,
ao reproduzir a "Advertência da 1a. Edição", já não fornece a
tradução que constava na publicação de 1872.
Agora autor consagrado, Machado reflete sobre o seu romance de estreia e
declara que não "lhe alter[a] a composição nem o estilo", apenas
troca alguns vocábulos e faz pequenas correções de ortografia. No entanto, pode
o leitor atento perceber a ausência, na segunda edição, da tradução dos versos
de Shakespeare, como se o autor maduro se eximisse da tarefa de traduzir, e,
por esse expediente, elevasse a si mesmo e ao seu público-leitor, que pressupõe
apto a dispensar a versão para o português da passagem shakespeariana. Ganha em
sutileza, dá mais trabalho ao leitor, cuja recepção continua manipulando, mas
de maneira mais sorrateira.
Sem investigar em profundidade as possíveis outras motivações da
ausência da tradução na edição de 1905, deixamos ao leitor de 2008 uma
provocação, um convite a pensar sobre essa obra que, pertencendo à
"primeira fase" - como ele próprio assinala na abertura da segunda
edição - guarda mais mistérios do que se poderia pensar à primeira vista.
Para estabelecer o texto da presente edição eletrônica, utilizamos como
fonte a edição Garnier / Fundação Casa de Rui Barbosa de 1988, preparada por
José Galante de Sousa, que se baseou na segunda edição da obra (1905), a última
em vida do escritor e, portanto, autorizada por ele. Para solucionar eventuais
dúvidas, recorremos diretamente a exemplares da primeira e da segunda edições,
existentes na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa.
Foi feita uma atualização ortográfica, mas mantivemos formas que, embora
em desuso atualmente, ainda são consignadas pelos principais dicionários de
língua portuguesa ("cousa", "cômplice"
"cepticismo"). Em nome da preservação do que se poderia chamar de
"atmosfera textual", conservamos na língua de origem palavras
estrangeiras como "tilbury" e "champagne", apesar de já
existirem consignadas em dicionários atuais na forma aportuguesada
("tílburi", "champanhe"). Do mesmo modo, deixamos as duas
formas "noute" (uma ocorrência) e "noite" (mais de trinta),
por supor que, na fala em que se encontra a forma antiga ("noute"), é
possível que Machado de Assis a tenha empregado deliberadamente, como um traço
do registro um tanto artificial da personagem que a emprega.
Talvez o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século
XIX seja o da pontuação. Ao preparar esta edição, optamos por uma política a
meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas
presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis. Para
citar um exemplo apenas: mantivemos todas as vírgulas antes da aditiva
"e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração
anterior ("Félix deu uma volta pelo interior da casa, e foi até à sala
[...]"). Assim deliberamos por identificar no procedimento um traço
estilístico recorrente no romance. Por outro lado, nos casos em que
consideramos que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor
entendimento do texto, não hesitamos em intervir, como ocorreu no caso de
vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que suprimimos) e de falta
de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que inserimos). Num caso
apenas, deixamos a vírgula separando o sujeito de seu verbo ("O que está
feito, está feito."), por considerar que a pontuação procura reproduzir,
na fala da personagem, a pausa própria da oralidade.
Esta não pretende ser uma edição crítica, nela não há notas editoriais.
Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que,
através doshiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de
fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo
de referências de Machado de Assis.
Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila
Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na
revisão, a de Ana Maria Vasconcelos e Karen Nascimento, bolsistas de Iniciação
Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a
visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática
da Fundação Casa de Rui Barbosa.
Marta de Senna, pesquisadora
Marcelo da Rocha Lima Diego, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ
agosto de 2008
Revisto em fevereiro de 2011.
Marcelo da Rocha Lima Diego, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ
agosto de 2008
Revisto em fevereiro de 2011.
ADVERTÊNCIA DA NOVA EDIÇÃO
Este foi o meu primeiro romance, escrito aí vão muitos anos. Dado em
nova edição, não lhe altero a composição nem o estilo, apenas troco dous ou
três vocábulos, e faço tais ou quais correções de ortografia. Como outros que
vieram depois, e alguns contos e novelas de então, pertence à primeira fase da
minha vida literária.
M. de A.
1905
1905
ADVERTÊNCIA DA PRIMEIRA EDIÇÃO
Não sei o que deva pensar deste livro; ignoro sobretudo o que pensará
dele o leitor. A benevolência com que foi recebido um volume de
contos e novelas, que há dous anos publiquei, me animou a
escrevê-lo. É um ensaio. Vai despretensiosamente às mãos da crítica e do
público, que o tratarão com a justiça que merecer.
A crítica desconfia sempre da modéstia dos prólogos, e tem razão.
Geralmente são arrebiques de dama elegante, que se vê ou se crê bonita, e quer
assim realçar as graças naturais. Eu fujo e benzo-me três vezes quando encaro
alguns desses prefácios contritos e singelos, que trazem os olhos no pó da sua
humildade, e o coração nos píncaros da sua ambição. Quem só lhes vê os olhos, e
lhes diz verdade que amargue, arrisca-se a descair no conceito do autor, sem
embargo da humildade que ele mesmo confessou, e da justiça que pediu.
Ora pois, eu atrevo-me a dizer à boa e sisuda crítica que este prólogo
não se parece com esses prólogos. Venho apresentar-lhe um ensaio em gênero novo
para mim, e desejo saber se alguma qualidade me chama para ele, ou se todas me
faltam - em cujo caso, como em outro campo já tenho trabalhado com alguma
aprovação, a ele volverei cuidados e esforços. O que eu peço à crítica vem a
ser - intenção benévola, mas expressão franca e justa. Aplausos, quando os não
fundamenta o mérito, afagam certamente o espírito, e dão algum verniz de
celebridade; mas quem tem vontade de aprender e quer fazer alguma cousa,
prefere a lição que melhora ao ruído que lisonjeia.
No extremo verdor dos anos presumimos muito de nós, e nada ou quase
nada, nos parece escabroso ou impossível. Mas o tempo, que é bom mestre, vem
diminuir tamanha confiança, deixando-nos apenas a que é indispensável a todo o
homem, e dissipando a outra, a confiança pérfida e cega. Com o tempo, adquire a
reflexão o seu império, e eu incluo no tempo a condição do estudo, sem o qual o
espírito fica em perpétua infância.
Dá-se então o contrário do que era dantes. Quanto mais versamos os
modelos, penetramos as leis do gosto e da arte, compreendemos a extensão da
responsabilidade, tanto mais se nos acanham as mãos e o espírito, posto que
isso mesmo nos esperte a ambição, não já presunçosa, senão refletida. Esta não
é talvez a lei dos gênios, a quem a natureza deu o poder quase inconsciente das
supremas audácias; mas é, penso eu, a lei das aptidões médias, a regra geral
das inteligências mínimas.
Eu cheguei já a esse tempo. Grato às afáveis palavras com que juízes
benévolos me têm animado, nem por isso deixo de hesitar, e muito. Cada dia que
passa me faz conhecer melhor o agro destas tarefas literárias - nobres e
consoladoras, é certo, mas difíceis quando as perfaz a consciência.
Minha ideia ao escrever este livro foi pôr em ação aquele pensamento de Shakespeare:
Não quis fazer romance de costumes; tentei o esboço de uma situação e o
contraste de dous caracteres; com esses simples elementos busquei o interesse
do livro. A crítica decidirá se a obra corresponde ao intuito, e sobretudo se o
operário tem jeito para ela.
É o que lhe peço com o coração nas mãos.
M.A.
17 de abril de 1872
17 de abril de 1872
I
NO DIA DE ANO-BOM
Naquele dia - já lá vão dez anos! - o Dr. Félix levantou-se tarde, abriu
a janela e cumprimentou o sol. O dia estava esplêndido; uma fresca bafagem do
mar vinha quebrar um pouco os ardores do estio; algumas raras nuvenzinhas
brancas, finas e transparentes, se destacavam no azul do céu. Chilreavam na
chácara vizinha à casa do doutor algumas aves afeitas à vida semiurbana,
semissilvestre que lhes pode oferecer uma chácara nas Laranjeiras.
Parecia que toda a natureza colaborava na inauguração do ano. Aqueles para quem
a idade já desfez o viço dos primeiros tempos não se terão esquecido do fervor
com que esse dia é saudado na meninice e na adolescência. Tudo nos parece
melhor e mais belo - fruto da nossa ilusão - e, alegres com vermos o ano que
desponta, não reparamos que ele é também um passo para a morte.
Teria esta última ideia entrado no espírito de Félix, ao contemplar a
magnificência do céu e os esplendores da luz? Certo é que uma nuvem ligeira
pareceu toldar-lhe a fronte. Félix embebeu os olhos no horizonte e ficou largo
tempo imóvel e absorto, como se interrogasse o futuro ou revolvesse o passado.
Depois, fez um gesto de tédio, e parecendo envergonhado de se ter entregue à
contemplação interior de alguma quimera, desceu rapidamente à prosa, acendeu um
charuto, e esperou tranquilamente a hora do almoço.
Félix entrava então nos seus trinta e seis anos, idade em que muitos já
são pais de família, e alguns, homens de Estado. Aquele era apenas um rapaz
vadio e desambicioso. A sua vida tinha sido uma singular mistura de elegia e
melodrama; passara os primeiros anos da mocidade a suspirar por cousas
fugitivas, e na ocasião em que parecia esquecido de Deus e dos homens, caiu-lhe
nas mãos uma inesperada herança, que o levantou da pobreza. Só a Providência possui
o segredo de não aborrecer com esses lances tão estafados no teatro.
Félix conhecera o trabalho no tempo em que precisava dele para viver;
mas desde que alcançou os meios de não pensar no dia seguinte, entregou-se
corpo e alma à serenidade do repouso. Mas entenda-se que não era esse repouso
aquela existência apática e vegetativa dos ânimos indolentes; era, se assim me
posso exprimir, um repouso ativo, composto de toda a espécie de ocupações
elegantes e intelectuais que um homem na posição dele podia ter.
Não direi que fosse bonito, na significação mais ampla da palavra; mas tinha
as feições corretas, a presença simpática, e reunia à graça natural a apurada
elegância com que vestia. A cor do rosto era um tanto pálida, a pele lisa e
fina. A fisionomia era plácida e indiferente, mal-alumiada por um olhar de
ordinário frio, e não poucas vezes morto.
Do seu caráter e espírito melhor se conhecerá lendo estas páginas, e
acompanhando o herói por entre as peripécias da singelíssima ação que empreendo
narrar. Não se trata aqui de um caráter inteiriço, nem de um espírito lógico e
igual a si mesmo; trata-se de um homem complexo, incoerente e caprichoso, em
quem se reuniam opostos elementos, qualidades exclusivas, e defeitos
inconciliáveis.
Duas faces tinha o seu espírito, e conquanto formassem um só rosto, eram
todavia diversas entre si, uma natural e espontânea, outra calculada e
sistemática. Ambas porém se mesclavam de modo que era difícil discriminá-las e
defini-las. Naquele homem feito de sinceridade e afetação tudo se confundia e
baralhava. Um jornalista do tempo, seu amigo, costumava compará-lo ao escudo de
Aquiles mescla de estanho e ouro, "muito menos
sólido", acrescentava ele. Aquele dia, aurora do ano, escolhera-o o nosso
herói para ocaso de seus velhos amores. Não eram velhos; tinham apenas seis
meses de idade. E contudo iam acabar sem saudade nem pena, não só porque já lhe
pesavam, como também porque Félix lera pouco antes um livro de Henri Murger,
em que achara um personagem com o sestro destas catástrofes prematuras. A dama
dos seus pensamentos, como diria um poeta, recebia assim um golpe moral e
literário.
Havia meia hora já que o doutor saíra da janela, quando lhe apareceu uma
visita. Era um homem de quarenta anos, vestido com certo apuro, gesto ao mesmo
tempo familiar e grave, estouvado e discreto.
- Entre, Sr. Viana - disse Félix quando o viu aparecer à porta da sala.
Vem almoçar comigo, já sei.
- Esse é um dos três motivos da minha visita respondeu Viana -; mas
afirmo-lhe que é o último.
- Qual é o primeiro?
- O primeiro - disse o recém-chegado - é dar-lhe o cumprimento de bons
anos. Folgo que lhe corra este tão feliz como o passado. O segundo motivo é
entregar-lhe uma carta do coronel.
Viana tirou uma cartinha da algibeira e entregou-a ao doutor, que a leu
rapidamente.
- Creio que é um convite para o sarau de hoje? - perguntou Viana quando
o viu dobrar a carta.
- É; transtorna-me um pouco, porque eu tencionava ir para a Tijuca.
- Não caia nessa - acudiu Viana -; eu era capaz de deixar todas as
viagens do mundo só para não perder uma reunião do coronel; é um excelente
homem, e dá boas festas. Vai?
Félix hesitou algum tempo.
- Olhe que eu venho incumbido de lhe destruir todas as objeções que
fizer - disse Viana.
- Não faço nenhuma. O convite transtorna-me o programa; mas, apesar
disso, aceito.
- Ainda bem!
Um moleque veio dar parte de que o almoço estava na mesa. Viana
descalçou as luvas e acompanhou o anfitrião.
- Que novidades há? - perguntou Félix sentando-se à mesa.
- Nada que me conste - respondeu Viana imitando o dono da casa; o Rio de
Janeiro vai a pior.
- Sim?
- É verdade; já não aparece um escândalo. Vivemos em completa
abstinência, e chegou o reinado da virtude. Olhe, eu sinto a nostalgia da
imoralidade.
Viana era um homem essencialmente pacato com a mania de parecer
libertino, mania que lhe resultava da frequência de alguns rapazes. Era casto
por princípio e temperamento. Tinha a libertinagem do espírito, não a das
ações. Fazia o seu epigrama contra as reputações duvidosas, mas não era capaz
de perder nenhuma. E todavia, teria um secreto prazer se o acusassem de algum
delito amoroso, e não defenderia com extremo calor a sua inocência, contradição
que parece algum tanto absurda, mas que era natural.
Como Félix não lhe animasse a conversa no terreno em que ele a pôs,
Viana entrou a elogiar-lhe os vinhos.
- Onde acha o senhor vinhos tão bons? - perguntou depois de esvaziar um
cálix.
- Na minha algibeira.
- Tem razão; o dinheiro compra tudo, inclusive os bons vinhos.
A resposta de Félix foi um sorriso ambíguo, que podia ser benevolente ou
malévolo, mas que pareceu não produzir impressão no hóspede. Viana era um
parasita consumado, cujo estômago tinha mais capacidade que preconceitos, menos
sensibilidade que disposições. Não se suponha, porém, que a pobreza o obrigasse
ao ofício; possuía alguma cousa que herdara da mãe, e conservara religiosamente
intacto, tendo até então vivido do rendimento de um emprego de que pedira
demissão por motivo de dissidência com o seu chefe. Mas estes contrastes entre
a fortuna e o caráter não são raros. Viana era um exemplo disso. Nasceu
parasita como outros nascem anões. Era parasita por direito divino.
Não me parece provável que houvesse lido Sá de Miranda;
todavia, punha em prática aquela máxima de um personagem do poeta: "boa
cara, bom barrete e boas palavras custam pouco e valem muito..."
Chamando-lhe parasita não aludo só à circunstância de exercer a vocação
gastronômica nas casas alheias. Viana era também o parasita da consideração e
da amizade, o intruso polido e alegre, que, à força de arte e obstinação,
conseguia tornar-se aceitável e querido, onde a princípio era recebido com
tédio e frieza, um desses homens metediços e dobradiços que vão a toda a parte
e conhecem todas as pessoas, "boa
cara, bom barrete, boas palavras".
Parecendo-lhe que Félix estaria preocupado, Viana entendeu não dizer
palavra antes de achar ocasião oportuna. Veio o café, e o primeiro que rompeu o
silencio foi o doutor. Viana aproveitou habilmente o ensejo para reatar o fio
dos louvores, tão asperamente quebrado pelo dono da casa. Não lhe elogiou desta
vez os vinhos, mas as qualidades pessoais; afirmou-lhe que ninguém era mais
querido na casa do coronel Morais, e que ele próprio não se recordava de pessoa
a quem mais estimasse neste mundo.
- O senhor é tão feliz a este respeito - terminou o hóspede -, que até
as pessoas que o não veem há muito conservam em toda a integridade o afeto que
o senhor lhes inspirou. Adivinha de quem lhe falo?
- Não.
- Bem, sabê-lo-á de noite; lá verá em casa do coronel uma pessoa que o
admira, e que o não vê há muito. Sejamos francos; é minha irmã Lívia.
- Admira-me isso, porque eu apenas a vi duas vezes.
- Não é possível - insistiu Viana -. Lembra-me que eu mesmo os
apresentei um ao outro. Se não me engano foi em dia da Glória,
há dous anos.
- Eu descia o outeiro - continuou Félix - quando os encontrei. Estivemos
parados cinco minutos. À noite encontramo-nos em um baile; cumprimentamo-nos
apenas e nada mais.
- Só isso?
- Nada mais.
- Nesse caso - concluiu Viana -, cuido que o senhor possui o segredo de
fascinar as moças só com cinco minutos de conversa e um cumprimento de sala.
Minha irmã fala muito no senhor; pelo menos depois que veio de Minas...
- Ah! Ela esteve em Minas?
- Foi para lá há perto de dous anos, depois que lhe morreu o marido.
Veio há oito dias; sabe o que me propõe?
- Não.
- Uma viagem à Europa.
- E vão?
- Os desejos de Lívia são ordens para mim. Contudo, era talvez melhor
que eu fosse só, porque uma senhora é sempre obstáculo aos desmandos de um
pecador como eu. Não lhe parece?
- É então uma viagem de recreio? - perguntou Félix.
- Ou de romance; Lívia tem esse defeito capital: é romanesca. Traz a
cabeça cheia de caraminholas, fruto naturalmente da solidão em que viveu nestes
dous anos, e dos livros que há de ter lido. Faz pena, porque é boa alma.
- Vejo que tem todas as condições necessárias a um poeta - observou o
doutor -; lembra-me que era bonita.
- Oh! A esse respeito a viuvez foi para ela uma renovação. Era bonita
quando o senhor a viu; hoje está fascinante. Há ocasiões em que eu sinto ser
irmão dela; tenho ímpeto de a adorar de joelhos. Com franqueza, assusta-me.
Leve sorriso encrespou os lábios de Félix, enquanto Viana prosseguia o
panegírico da irmã, com um entusiasmo que podia ser sincero e interessado ao
mesmo tempo. Ao fim de um quarto de hora levantou-se este para sair.
- Até à noite? - disse apertando a mão do dono da casa.
- Até à noite.
Félix ficou só.
- Que mulher será essa - perguntou a si mesmo -, tão bela que mete medo,
tão fantasiosa que causa lástima?
II
LIQUIDAÇÃO DO ANO VELHO
Meia hora depois apeava-se Félix de um tilbury à
porta de uma casa no Rossio.
Subiu lentamente as escadas; a porta do fundo estava aberta; Félix deu uma
volta pelo interior da casa, e foi até à sala, sem que o sentisse uma moça, que
estava assentada perto da janela, com o rosto voltado para a rua.
- Cecília! - disse ele.
A moça estremeceu e voltou-se.
- Ah! És tu. Tão tarde!
Félix aproximou-se, deu-lhe um beijo, e tirou-lhe o livro da mão.
- Tarde? - disse ele folheando o livro -; não pôde ser mais cedo; tive
visitas em casa.
A moça contentou-se com a resposta; levantou-se e, pondo-lhe os braços à
roda do pescoço, perguntou:
- Jantas hoje com alguém?
- Janto lá em casa.
- Lá em casa? - repetiu ela -; e por que não cá em
casa?
- Não posso.
- Tens visitas?
- Não.
- Jantas só?
- Janto.
- Preferes isso à minha companhia? - murmurou enfim a moça com voz
triste.
- Cecília - respondeu Félix dando à voz toda a doçura compatível com a
rigidez da sua resolução -, há circunstâncias que me obrigam a não jantar cá
nem hoje nem nunca.
Cecília empalideceu. Félix procurou tranquilizá-la dizendo que ia
explicar-se melhor. Insensível às suas palavras, foi ela sentar-se no sofá e aí
permaneceu alguns instantes silenciosa. Félix deu alguns passos na sala,
aspirou as flores que tinham sido postas numa jarra, naquele mesmo dia, talvez
para recebê-lo melhor; acendeu um charuto, e foi sentar-se em frente de
Cecília. A moça fitou nele os olhos úmidos de lágrimas. Depois, como se os
lábios tivessem medo de romper uma cratera à chama interior, murmurou estas
palavras:
- E por que nunca mais?
- Cecília - disse o doutor deitando fora o charuto apenas encetado -, eu
tenho a infelicidade de não compreender a felicidade. Sou um coração
defeituoso, um espírito vesgo, uma alma insípida, capaz de fidelidade, incapaz
de constância. O amor para mim é o idílio de um semestre, um curto episódio sem
chamas nem lágrimas. Há seis meses que nos amamos; por que perderás tu o dia em
que começa o ano novo, se podes também começar vida nova?
Cecília não respondeu; fitava nele os olhos, que, se eram ternos e
buliçosos nas horas de alegria, eram naquele momento sombrios e profundos.
Félix pegou-lhe na mão. Estava fria
- Não fiques abatida; o que faço agora não é novidade; ouviste-me dizer
muita vez que a nossa afeição era um capítulo curto. Rias então de mim; fazias
mal, porque era alimentar uma esperança vã.
- Era - interrompeu Cecília com voz trêmula -; reconheço agora que era.
Esperava, com efeito, que eu pudesse, com a minha constância, resgatar os erros
que me pesavam na consciência. Agarrei-me a ti como a uma tábua de salvação; a
tábua não compreendeu que salvaria uma vida e deixa-se levar pela onda que a
arrebata das minhas mãos. Enganei-me. Não te faço recriminações; espero que me
farás justiça...
- Faço-te toda a justiça - redarguiu ele -; acuso-me eu mesmo de estar
abaixo do papel de redentor.
Cecília não prestou atenção ao tom irônico destas palavras, nem sequer
as ouviu. Levantou-se, deu alguns passos, encostou-se ao piano e pondo a cabeça
entre as mãos soluçou à vontade. Mas essa explosão foi quase silenciosa e durou
pouco.
Meia hora depois despedia-se Félix de Cecília, declarando-lhe que saía
dali como um gentleman,
que ela receberia os meios necessários para viver até que o esquecesse de todo.
Cecília recusou esse ato de generosidade. Espantou-o imensamente tamanho
desinteresse; concluiu que ela teria algum amor em perspectiva. Saiu.
Na rua do
Ouvidor encontrou o Doutor Meneses, jovem advogado com quem
entretinha relações.
- Vem jantar comigo - disse.
- Não jantas com Cecília?
- Acabei o capítulo; Cecília está livre.
- Houve choro?
- O choro pertence ao cerimonial da separação. Era indispensável.
Cecília verteu algumas lágrimas, que eu procurei enxugar, prometendo-lhe os
meios de viver algum tempo. Recusou; mas eu não lhe aceito a recusa.
- Fizeste mal em separar-te dela; Cecília amava-te.
- Meneses - disse Félix -, eu nunca faço mal quando quebro uma cadeia:
liberto-me.
- Talvez tenhas razão.
- Mas vem jantar comigo - continuou Félix, dando-lhe o braço.
- Não posso, vou jantar com minha mãe.
- Ah!
- São apenas duas horas; passearei contigo até às três. Ou vais para
casa?
- Não.
Deram o braço e desceram a rua.
- Se não é indiscrição, Félix - disse Meneses ao cabo de alguns minutos
-, houve algum arrufo sério entre vocês?
- Não.
- Desconfiavas dela?
- Também não.
- Nem te arrufaste, nem tinhas desconfiança. Sei que ela gostava de ti,
e tu mesmo me afirmaste que não era nenhuma desperdiçada. Havia portanto um
milheiro de razões para que vocês prosseguissem neste romance. Dar-se-á que
tenhas em vista algum casamento?
Félix riu-se e levantou os ombros.
- Então, não compreendo - concluiu Meneses.
- Eu te digo - respondeu Félix -; os meus amores são todos semestrais;
duram mais que as rosas, duram duas estações. Para o meu coração um ano é a
eternidade. Não há ternura que vá além de seis meses; ao cabo desse tempo, o
amor prepara as malas e deixa o coração como um viajante deixa o hotel; entra
depois o aborrecimento - mau hóspede.
Meneses ouviu as palavras de Félix com os olhos postos no chão; sorriu
ligeiramente quando ele acabou.
- Queres ouvir uma cousa? - perguntou.
- Dize.
- O teu cinismo parece-me hipocrisia.
- Não é hipocrisia nem cinismo; é temperamento.
- Não creio.
- Por quê?
Meneses não respondeu.
- Quase me arrependo de ser teu amigo - disse ele depois de algum tempo.
- És meu amigo? - perguntou Félix com ar de mofa.
Meneses parou e encarou o companheiro.
- Duvidas? - disse.
- Não duvido; mas ignorava isso até agora; sabes que as nossas relações
datam de pouco tempo.
- Que importa o tempo? Há amigos de oito dias e indiferentes de oito
anos.
- Há.
A conversa tomou outra direção. Meneses ainda tentou falar da moça, mas
Félix não lhe prestou atenção. Às três horas separaram-se, Félix para as Laranjeiras,
Meneses para o Rossio.
Meneses era uma boa alma, compassiva e generosa. Tinha em flor todas as
ilusões da juventude; era entusiasta e sincero; estava totalmente limpo da
menor eiva de cálculo. Podia ser que com os anos perdesse algumas das suas
qualidades nativas, que nem todos resistem a estes dous terríveis dissolventes:
os lances da fortuna e o atrito dos caracteres. Mas naquele tempo ainda não era
assim. A situação de Cecília tinha-o comovido. Resolveu ir ter com ela.
Cecília ficara resignada, mas triste. Quando Meneses entrou na sala
estava ela ao piano, tinha apoiada a cabeça em uma das mãos e corria os dedos
pelo teclado. Contou-lhe tudo o que se passara; confessou que não esperava a
súbita mudança de Félix; que a sua dor fora imensa, e que daria tudo para fazer
reviver o recente passado; mas que não nutria nenhuma esperança de
reconciliação.
- E se eu tentar fazer alguma cousa?
- Tentará em vão - respondeu ela. Além de quê, eu não tenho nenhum
direito de prolongar uma felicidade incompatível com a vontade dele. Errei,
confiando demais; errarei se tiver ainda uma esperança...
- Quem sabe, Cecília? - disse o moço, pondo-lhe a mão no ombro -; é possível
que Félix tenha cedido a um capricho. Virá a arrepender-se depois, mas o seu
orgulho não lhe deixará dar o primeiro passo. Nesse caso uma pessoa influente
pode convencê-lo de que a primeira glória é a reparação dos erros.
Cecília levantou os ombros; foi a sua única resposta.
Meneses perguntou se haveria alguma razão de ciúmes.
- Posso jurar-lhe que durante todo este tempo pertenci-lhe
exclusivamente.
O juramento de Cecília não devia valer muito aos olhos de um homem que
conhecesse bem todos os recursos de uma mulher naquelas condições. Mas o nosso
Meneses era ingênuo em cousas tais. Saiu de lá cheio de piedade. Nessa mesma
tarde mandou uma carta às Laranjeiras,
justamente na ocasião em que Félix acabava de ler outra carta de Cecília. A
carta da moça era tranquila e até certo ponto nobre. Não lhe fazia nenhuma
recriminação, nem implorava nenhum favor. Defendia-se apenas, retirando de si a
responsabilidade da separação.
A carta de Meneses era cavalheiresca: descobria o estado da alma de
Cecília e não hesitava em chamar ingrato ao prófugo
dardânio. Félix sorriu lendo ambas as missivas; depois atirou-as a
uma cesta e nunca mais as viu.
III
AO SOM DA VALSA
A casa do coronel podia conter o triplo das pessoas convidadas para o
sarau daquela noite; mas o coronel preferira convidar apenas as pessoas mais
íntimas e familiares. Era homem pouco cerimonioso, gostava sobretudo da
intimidade.
Quando Félix entrou, dançava-se uma quadrilha. O coronel foi ter com ele
e levou-o para onde estava a mulher, que já o esperava com ansiedade, pela
razão, dizia ela, de que era um dos poucos rapazes que ainda conversavam com
velhas, estando entre moças. Félix sentou-se ao pé de D. Matilde. Estava então
de bom humor e conversou alegremente até que a música parou.
A mulher do coronel era o tipo da mãe de família. Tinha quarenta anos e
ainda conservava na fronte, embora secas, as rosas da mocidade. Era uma mistura
de austeridade e meiguice, de extrema bondade e extrema rigidez. Gostava muito
de conversar e rir e tinha a particularidade de amar a discussão, exceto em
dous pontos que para ela estavam acima das controvérsias humanas: a religião e
o marido. A sua melhor esperança, afirmava, seria morrer nos braços de ambos.
Dizia-lhe Félix às vezes que não era acertado julgar pelas aparências, e que o
coronel, excelente marido em reputação, fora na realidade pecador impenitente.
Ria-se a boa senhora destes inúteis esforços para abalar a boa fama do esposo.
Reinava uma santa paz naquele casal, que soubera substituir os fogos da paixão
pela reciprocidade da confiança e da estima.
A conversa com a dona da casa roubou algum tempo às moças, segundo a
expressão do coronel. Era necessário que Félix se dividisse com as senhoras que
ainda tinham amor aos exercícios coreográficos. Recusou, pretextando a presença
de D. Matilde.
- Oh! Por mim não! - respondeu a boa senhora -; o direito das velhas tem
um limite no direito das moças. Vá, doutor, e mais tarde volte cá, se o não
agarrarem por aí...
Valsava-se. Félix levantou-se e foi buscar um par. Não tendo preferência
por nenhuma senhora, lembrou-lhe ir pedir a filha do coronel. Atravessava a
sala para ir buscá-la defronte, quando foi abalroado por um par valsante.
Conquanto fosse navegante prático daqueles mares, não pôde evitar o turbilhão.
Susteve o equilíbrio com rara felicidade e foi procurar melhor caminho,
costeando a parede. Nesse momento os valsantes pararam perto dele. Pareceu-lhe
reconhecer Lívia, irmã de Viana. Com as faces avermelhadas e o seio ofegante, a
moça pousava molemente o braço no braço do cavalheiro. Murmurou algumas
palavras, que Félix não pôde ouvir, e depois de lançar um olhar em roda de si,
continuou a valsar.
Durou isto minutos.
Félix, apenas se achou livre, foi buscar a filha do coronel,
interessante criança de dezessete anos, figura delgada, rosto angélico, formas
graciosas, toda languidez e eflúvios. Era uma dessas mulheres que fazem o mesmo
efeito que um vaso de porcelana fina: toca-se-lhes com medo de as quebrar.
Raquel era o seu nome; tinha grandes pretensões a mulher, que lhe não ficavam
mal naquela idade de transição; mas o que Félix lhe achava melhor era
justamente o seu aspecto de criança, mal disfarçado pela formação do seio. Como
caráter, fazia-lhe a mãe grandes elogios, e eram fundados, posto fossem de mãe.
Raquel aceitou o convite. Félix passou-lhe o braço à roda da cintura, e
ela estremeceu da cabeça aos pés; depois entregou-se-lhe toda com aquele
abandono que a valsa prescreve ou permite, e voaram pela sala no turbilhão
geral. A agitação coloriu um pouco as faces da moça, comumente descoradas.
Quando pararam, estava ofegante.
- Sentemo-nos - disse Félix.
- Não; passeemos um pouco. Por que não aparece cá?
- Receio não os encontrar; estão sempre fora...
- Não; há dous meses estamos na cidade. Mamãe diz que já não está para
estas viagens contínuas, e eu acho que tem razão. Também me cansam a mim; o
mais influído é papai.
- Não gosta da roça?
- Eu não tenho preferências; gosto tanto da roça como da cidade;
contudo... dou-me melhor cá.
- Está olhando para aquela moça? Não a acha bonita?
- Quem? Eu não olhava para ninguém.
- Pois fazia mal; porque valia a pena olhar: Lívia é a rainha da noite.
Conquanto Raquel, na opinião de Félix, fosse uma menina, não deixou este
de estranhar que tão facilmente cedesse a realeza da noite a outra mulher; mas,
por outro lado, refletia que esta abdicação bem podia ser uma afetação de
modéstia. Contudo, o límpido olhar da moça revelava a mais absoluta
ingenuidade. Fez-lhe um cumprimento à beleza dela e entrou a admirar de longe a
beleza de Lívia.
Lívia tinha efetivamente um ar de rainha, uma natural majestade, que não
era rigidez convencional e afetada, mas uma grandeza involuntária e sua. A
impressão de Félix foi boa e má; achou-lhe uma beleza deslumbrante, mas
pareceu-lhe ver através daquele rosto senhoril uma alma altiva e desdenhosa.
- Será a rainha da noite - disse ele voltando-se para Raquel -; mas não
serei eu quem lhe faça a corte.
- Por quê?
- Parece-me orgulhosa; há de tratar a todos como vassalos seus. Não vê
com que desdém ouve ela as palavras do cavalheiro que lhe dá o braço?
O cavalheiro era o mesmo rapaz que valsara com a viúva, um Dr. Batista,
descendente em linha reta do Leonardo de
Camões, "manhoso e namorado".
- Oh! Isso não é razão, disse Raquel -; Lívia não gosta dele.
Pouco tempo depois foi servida a ceia. Félix dirigiu-se para uma sala
interior, onde o coronel tinha os livros, e que servia temporariamente de
refúgio aos fumantes. Félix acendeu um charuto e começou a correr os olhos
pelos livros.
Ali foram ter alguns rapazes que falaram entusiasticamente da irmã de Viana.
Era o objeto de todas as atenções da noite. E foi no meio das apologias
daqueles cortesãos da beleza que ela apareceu pelo braço do coronel,
atravessando a sala, para ir ter ao toucador.
- Doutor! - disse Viana, aproximando-se de Félix.
E voltando-se para a irmã:
- O Dr. Félix quer falar-te.
- Ah! - disse a moça, voltando-se para o médico.
Félix aproximou-se.
- Não sei se se lembra de mim? - perguntou ele.
- O Dr. Félix? Perfeitamente: foi-me apresentado há muito tempo, mas eu
tenho boa memória. Demais, só se esquecem as pessoas vulgares.
Félix agradeceu-lhe o cumprimento. Ela estendeu-lhe a ponta dos dedos
elegantemente apertados na pelica da luva. Trocaram algumas palavras mais. Daí
a pouco, tendo-se ouvido o prelúdio de uma quadrilha, toda a gente se retirou.
Ficaram na sala Félix e Moreirinha.
Moreirinha tinha cerca de trinta anos, um bigode espesso, uma aparência
agradável e um espírito frívolo. Confessou que estava impressionado pela viúva,
mas que eram muitos os seus rivais.
- Mas não são temíveis esses rivais? - perguntou Félix.
- Não; um apenas.
- Qual?
- O Batista.
- É o que está nas graças?
- Não sei; mas é o mais valente de todos, e o que dispõe de mais tempo,
posto seja casado.
- Casado?
- Com um anjo.
Félix procurou reanimar o pretendente, pondo em relevo todas as suas
qualidades merecedoras de admiração. Inventou-lhe algumas que não tinha;
reconheceu-lhe outras que possuía realmente, inda que de um merecimento
relativo ou duvidoso. Não se podia negar a influência do Moreirinha entre
senhoras. Era ele galanteador por índole e por sistema; tinha, além disso
(cousa importante), a plena convicção de que a sua conversa era preferida pelas
damas. Ninguém melhor do que ele sabia lisonjear o amor-próprio feminino;
ninguém prestava com mais alma esses leves serviços de sociedade, que
constituem muita vez toda a reputação de um homem. Dirigia os piqueniques,
comprava o romance ou a música da moda, encomendava os camarotes para as
representações de celebridades, levava os pianistas aos saraus, tudo isso com
um modo tão serviçal que era de se ficar morrendo por ele.
Félix voltou à sala quando se dançavam os últimos passos da quadrilha.
Lívia estava esplêndida de graça e elegância. Nenhuma afetação nem acanhamento;
seus movimentos eram a um tempo desembaraçados e modestos. O médico procurou
ver se o doutor pretendente estaria nas graças da moça; mas ele dançava do
mesmo lado em que ela estava; os olhares não podiam encontrar-se. Um sobrinho
do coronel indicou-lhe a mulher do Batista: era uma moça de vinte anos, loura,
assaz bonita e digna de inspirar amores. Por que motivo o marido, casado há
pouco, queria ir queimar a um templo estranho os perfumes que a esposa merecia?
Algum tempo depois de finda a quadrilha, dispôs-se Félix a deixar a casa
do coronel, que lhe interceptou a passagem em nome, disse ele, da mulher e das
moças.
Félix respondeu-lhe que estava incomodado.
- Pretextos de peraltice - disse o velho, rindo alegremente -; não o
deixo sair nem que me caia morto na sala. Faz favor, minha senhora?
Estas últimas palavras eram dirigidas à irmã de Viana, que ia
atravessando a saleta onde se achavam os dous.
- Que me quer, coronel? - disse ela parando.
- Um favor apenas. Retenha-me este senhor, que se quer ir embora. Não
tenho forças para tanto. Veja se mo consegue. Comece dando-lhe uma quadrilha.
- Dou-lhe a próxima, que é a minha última.
- Também se vai embora?
- Também.
- É uma debandada geral. Vou mandar trancar as portas.
O coronel afastou-se depois desta ameaça. Félix deu o braço a Lívia e
foram sentar-se num sofá que ficava próximo.
- Meu irmão é muito seu amigo - disse Lívia acomodando as ondas de seda
do vestido -. Fala-me muito no senhor.
- É muito meu amigo - repetiu Félix, fazendo interiormente uma careta.
- Não admira - observou ela -; o senhor merece ser estimado.
- Como sabe disso?
- Todos o afirmam.
- Nem todos serão sinceros - observou Félix.
Félix não se iludia a respeito da estima de Viana. Sem negar que o irmão
da viúva lhe tivesse alguma amizade, dava-lhe, todavia, limitado valor. Lívia
asseverava, entretanto, que o irmão falava dele com grande entusiasmo, e até
certo ponto o entusiasmo era sincero. Félix tinha sobre Viana certa ascendência
moral; além disso, era um homem franco e hospedeiro, rude mas serviçal.
Dentro de pouco tempo a conversa entre o médico e a viúva foi perdendo a
frieza cerimoniosa do começo. Passaram a falar do baile, e Lívia manifestou com
expansiva alegria as suas excelentes impressões, sobretudo porque, dizia ela,
vinha da roça, onde tivera uma vida reclusa e monástica. Falaram naturalmente
da viagem que ela pretendia fazer. Confessou ela que era um desejo antigo e
várias vezes diferido.
- Não pense - acrescentou Lívia - que me seduzem unicamente os
esplendores de Paris, ou a elegância da vida europeia. Eu tenho outros desejos
e ambições. Quero conhecer a Itália e a Alemanha, lembrar-me da nossa Guanabara junto
às ribas do Arno ou
do Reno.
Nunca teve iguais desejos?
- Estimaria poder fazê-lo, se me suprimissem os incômodos da viagem; mas
com os meus hábitos sedentários dificilmente me resolveria a isso. Eu participo
da natureza da planta; fico onde nasci. V. Exa. será como as andorinhas...
- E sou - disse ela reclinando-se molemente no sofá -; andorinha curiosa
de ver o que há além do horizonte. Vale a pena comprar o prazer de uma hora por
alguns dias de enfado.
- Não vale - respondeu Félix, sorrindo -; esgota-se depressa a sensação
daquele momento rápido; a imaginação ainda pode conservar uma leve lembrança,
até que tudo se desvanece no crepúsculo do tempo. Olhe, os meus dous pólos
estão nas Laranjeiras e
na Tijuca;
nunca passei destes dous extremos do meu universo. Confesso que é monótono, mas
eu acho felicidade nesta mesma monotonia.
Lívia entrou a combater isto que lhe parecia um insigne paradoxo, mas
sem que nenhuma de suas palavras mostrasse a mais leve sombra de pedantismo.
Tinha uma maneira natural e simples de dizer as cousas menos vulgares deste
mundo. Sabia exprimir as suas ideias em frase elegante, mas despretensiosa.
O prelúdio de uma valsa chamou a atenção dos dous para o baile. Félix
convidou-a para valsar; ela desculpou-se, dizendo que se achava cansada.
- Vi-a valsar quando entrei - disse Félix -, e afirmo que poucas pessoas
valsarão tão bem. Creia na sinceridade do elogio, porque eu não os faço nunca.
A moça aceitou este cumprimento com ingênua satisfação.
- Gosto muito da valsa - disse ela -. Não admira: é a primeira dança do
mundo.
- Pelo menos é a única dança em que há poesia - acrescentou Félix -. A
quadrilha tem certa rigidez geométrica; a valsa tem todo o abandono da
imaginação.
- Justamente! - exclamou Lívia, como se Félix lhe tivesse reunido em
poucas palavras todas as suas ideias a respeito daquele assunto.
- Demais - continuou o doutor, animado pelo entusiasmo da viúva -, a
quadrilha francesa é a negação da dança, como o vestuário moderno é a negação
da graça, e ambos são filhos deste século que é a negação de tudo.
- Oh! - murmurou ela sorrindo.
E o protesto não foi só com os lábios, foi também com os olhos - uns
olhos aveludados e brilhantes, feitos para os desmaios de amor. Félix começou a
sentir-se bem ao lado daquela moça e, esquecendo de boa vontade a festa em que
só aparentemente figurava, ali se demorou longo tempo com ela, alheio aos
comentários estranhos, todo entregue ao capricho do seu próprio pensamento.
Todavia, escapou-lhe, no meio da conversa, não sei que frase de
melancólico cepticismo que fez estremecer a moça. Lívia olhou para ele e depois
para o chão, parecendo tão absorta que nem deu pelo silêncio que se seguiu ao
seu gesto e às palavras de Félix. Este aproveitou a circunstância para
examiná-la melhor.
Lívia representava ter vinte e quatro anos. Era extremamente formosa;
mas o que lhe realçava a beleza era um sentimento de modesta consciência que
ela tinha de suas graças, uma cousa semelhante à tranquilidade da força. Nenhum
gesto seu revelava o amor-próprio geralmente inseparável das mulheres bonitas.
Sabia que era formosa, mas tinha para si que, se a natureza se havia esmerado
com ela, era por uma razão de harmonia e de ordem nas cousas terrestres. Afear
as suas graças parecia-lhe um crime; tirar orgulho delas, frivolidade.
Félix examinou-lhe detidamente a cabeça e o rosto, modelo de graça
antiga. A tez, levemente amorenada, tinha aquele macio que os olhos percebem
antes do contacto das mãos. Na testa lisa e larga, parecia que nunca se formara
a ruga da reflexão; não obstante, quem examinasse naquele momento o rosto da
moça veria que ela não era estranha às lutas interiores do pensamento: os
olhos, que eram vivos, tinham instantes de languidez; naquela ocasião não eram
vivos nem lânguidos; estavam parados.
Sentia-se que ela olhava com o espírito.
Félix contemplou-lhe longo tempo aquele rosto pensativo e grave, e
involuntariamente foram-lhe os olhos descendo ao resto da figura. O corpinho
apertado desenhava naturalmente os contornos delicados e graciosos do busto.
Via-se ondular ligeiramente o seio túrgido, comprimido pelo cetim; o braço
esquerdo, atirado molemente no regaço, destacava-se pela alvura sobre a cor
sombria do vestido, como um fragmento de estátua sobre o musgo de uma ruína.
Félix recompôs na imaginação a estátua toda e estremeceu. Lívia acordou da
espécie de letargo em que estava. Como também estremecesse, caiu-lhe o leque da
mão. Félix apressou-se a apanhar-lho.
- Obrigada - murmurou ela distraída.
Depois, parecendo envergonhada daquele longo silêncio, pretextou um
incômodo nervoso; levantaram-se e dirigiram-se ao salão. Ali, no meio da
conversa e do bulício, readquiriu ela o império de si mesma, e conversaram
largamente com volubilidade e galanteria. A viúva era um pouco sarcástica, mas
daquele sarcasmo benévolo e anódino, que sabe misturar espinhos com rosas. Pela
primeira vez Félix a conhecia, porquanto apenas a tinha visto duas vezes, e não
basta ver uma mulher para a conhecer, é preciso ouvi-la também; ainda que
muitas vezes basta ouvi-la para a não conhecer jamais.
Lívia demorou-se em casa do coronel mais tempo do que prometera, milagre
devido ao doutor, dizia Viana. O certo é que o resto da noite quase não
existiram para ninguém mais.
Não passou isto sem que o notassem alguns lábios despeitados. Um
cavalheiro disse a uma senhora:
- Não lhe parece que D. Lívia tem um gosto deplorável?
A senhora arregaçou levemente a ponta esquerda do lábio superior, e
respondeu:
- O Félix não o tem melhor.
A viúva saiu no meio de um geral murmúrio de curiosidade. Félix não se
demorou muito tempo mais; meteu-se no carro e foi para as Laranjeiras.
Uma hora depois o baile, a viúva, a dança, tudo se lhe desvaneceu do
espírito, graças a um sono tranquilo e profundo, como essas nuvens douradas do
ocaso que a noite absorve ou dissipa.
IV
PRELÚDIO
No dia seguinte partiu Félix para a Tijuca,
onde tinha uma casa de recreio e refúgio; regressou duas semanas depois.
Durante esse tempo nada soube do que ocorrera na cidade: não leu jornais nem
abriu cartas de amigos.
Alguma cousa, entretanto, havia ocorrido: a primeira notícia com que o
saudaram os amigos, apenas ele chegou à cidade, foi que Cecília conquistara o
coração de Moreirinha.
O sucessor de Félix, pouco depois que este chegou, não deixou de lhe ir
participar a sua boa fortuna, não sei se por fatuidade, se por despicar a dama.
- Dou-lhe os meus parabéns - respondeu Félix -; conquistou uma rapariga
sossegada, carinhosa, capaz de o compreender...
- Tanto melhor! - acudiu o rapaz -. O que me faltava era isso mesmo; uma
mulher que me compreendesse. Cecília não é positivamente uma alma perdida; não
está na linha dessas outras mulheres com quem tenho despendido o meu dinheiro
sem colher nada mais que alguns tardios remorsos. É uma moça de bons
sentimentos, conserva certa dignidade no vício, tem uma alma nobre, elevada...
Este panegírico durou alguns minutos mais. Dentro de tão pouco tempo
descobrira-lhe Moreirinha qualidades desconhecidas para o antecessor. Seria
mais néscio ou mais perspicaz? Cecília não era hipócrita quando dizia gostar de
um homem; qualquer que fosse a natureza dos seus afetos, ela os sentia
sinceramente; mas era raro que sobrevivessem vinte e quatro horas à causa que
lhos inspirara. Não se lhe desmentira a constância durante os seis meses de
intimidade com Félix; mas, se ela era amante para querer a um só homem, era
independente para o esquecer depressa. Tinha uma fidelidade filha do costume; a
sua máxima era não esquecer o amante presente, não recordar o amante passado,
nem se preocupar com o amante futuro. Moreirinha era o amante presente; podia
contar com a fidelidade da rapariga, ao menos com as suas boas intenções.
Quando Meneses soube deste desenlace ficou atônito. Julgou a princípio
que era apenas uma afetação de Moreirinha; mas logo verificou que não. Foi ter
com o médico.
- Meu amigo - disse -: peço-te que me desculpes a carta ridícula que te
escrevi.
- Que carta?
- A respeito de Cecília. Nunca pensei que fossem fingidas aquelas
lágrimas que me entraram pelo coração. Aprendi a não crer tão superficialmente.
- Não aprendeste cousa nenhuma - retorquiu Félix encolhendo os ombros -;
não é em terra que se fazem os marinheiros, mas no oceano, encarando a
tempestade.
O episódio dos amores de Cecília foi assunto de conversa no círculo dos
rapazes que aqueles frequentavam. Nem tardou que passasse além. No fim de algum
tempo, pouca gente ignorava que a moreninha que passeava todas as tardes em
carro descoberto pela praia de
Botafogo era o altar em que o Moreirinha fazia os seus
sacrifícios diários e pecuniários. Félix admirou-se ao princípio desta mania de
passear tão contrária aos hábitos preguiçosos de Cecília; mas atinou logo com a
chave do enigma. Moreirinha não compreendia o que era ser feliz sem
publicidade. Para ele, a ilha de
Citera não podia ser jamais a ilha de Robinson.
Entretanto, passara um mês desde o sarau do conselheiro.
Félix não se havia aproveitado do convite que a viúva lhe fizera, nem cedido às
instâncias de Viana. Encontrou-os, porém, uma noite no Ginásio.
Estava ele nas cadeiras quando os viu num camarote da segunda ordem. No fim do
segundo ato Félix subiu ao camarote.
Teve excelente recepção, posto que a viúva, sem deixar de ser cortês e
graciosa, parecia um pouco reservada e preocupada. Não falava com a mesma
volubilidade da noite do baile. Esquecia-se às vezes de si e dos outros. Duas
vezes lhe aconteceu dar uma resposta sem pergunta e deixar uma pergunta sem
resposta.
A conversa, portanto, não foi muito animada. Felizmente Viana
encarregou-se de preencher os intervalos com a sinfonia das suas reflexões.
Quando se levantou o pano para o terceiro ato, Félix quis sair, mas
tanto a viúva como o irmão pediram-lhe que ficasse. Aceitou o convite e ficou.
Do que houve em cena durante esse ato pode-se afirmar que Félix nada soube
absolutamente. O ato era curto, e Félix empregou todo o tempo em observar a
moça, que, molemente reclinada na cadeira, acompanhava distraída o diálogo dos
atores.
"Em que estará pensando esta moça?", dizia Félix consigo.
"Evidentemente, não lhe importam os suspiros do galã, nem as facécias do
gracioso. Olha, mas não vê a cena. Estará à espera de algum namorado remisso?
Mas quem é então esse lorpa que deixa entristecer uns olhos tão bonitos?"
A ingênua da peça, que desde o ato anterior se sabia estar apaixonada
pelo galã, como é de jeito no teatro e no mundo, entrou precipitadamente em
cena e lançou-se nos braços do amado. Algumas palmas do público premiaram essa
resolução inesperada e enérgica. Então começou entre a dama e o galã um diálogo
de sentimento e paixão, um duelo de suspiros, um protestar de fidelidade e
constância, que a plateia ouviu com demonstrações de entusiasmo.
"Ama, não há dúvida", continuou Félix a dizer entre si -
"basta ver como lhe brilham os olhos a cada frase do diálogo. Agradam-lhe
os protestos do namorado e as lágrimas da dama. Creio que sorri; é de
aprovação. Oh! Como está divina!"
Enfim, caiu o pano; e a viúva, que já no fim do ato parecera ter voltado
à sua anterior preocupação, levantou-se, dizendo que se ia embora.
Viana pediu-lhe para ficar até o fim da peça; ela insistiu, e era
forçoso ceder. Félix acompanhou-os até o carro.
- Até quando? - perguntou Lívia, aceitando a mão que Félix lhe oferecia.
- Até breve.
Seria acaso ou ilusão? Félix sentiu uma forte pressão dos dedos da moça,
enquanto esta subia rapidamente para o carro, e ia responder com um aperto
ainda mais forte; mas era tarde; a moça já estava sentada, e Viana punha o pé
no estribo para subir.
Ilusão era decerto; ilusão ou casualidade. Mas o médico não o percebeu
logo, e foi um primeiro erro na maneira de julgar a viúva.
Poucos dias depois do encontro no teatro, dirigiu- se Félix a Catumbi onde
eles moravam. Não os achou. Quando Lívia voltou para casa soube da visita de
Félix pelo cartão que a mucama lhe deu. Tão apressadamente descalçou as luvas
que as rasgou; e como o irmão fizesse um reparo a este respeito, a moça respondeu
com azedume. Viana estava acostumado às asperezas da irmã, levantou os ombros e
saiu.
Félix encontrou-a dous dias depois na rua do
Ouvidor, fazendo compras para a viagem.
- Se adivinhasse a sua visita, não teria saído de casa - disse a viúva.
Félix inclinou-se.
- Por outro lado, estimo ter estado fora; morando eu tão longe, não
teria o prazer de recebê-lo segunda vez, e nesse caso antes nada.
- O tilbury encurta
as distâncias - observou Félix -; procurarei desempenhar-me da obrigação em que
estou.
- Da obrigação já se desempenhou; agora...
- Perdão; o seu cumprimento constitui uma obrigação nova.
Despediram-se .
Meneses, que estava na calçada oposta, durante as poucas palavras
trocadas entre Félix e a viúva, atravessou a rua e veio ter com o amigo.
- Quem é aquela moça?
- É a irmã do Viana.
- Bravo! É lindíssima.
- É realmente bonita, o que lhe merece a admiração geral. Vê como todos
lhe estão com os olhos em cima...
- Se não há indiscrição - disse Meneses depois de a ver entrar em uma
loja -, queimas os teus perfumes naquele altar?
- Não. Para quê?
- Talvez algum casamento incubado...
- Casar?... - disse Félix rindo -. A pergunta é tão original que merece
um sorvete. Vem ao Carceller.
No Carceller contou-lhe
Meneses que andava incomodado e triste. Vivia ele maritalmente com uma pérola
que pouco antes encontrara no lodo. Na véspera descobrira em casa vestígios de
outro amador de pedras finas. Estava certo da infidelidade da amante; pedia-lhe
conselho.
- Não te dou conselho nenhum - respondeu o médico -; resolve tu mesmo.
- Mas, se eu pudesse resolver alguma cousa no estado em que estou, não
viria falar a um amigo...
- Lisonjeia-me a escolha; mas não passa disso. Imita-me, se podes; mas
não me peças reflexões.
- Mas, no meu caso, que farias tu?
- Cousa nenhuma; pegava no chapéu e saía.
- E se o não pudesses fazer sem dor?
- Hipótese absurda.
- Para ti.
- Naturalmente.
Houve uma pausa.
- Dou-te enfim um conselho - disse Félix.
Meneses
levantou os olhos com ansiedade.
- Qualquer que seja a resolução que tomares - continuou Félix -, não
recues um passo.
- Onde acharei esta resolução?
- Aqui - disse Félix pondo-lhe o dedo na testa.
- Oh! Não! - suspirou Meneses; a cabeça nada tem com isso; todo o mal
está no coração.
- Recorre à cirurgia: corta o mal pela raiz.
- Como?
- Suprime o coração.
V
Dous dias depois, estando Félix a vestir-se para ir a Catumbi,
entrou-lhe Meneses por casa. Vinha pálido e abatido, olhos vermelhos, passo
trêmulo. Não se sentou, deixou-se cair numa cadeira.
- Que é isso? - perguntou Félix.
- Está tudo acabado - respondeu ele -: romperam- se os vínculos fatais.
Custou-me muito, mas era necessário; foi agora há pouco; corri para cá;
precisava de alguém com quem desabafasse. Isto é ridículo, bem sei; mas que
queres? Eu sofro... tenho um coração miserável, e deixo-me levar por ele...
Félix pareceu condoer-se da situação do rapaz, e disse-lhe algumas
palavras de animação, que ele ouviu com reconhecimento.
- Eu já desconfiava - disse Meneses -, de que era traído; só tive a
certeza ontem. O que mais me dói em tudo isso - continuou ele depois de alguns
instantes de silêncio -, é que, para servir ao homem que me traiu, desfazia-me
eu em obséquios, e até, confesso-te aqui, era seu credor.
- É por isso que eu não empresto dinheiro a ninguém - respondeu Félix,
penteando as suíças.
- Mas quem pode adivinhar o mal, quando nos apresentam uma fisionomia
risonha? Eu confiava em ambos.
Félix encolheu os ombros.
- Toma um charuto disse.
- Não quero fumar.
- Fuma; eu já observei que o fumo impede as lágrimas, e ao mesmo tempo
leva ao cérebro uma espécie de nevoeiro salutar.
- Vais sair? - perguntou Meneses, vendo que o outro punha o chapéu na
cabeça.
- Vou à casa do Viana. Queres vir?
- Não posso.
- Devias vir comigo; apresentava-te irmã dele, e passávamos algumas
horas em companhia amável. Esquecerias depressa as tuas penas.
Meneses recusou; Félix levou-o no carro até à rua do
Lavradio, onde ele morava.
Em caminho conversaram dos seus extintos amores. Meneses jurava que era
a última aventura a que expunha o seu coração; achava-se curado de uma vez.
- Não afirmes nada, Meneses; podes errar. Sabes o que te falta? Têmpera.
Amanhã, entre duas lágrimas, aparece-te um raio de sol, e eis-te de novo
namorado, confiado e arriscado.
- Oh! Não! - protestou Meneses.
- Quem dera que não! Mas eu estou a ler no teu rosto que a única maneira
de te consolar deste naufrágio é dar-te outro navio. Só muito tarde te
convencerás de que viver não é obedecer às paixões, mas aborrecê-las ou
sufocá-las. Os maricas, como tu, choram; os homens, esses ou não sentem ou
abafam o que sentem. Isto não tem réplica, meu... amigo, diria eu, se me não
lembrasse do teu afortunado rival, que é positivamente um mariola. Vem à casa
do Viana; hás de gostar da Lívia; parece-se contigo.
- Não posso - respondeu Meneses, que só ouvira as últimas palavras de
Félix.
- Mas hás de ir depois?
- Sim, depois.
- E se te apaixonas por ela?
Meneses sorriu tristemente; o carro parou; despediram-se um do outro, e
Félix seguiu para Catumbi.
Lívia estava só em casa. Fora convidada a um jantar, mas respondeu
pretextando um incômodo que não tinha. O irmão encarregou-se de ir
representá-la.
- Tinha o pressentimento - disse ela depois de referir estas cousas ao
doutor -, tinha o pressentimento de que o senhor vinha cá hoje, e não desejava
que lhe acontecesse a mesma cousa que da primeira vez.
- E acredita em pressentimentos? - perguntou Félix.
- Não os explico, mas acredito neles.
Lívia parecia mais bela que das outras vezes. Não só a luz natural dizia
melhor com a sua tez, como também a simplicidade do vestuário era para ela um
realce. Félix não dissimulou a impressão que lhe causava aquele novo aspecto da
moça. Lívia, que, como toda a mulher bela, e posto não fosse vaidosa, sabia
mirar-se na fisionomia dos outros, não deixou de perceber a impressão do
doutor.
A cena da portinhola do carro não havia saído do espírito de Félix, que
se convencera de duas cousas: primeiro, que a viúva gostava dele; depois, que
era fácil triunfar da viúva. As aparências davam fundamento à opinião de que a
moça o amava. Félix aproveitou a situação e dispôs-se a tirar dela todo o
proveito possível. Pouco se demorou, entretanto, naquele dia. Quando anunciou
que se ia embora, pediu-lhe a viúva que não esquecesse a casa.
- Aproveitarei o tempo - observou Félix -, enquanto não embarcam para a
Europa. Seu irmão diz-me que a viagem é breve.
- Se não houver transtorno. Em todo o caso, venha, e não faça visitas de
médico.
- Eu fui médico; fiquei com esse costume - respondeu Félix sorrindo.
- Já não é médico?
- Do corpo, não.
- Mas da alma?
- Talvez. Deixei agora mesmo um doente da alma que eu desejaria
apresentar-lhe, porque estes ares dão saúde, creio eu.
- De que sofre o seu doente?
Félix sorriu-se.
- Vítima de uma inconstância, moléstia vulgar. Está no período agudo. É
um pobre rapaz inocente e singelo, que vai buscar as regras da vida nos
compêndios da imaginação. Maus livros, não lhe parece?
Lívia não respondeu; estava embebida a ouvi-lo.
- Meneses não conhece outros - continuou Félix -. Parece filho daquele
astrólogo antigo que, estando a contemplar os astros, caiu dentro de um poço.
Eu sou da opinião da velha, que apostrofou o astrólogo: "Se tu não vês o
que está a teus pés, por que indagas do que está acima da tua cabeça?"
- O astrólogo podia responder - observou a viúva - que os olhos foram
feitos para contemplar os astros.
- Teria razão, minha senhora, se ele pudesse suprimir os poços. Mas que
é a vida senão uma combinação de astros e poços, enlevos e precipícios? O
melhor meio de escapar aos precipícios é fugir aos enlevos.
Lívia ficou pensativa alguns instantes.
- O pensamento é melancólico - disse ela -; contudo pode ser verdadeiro.
Mas por que razão condenaremos a vida contemplativa dos que não conhecem a vida
positiva? Os livros da imaginação... esses livros não são detestáveis, como o
senhor disse; não os há detestáveis nem ótimos. Deus os dá conforme a ciência
de cada um.
Félix despediu-se de Lívia, não enlevado, não palpitante, mas disposto a
uma aventura. Amiudou as visitas a Catumbi,
a grande aprazimento de Viana, que suspeitou alguma afeição entre os dous, e
imaginara uma aliança de família.
A presença de Félix era até vantajosa naquela casa. Entre a viúva e o
irmão havia um abismo. Eram dessemelhantes nos sentimentos, nos hábitos de
viver, na maneira de pensar. Lívia tinha alternativas de afabilidade e
rispidez, ao passo que o irmão era de uma inalterável paz de espírito. Viana
tinha cousas más e boas, sendo que as cousas boas eram justamente as que se
opunham ao gênio especulativo da viúva. Era homem essencialmente prático; o seu reino
era todo deste mundo. Apesar das suas pretensões a rapaz estouvado e
extravagante, tinha hábitos de ordem e economia. Lívia era a este respeito
negligente e "meia douda", como lhe chamava o irmão; alheava-se
muitas vezes das cousas que a cercavam para subir a um mundo superior e
quimérico. O médico era entre ambos uma espécie de mediador plástico. Não
pertencia à esfera de nenhum deles, mas sabia a maneira de os conciliar.
Félix encontrou algumas vezes em Catumbi o
Dr. Batista, que ele vira dançar com a viúva em casa do coronel. Lívia não
parecia prestar-lhe atenção, nem o pretendente magoar-se por isso. Era um
modelo de cálculo. Conhecia todos os artifícios da campanha amorosa, a
indiferença, o desdém, o entusiasmo, e até a resignação.
Uma noite em que saíram de lá juntos, Félix procurou sondar-lhe o
espírito a respeito da moça.
- Nada há - respondeu Batista com indiferença -; nem eu pretendo
cortejá-la. Mas, se o pretendesse, triunfaria; a paciência é a gazua do amor.
- Não lhe parece que essa sua máxima é imoral?
- Efetivamente é assim; mas é por isso mesmo que estes amores são
deliciosos.
Quinze dias depois apareceu Viana em casa de Félix. Deu-lhe parte de que
a irmã já não ia para a Europa.
- Por que motivo? - perguntou Félix.
- É justamente o que eu desejava saber - disse Viana com um gesto de mal
contido despeito -; mas estou certo de que o não saberei jamais. Aquela minha
irmã não me parece ter a cabeça no seu lugar.
- Alguma razão haveria. Estará doente?
- Está de perfeita saúde.
- Quem sabe se... algum namoro?
- Já pensei nisso - disse Viana -; pode ser algum namoro.
- Naquela idade as paixões são soberanas. Seria inútil querer
dissuadi-la e ainda que não fosse inútil, seria desarrazoado, porque uma viúva
moça... Ela amava muito o marido, não?
- Antes de casar, muito; três meses depois, muitíssimo; ao cabo de
alguns meses, nem muito nem pouco. Toda essa história é mistério para mim...
- Não lhe vejo mistério nenhum; o casamento é justamente isso: acalma os
afetos para os tornar mais duradouros. Se a paixão de sua irmã se tornou mais
calma...
- Não se trata disso. Lívia não amava menos; aborrecia o marido. Mas por
que nos demoraremos nestas cousas que não podemos explicar? A única explicação
que lhe acho é o seu caráter esquisito. O senhor não imagina bem que eterna
variação de gênio é aquela moça. Há dias em que se levanta meiga e alegre,
outros em que toda ela é irritação e melancolia. Ninguém a entende, e eu menos
que ninguém.
- Não esteja o senhor a exagerar uma cousa naturalíssima. Todos temos
essa mesma alteração de humor. Há manhãs tristes e aziagas. Quer que lhe dê um
conselho? Não a contrarie nunca, é o melhor.
- Mas o senhor há de concordar que quando a gente já preparava os beiços
para ir saborear a vida parisiense...
- Há tempo para tudo - disse Félix -, e o senhor ainda está moço. Iremos
juntos daqui a um ano.
- Palavra?
- Palavra.
VI
DECLARAÇÃO
- Então, já não vai para a Europa? - perguntou Félix à viúva nessa mesma
tarde.
- Quem lho disse?
- Seu irmão.
- Desfiz a viagem, bem contra a vontade dele, que me chamou caprichosa e
não sei que mais. Talvez tenha razão. Eu mesma não me entendo às vezes. Esta
viagem, que era um desejo ardente, acha-me agora fria. Que lhe parece isto?
- Alguma razão há de haver - ponderou o médico -; e eu sentiria se o
motivo...
- Se o motivo? - repetiu a moça.
Calaram-se e ficaram algum tempo a olhar um para o outro. A explicação,
que já os lábios não pediam nem davam, começaram a pedi-la e a lê-la os olhos
de ambos.
Lívia abaixou os seus.
- Vamos para o terraço - disse ela por fim -; a tarde está bonita.
A tarde estava realmente linda. Félix, entretanto, cuidava menos da tarde
que da moça. Não queria perder o ensejo de lhe dizer, como se fora verdade, que
a amava loucamente. Encostada ao parapeito do terraço que dava para a chácara,
a viúva simulava contemplar os esplendores do ocaso; na realidade, afiava o
ouvido para escutar a confissão amorosa.
Félix olhava para ela e não ousava romper o silencio. Quase a soltar dos
lábios a palavra decisiva, a si mesmo perguntava se ela não iria pesar no seu
destino mais do que imaginava então, e se daquele capricho de momento não
resultaria o mal de toda a sua vida. Mas a hesitação foi curta; Félix ia enfim
lançar a sorte, quando um escravo apareceu no terraço, a anunciar a visita do
Dr. Batista.
- Não quero falar a ninguém, João - disse a moça -; estou incomodada.
- Que resposta é essa? - perguntou Félix, baixinho, quando o escravo
voltou as costas.
- João! - disse a moça.
O escravo voltou.
- Eu hoje só posso receber as pessoas mais íntimas de casa, os amigos de
meu irmão. Às outras dize que estou incomodada.
O escravo saiu.
- Adota esta explicação?
- Antes essa - respondeu Félix -; é melhor para a senhora; sinto-a
contudo por mim; não quisera ser envolvido entre os íntimos da casa.
- Quer que eu corrija a ordem que dei?
- Não peço tanto; não tenho direito a isso; e todavia...
- E todavia?...
Houve um
curto silencio.
- Não me compreende? - disse Félix com voz quase sumida.
- Compreendo - murmurou ela, depois de uma pausa -; mas receio
enganar-me.
- Não se engana - insistiu Félix com calor -; amo-a, e seria impossível negá-lo,
porque a minha voz e o meu rosto hão de tê-lo dito melhor do que as minhas
palavras. Não percebe isso há muito tempo? Não adivinhou já que a esperança do
seu amor é para mim toda a felicidade de amanhã? Diga! Diga uma palavra só,
cruel ou benévola, mas uma e definitiva.
Lívia escutara-o enlevada, e sua resposta foi mais eloquente que a
declaração do doutor; estendeu-lhe a mão trêmula e fria, e embebeu nos olhos
dele um longo olhar de agradecimento e felicidade.
- Ama-me também? - perguntou Félix depois de alguns minutos de muda
contemplação.
- Oh! Muito! - suspirou a moça.
E ambos ali ficaram silenciosos, ofegantes e namorados, nesse êxtase
dulcíssimo que é porventura o melhor estado da alma humana. Ambos, porque o
coração do médico, naquele instante ao menos, palpitava com igual fervor.
- Muito! - repetiu Lívia, como se essa palavra fosse apenas um eco do
seu pensamento ou uma resposta à muda interrogação dos olhos do médico.
Félix passou-lhe o braço à roda da cintura e puxou-a docemente para si,
depois segurou-lhe a cabeça entre as mãos, e inclinou os lábios para lhe
imprimir um beijo na fronte. Deteve-o um rumor estranho, uma voz infantil e
desconhecida.
Instantes depois apareceu no terraço um menino de cinco anos, criança
gentil e esperta, rosada e gorda, como os anjos e os cupidos que a arte nos
representa em seus painéis.
- Mamãe! Mamãe! - gritava o pequeno, correndo a abraçar-se com a mãe e
fugindo à mucama que vinha atrás dele.
Lívia recebeu a criança nos braços; beijou-a e pô-la ao colo.
- Apresento-lhe meu filho - disse ela ao médico -; estava em casa da
madrinha; veio ontem para cá.
E voltando-se para o menino:
- Luís, conheces o Dr. Félix?
O menino olhou para o médico com a expressão pasmada e interrogativa das
crianças que veem uma pessoa pela primeira vez, e voltou-se para a mãe, sem
parecer impressionar-se muito. Lívia encheu-lhe as faces de beijos. A criança,
rindo de prazer, repeliu com as mãozinhas aquela chuva de carícias maternas.
- Ora bem - disse a viúva -, quem te deu ordem de andar a correr por
aqui?
- Ninguém - respondeu o menino -, eu pedi a Clara para me deixar vir;
ela não quis, mas eu vim. Não fiz bem, mamãe?
- Fizeste mal. Vai brincar, vai, mas não corras.
- Quem é esse moço? - perguntou Luís, olhando outra vez para Félix.
- Já te disse: é o Dr. Félix.
- Ah!
Luís encarou o médico; depois olhou para a mãe, e fez um gesto para
descer. Lívia pô-lo no chão.
- Posso ir à chácara?
- Podes; leva-o, Clara.
Luís deitou a correr seguido pela mucama. A mãe acompanhou-o com os
olhos até vê-lo desaparecer do terraço.
Durante esta cena, Félix parecera completamente estranho a tudo que o
rodeava. Não ouvia as repreensões da moça, nem a tagarelice da criança;
ouvia-se a si mesmo. Contemplava aquele quadro com deleitosa inveja, e sentia
pungir-lhe um remorso.
"É mãe", repetia o moço consigo; "é mãe!"
- Olhe - dizia a moça, debruçada sobre o parapeito que dava para a
chácara -; veja como ele vai correndo...
Félix debruçou-se também; o menino corria efetivamente adiante de Clara,
que o acompanhava de longe. De quando em quando, parava o menino aguardando a
mucama; mas tão depressa esta se lhe aproximava, a criança negaceava o corpo, e
deitava a correr outra vez. A mãe parecia esquecida de tudo mais; Félix
contemplava-a com religioso respeito. Estiveram assim calados alguns segundos.
De repente, Lívia voltou- se para o médico:
- Vê? - disse ela -; a pouco se reduz a minha felicidade: o senhor e
aquela criança.
Dizendo isto, deixou pender a fronte; Félix beijou-a ardentemente, mas
não pôde dizer nada. A comoção embargou-lhe a voz; a reflexão impôs-lhe
silêncio.
VII
O GAVIÃO E A POMBA
Iniciando afoutamente esta aventura, era natural que Félix saísse de Catumbi com
a vaidade satisfeita de um triunfador. Não era ele amado, e amado sem esforço
seu, sem resistência nem combate? E a mulher que lhe acabava de dar francamente
o coração não tinha todas as qualidades que podem seduzir um homem e
lisonjear-lhe o amor-próprio?
Qualquer outro teria motivo de se julgar superior ao resto dos mortais;
mas era a natureza mesma da vitória que vinha travar a felicidade de Félix. A
que propósito interviria o coração neste episódio, que devia ser curto para ser
belo, que não devia ter passado nem futuro, arroubos nem lágrimas?
"Fui longe demais", ia ele dizendo consigo; "não devia
alimentar uma paixão que há de ser uma esperança, e uma esperança que não pode
ser outra cousa mais que um infortúnio. Que lhe posso eu dar que corresponda ao
seu amor? O meu espírito, se quiser, a minha dedicação, a minha ternura, só
isso... porque o amor... Eu amar? Pôr a existência toda nas mãos de uma
criatura estranha... e mais do que a existência, o destino, sei eu o que isso
é?"
Neste ponto, parece que alguma ideia vaga e remota lhe surgiu no espírito
e o levou a uma longa excursão no campo da memória. Quando voltou à realidade
presente tinha o carro entrado no Largo do
Machado. Apeou-se e seguiu a pé para casa.
A viúva tornou a ocupar-lhe o espírito. Recapitulou então tudo o que se
passara em Catumbi,
as palavras trocadas, os olhares ternos, a confissão mútua; evocou a imagem da
moça e viu-a junto dele, pendente de seus lábios, palpitante de sentimento e
ternura. Então a fantasia começou a debuxar-lhe uma existência futura, não
romanesca nem legal, mas real e prosaica; como ele supunha que não podia deixar
de ser com um homem inábil para as afeições do céu.
"E que outra cousa quer ela?", dizia o médico a si mesmo.
"Era, sem dúvida, melhor que houvesse menos sentimento naquela declaração,
que tivéssemos navegado mais junto à terra, em vez de nos lançarmos ao mar
largo da imaginação. Mas, enfim, é uma questão de forma: creio que ela sente da
mesma maneira que eu. Devia eu tê-lo percebido. Fala com muita paixão, é
verdade; mas naturalmente sabe a sua arte; é colorista. De outro modo pareceria
que se entregava por curiosidade, talvez por costume. Uma paixão louca pode
justificar o erro; prepara-se para errar. Não me anda ela a seduzir há tanto? É
positivo; mete-se-me pelos olhos. E eu a imaginar que..."
Quando Félix chegou a casa, estava plenamente convencido de que a
afeição da viúva era uma mistura de vaidade, capricho e pendor sensual. Isto
lhe parecia melhor que uma paixão desinteressada e sincera, em que, aliás, não
acreditava. Não admira, pois, que ainda desta vez a lembrança de Lívia lhe não
perturbasse o sono, e que o primeiro clarão da aurora, atravessando os vidros
da janela da alcova, alumiasse o rosto do médico, tão grave e plácido como na
véspera.
Félix voltou a Catumbi naquele
mesmo dia. A viúva estava radiante de felicidade, trêmula de alegria.
Estendeu-lhe a mão, que ele apertou, não palpitante como ela, mas cheio de
delicadeza e graça. A presença de Viana, além disso, impedia qualquer outra
manifestação exterior. O parasita, que parecia empenhado em preparar uma
aliança de família com o médico, dispôs-se a não ser cruel para os dous
namorados; fechou os olhos, cerrou os ouvidos, e, se em todo o caso foi
importuno, não o deveu à vontade, mas à situação, porque em tais circunstâncias
nem todo o engenho de Voltaire pode
fazer um homem interessante.
Amiudaram-se ainda mais as visitas de Félix, que ali encontrou algumas
vezes a família do coronel Morais, e outras, poucas, da intimidade de Lívia. D.
Matilde sentia entusiasmo pelo médico; quanto a Raquel, olhava para ele com uma
espécie de adoração. Dos homens, alguns o detestavam cordialmente, outros
tinham-lhe medo, não raros, inveja, e alguns poucos, simpatia.
Félix, entretanto, parecia indiferente aos sentimentos que inspirava, e
deste modo obedecia a um sistema não menos que à disposição do seu espírito. O
mesmo praticava em relação ao amor. Evitava, quanto podia, animar as esperanças
da moça, e posto soubesse a fundo a retórica da paixão, não a empregava sem uma
parcimônia, que lhe parecia economia razoável.
Lívia, porém, não dissimulava nem hesitava; deixava transparecer no
rosto o que sentia no coração. Jogava com as cartas na mesa sem previsão nem
cálculo. Expansiva e discreta, enérgica e delicada, entusiasta e refletida,
Lívia possuía esses contrastes aparentes, que não eram mais que as harmonias do
seu caráter. Os próprios defeitos dela nasciam de suas qualidades. Era crédula
à força de ser confiante e ríspida com tudo o que lhe parecia baixo ou fútil.
Tinha a imaginação quimérica, às vezes, o coração supersticioso, a inteligência
austera, mas compensava estes defeitos, se o eram, por qualidades capitais e
raras.
Um dia, em que ambos conversavam do único assunto que lhes podia
interessar - pelo menos do único que lhe interessava a ela -, Félix pediu-lhe
explicação de uma cousa que lhe parecia obscura.
- Obscura? - repetiu Lívia.
- Lembra-se da noite em que a encontrei no Ginásio?
- disse o médico. Estava preocupada e alheia a tudo. Conversou mal e distraída,
interessavam-lhe as cenas amorosas, tudo mais parecia aborrecê-la. No fim do
terceiro ato levantou-se e foi-se embora. Diz-me, entretanto, que desde o sarau
do coronel já começava a sentir este amor que é a sua vida. Pois bem, não
estava eu lá, a seu lado, no teatro?
- Não.
- Oh!
- Estava outro homem, mui diverso deste que eu vejo, agora, ao pé de
mim, porque ainda me não amava. Mas não era só isso, era mais. Pensa que os
seus atos, sentimentos e pessoa não são objeto dos comentários estranhos?
- Importam-me tão pouco os comentários!
- Pois bem, falaram-me muito mal do seu coração naquele dia.
- Que lhe disseram desse viajante incógnito?
- Viajante? - perguntou Lívia.
- Que foi - emendou Félix.
- Disseram-me muitas cousas más.
- Deu-lhes crédito?
- Não, mas fiquei triste. Eu estava acostumada a admirá-lo de longe.
Conhecia-o pouco, mas meu irmão falava-me muita vez a seu respeito nas cartas
que me escrevia para Minas,
e Raquel fazia coro com ele.
- Seu irmão tem certo entusiasmo por mim - disse Félix -; é natural que
exagere os meus méritos. Quanto à filha do coronel, é uma criança, que se
acostumou a ver-me com olhos de irmã mais moça.
- Quer então que eu acredite antes nas cousas más?
- Nem más nem boas, Lívia; conheça-me primeiro; fará depois juízo
seguro.
- Oh! Conheço-te! - exclamou ela.
A entrada de Viana interrompeu o colóquio. Félix dirigiu-se à mesa e
abriu um álbum, enquanto Viana referia à irmã as peripécias de um jantar a que
assistira.
O álbum da viúva, que o médico abria pela primeira vez, estava já
alastrado de prosa e verso. Nem tudo era bom, como acontece nesses livros, que
são às vezes verdadeiros asilos de inválidos do Parnaso, onde
as musas reumáticas e manetas vão soltar os seus gemidos. Uma página
havia que lhe pareceu misteriosa: era uma declaração de amor sem assinatura.
Leu-a, e não pôde deixar de sorrir: só havia uma cousa pior que a forma, era o
pensamento.
- De que se ri? - perguntou a viúva.
Viana
aproximou-se de Félix e lançou os olhos para a página aberta.
- Ah! - disse ele estouvadamente -. Isto é de meu defunto cunhado.
Lívia estremeceu e corou.
"Viúva de um néscio!", pensou Félix. "Estava pedindo um
homem inteligente."
VIII
QUEDA
O desenlace desta situação desigual entre um homem frio e uma mulher
apaixonada parece que devera ser a queda da mulher; foi a queda do homem. Para
triunfar da viúva, Félix contava apenas com a sua resolução; mas a viúva, além
do seu amor, tinha dous auxiliares ativos e latentes: o tempo e o hábito. Cada
dia que passava caía como uma gota d'água no coração do médico e ia cavando
fundo com a fria tenacidade do destino.
Ironia da sorte chamará o leitor a este desfecho de uma situação que,
algumas semanas antes, tão outra se lhe afigurava. Chame-lhe antes lógica da
natureza, porque o coração de Félix, que aparentava ser de mármore, era
simplesmente da nossa comum argila. Não era seguramente um coração virginal e
puro; tinha uma certa dose do egoísmo que a natureza maternalmente repartiu por
todos os homens, e não se pode dizer que não fosse algum tanto céptico; mas
estes senões, exagerava-os ele de maneira que veio a perder, na imaginação dos
outros, a sua fisionomia original.
As armas com que lutava eram certamente de boa têmpera, mas, se valiam
muito para esgrimir, valiam pouco para pelejar. Com uma mulher que apenas
tivesse a soma de afeto necessária para dissimular o erro, o nosso herói
ficaria na altura da reputação; mas o amor da viúva era um verdadeiro combate.
Quando Félix chegou a encarar-lhe o coração, sentiu a fascinação do abismo, e
caiu nele.
Esta queda, como disse, foi lenta; o médico começou a sentir que a
presença da moça era para ele uma necessidade. Pesavam-lhe as ausências mais
longas, e, o que era mais, vinham suavizar-lhas umas saudades, que ele definia
por outro modo, mas que, em suma, eram saudades. Quando a ia ver, e à proporção
que se aproximava dela, sentia bater-lhe alguma cousa dentro do peito; o médico
dizia que era o sangue ainda juvenil e irrequieto. Seria uma razão fisiológica;
mas havia também uma razão moral; era a lava da paixão que se ia formando e
subindo até romper a garganta do vulcão. Longa foi a gestação do amor; mas quando
o médico descobriu o estado de sua alma, não era centelha que se pudesse
abafar, mas incêndio que lavrava e consumia tudo.
Decidam lá os doutores da Escritura qual
destes dous amores é melhor, se o que vem de golpe, se o que invade a passo
lento o coração. Eu por mim não sei decidir, ambos são amores, ambos têm suas
energias. O de Félix parecia ter criado no silêncio uma força invencível.
Um potro arisco e selvagem, quando a mão do homem lhe põe o freio pela
primeira vez, não se irrita mais do que o nosso herói no dia em que sentiu
violada a liberdade do seu coração. Cólera singular e insensata, mas amarga e
sincera. Planeou desde logo uma separação violenta, que lhe desse tempo e armas
para vencer-se a si próprio. A execução seguiu de perto a ideia; e o médico
cessou repentinamente as suas visitas a Catumbi.
A ausência, porém, foi ainda um auxiliar da viúva. O despeito do médico
não se aplacou, transformou-se; não acusava já a fraqueza do coração, mas a
rebeldia dele. O que a princípio lhe parecera necessário para restituir-lhe a
paz do espírito começou a ter a seus olhos o caráter de ingratidão. Ingratidão,
era já confessar muito, mas o médico foi além, achou-se ridículo. Aqui já não
era possível a resistência. Algum homem
pode gloriar-se de ser ingrato; dirá, com um moralista céptico, que é uma
maneira de ser independente. Mas ninguém é ridículo convencido;
convencer-se é emendar-se.
A essas razões que o médico dava a si próprio, e que eram filhas da
consciência, acresciam outras que ele não articulava, mas sentia, as saudades,
as recordações, os desejos, a voz misteriosa e constante que lhe sussurrava aos
ouvidos o nome de Lívia.
Demais, a bela viúva escreveu-lhe. Félix, como um verdadeiro namorado,
jurara não abrir as cartas que ela lhe mandasse, e correu à porta para receber
a primeira. Não era carta de recriminações, mas de surpresa e de lágrimas.
Quando veio segunda carta, já o médico sabia a outra de cor. A segunda era a
última, dizia Lívia; eram já recriminações, mas não contra ele, nem contra o
destino, eram recriminações contra si mesma. A melancólica resignação da moça
comoveu o médico; no fim de uma semana estava aos pés dela fazendo ato de
sincera contrição.
Lívia perdoou-lhe as lágrimas choradas durante aqueles oito dias de
angustiosa incerteza. Perdoou-lhas como sabem perdoar as almas verdadeiramente
boas - sem ressentimento. Mas a causa da ausência não a explicou Félix.
- Não me perdoou já? - disse o médico, quando ela lhe fez uma pergunta
direta a este respeito -. Isso basta; não queira saber a razão desta singular
loucura, que me levou tão longe do único lugar em que me é possível a
felicidade. Para minha expiação basta o que sofri também nestes oito dias e a
vergonha de ter...
Calou-se; receava dizer tudo. A moça ouviu aquelas palavras com manifesta
satisfação, e murmurou:
- Ciúmes?
Félix estremeceu. Uma sombra ligeira pareceu toldar-lhe os olhos. Lívia
inclinou para ele o rosto como querendo ler-lhe na fisionomia a verdade que ele
forcejava por esconder.
- Não - disse Félix -, não foram ciúmes. Ciúmes de quê e de quem?
- De ninguém, bem sei; mas está-me a parecer, Félix, que o seu amor é um
pouco visionário e melindroso. Oh! Não me lastimo por tão pouco; agradeço-lhe
até. Que perderia eu com isso? Alguns dias de paz, talvez; mas a certeza de ser
amada é uma grande compensação. O purgatório não é uma porta que abre para o
céu? Cada qual sabe amar a seu modo; o modo pouco importa; o essencial é que
saiba amar. Pode ser que eu me engane - continuou ela pondo-lhe as mãos na
fronte -, mas eu creio que há nesta cabeça muita imaginação, e imaginação
doente. Ou então...
- Ou então? - repetiu o médico, vendo que ela fazia uma pausa.
- Ou então, a doença está aqui - concluiu Lívia apontando-lhe para o
coração -. Não importa; eu suportarei tudo, contanto que me ame.
- Oh! Lívia - exclamou Félix, depois de lhe beijar ternamente a fronte
-, essa resolução será o penhor do nosso futuro. Consulte o seu coração; veja
se há nele bastante misericórdia para mim, e prometo-lhe que seremos felizes.
- Tudo lhe perdoarei, contanto que me ame - disse a moça.
Compreenderia ela então que dolorosa e pesada obrigação contraíra?
Talvez não. Confiava em si mesma, no prestígio do seu amor, no coração de
Félix, para vencer tudo, e realizar o que era agora o sonho da sua vida.
O caminho melhor para isto era seguramente o da igreja. Que obstáculo
podia haver? Um e outro dependiam exclusivamente de si; o casamento era o
desfecho lógico e sacramental daquele romance. Mas nem a viúva o insinuava, nem
o médico o propunha, e nesta situação mal definida alguns dias correram de
tranquila felicidade.
Aos olhos estranhos buscavam ambos esconder o seu segredo; mas a reserva
de Lívia era apenas a que bastava para acatar as conveniências, ao passo que a
de Félix era tão completa e calculada, que à própria moça iludia. Esta
facilidade de dissimulação desconsolou-a. Achava-a perfeita demais. Era um
sintoma de tranquilidade que desdizia com o amor impetuoso de Félix. Demais,
que razão haveria para esconder tão misteriosamente dos olhos dos outros uma
cousa que deveria e não tardaria a ser pública?
A indiferença de Félix, entretanto, não era tão completa como parecia,
era uma indiferença vigilante. Quando os olhos da viúva procuravam os do
médico, este desviava cautelosamente os seus; mas olhava, digamo-lo assim, por
baixo da pálpebra.
Foi então que começou para ela uma vida de luta.
IX
LUTA
O amor de Félix era um gosto amargo, travado de dúvidas e suspeitas.
Melindroso lhe chamara ela, e com razão; a mais leve folha de rosa o magoava.
Um sorriso, um olhar, um gesto, qualquer cousa bastava para lhe turbar o
espírito. O próprio pensamento da moça não escapava às suas suspeitas: se
alguma vez lhe descobria no olhar a atonia da reflexão, entrava a conjeturar as
causas dela, recordava um gesto da véspera, um olhar mal explicado, uma frase
obscura e ambígua, e tudo isto se amalgamava no ânimo do pobre namorado, e de
tudo isto brotava, autêntica e luminosa, a perfídia da moça.
Lívia preferia decerto uma confiança honesta e leal, mas a desconfiança
estava longe de lhe amargurar o coração, aceitava-a com alegria.
- Antes isto - dizia-lhe depois de uma reconciliação -; vejo que me ama.
A confiança também se parece com a indiferença, e a indiferença é o pior de
todos os males.
Esta filosofia teve seus instantes de desmaio. Não bastava a força do
amor para resistir à suspeita de todos os dias, que se apagava às vezes logo,
mas que renascia depois, para de novo se apagar e renascer. Lívia começou a
fugir dos lugares que até então frequentava habitualmente. Raras vezes aparecia
no teatro ou numa reunião. Félix compreendeu a causa desta reserva e disse-lha.
A moça negou; mas, como ele insistisse em afirmar e pedir que ela não alterasse
os seus hábitos, respondeu:
- É bom de dizer, Félix; assim vamos melhor; lá fora como aqui, lá pior
do que aqui, a menor cousa basta para lhe transviar o espírito.
- Juro-lhe que não.
Jurava, mas quebrava o juramento. O espírito não ratificava as promessas
do coração. De que lhe servia a ela a máxima prudência nas suas relações com as
demais pessoas, se tudo era pouco para obter a confiança de Félix? Uma hora de
inalterável felicidade era comprada à custa de muitas horas de tédio, às vezes
de lágrimas. Ele as sentia decerto, e pagar-lhas-ia com sacrifícios, se
precisos fossem; mas eram curtos esses lúcidos instantes.
Lívia não se acostumou a ler logo na fisionomia do médico. Ele possuía
em alto grau a faculdade de esconder o bem e o mal que sentisse. Era uma
faculdade preciosa, que o orgulho educara, e se fortificou com o tempo. O
tempo, entretanto, a pouco e pouco lhe foi adelgaçando essa couraça, à medida
que se prolongava e multiplicava a luta. Então os olhos da viúva aprenderam a
soletrar-lhe no rosto os terrores e as tempestades do coração. Às vezes, no
meio de uma conversa indiferente, alegre, pueril, os olhos de Lívia se
obscureciam e a palavra lhe morria nos lábios. A razão da mudança estava numa
ruga quase imperceptível que ela descobria no rosto do médico, ou num gesto mal
contido, ou num olhar mal disfarçado.
Esta situação pôde esconder-se aos olhos de todos, menos aos de Luís
Batista. Observador e perspicaz, e ao mesmo tempo sem paixões nem escrúpulos,
percebeu este que quanto mais o amor de Félix se tornasse suspeitoso e
tirânico, tanto mais perderia terreno no coração da viúva, e assim, roto o
encanto, chegaria a hora das reparações generosas com que ele se propunha a
consolar a moça dos seus tardios arrependimentos.
Para alcançar esse resultado, era mister multiplicar as suspeitas do
médico, cavar-lhe fundamente no coração a ferida do ciúme, torná-lo em suma
instrumento de sua própria ruína. Não adotou o
método de Iago, que lhe parecia arriscado e pueril; em vez de insinuar-lhe a
suspeita pelo ouvido, meteu-lha pelos olhos.
A dificuldade era certamente maior e mais delicada, mas o pretendente
tinha em larga escala as qualidades precisas para ela. Era-lhe necessário
afetar com a moça uma intimidade misteriosa, mas discreta, sem aparato, antes
cercada de infinitas cautelas, tão hábil que ela não percebesse, mas tão
claramente dissimulada, que fosse direito ao coração de Félix.
Mas a mulher dele? A mulher dele, amigo leitor, era uma moça
relativamente feliz. Estava mais que resignada, estava acostumada à indiferença
do marido. Dera-lhe a Providência essa
grande virtude de se afazer aos males da vida. Clara havia buscado a felicidade
conjugal com a ânsia de um coração que tinha fome e sede de amor. Não logrou o
que sonhara. Pedira um rei
e deram-lhe um cepo. Aceitou o cepo e não pediu mais.
Todavia, o cepo não o fora tanto antes do casamento. Paixão não a teve
nunca pela noiva; teve, sim, um sentimento todo pessoal, mistura de
sensualidade e fatuidade, espécie de entusiasmo passageiro, que os primeiros
raios da lua de mel abrandaram até apagá-lo de todo. A natureza readquiriu os
seus aspectos normais; a pobre Clarinha, que havia ideado um paraíso no
casamento, viu desfazer-se em fumo a sua quimera, e aceitou passivamente a
realidade que lhe deram - sem esperanças, é certo, mas também sem remorsos.
Faltava-lhe -
e ainda bem que lhe faltava - aquela curiosidade funesta com que o anfíbio clássico,
desenganado do cepo, entrou a pedir um rei novo e veio a ter uma serpente que o
engoliu. A virtude salvou-a da queda e da vergonha. Lastimava-se,
talvez, no refúgio do seu coração, mas não fez imprecações ao destino. E como
nem tinha força de aborrecer, a paz doméstica nunca fora alterada; ambos podiam
dizer-se criaturas felizes.
Ora, pois, enquanto Clarinha nenhum lugar ocupava no espírito do marido,
este executou o plano que havia organizado. O resultado foi lento, mas certo. O
coração de Félix bebeu aos poucos o veneno que lhe propinava tranquilamente o
astuto rival; mil circunstâncias fortuitas vieram favorecer a obra de Luís
Batista. O espírito de Félix era apropriado terreno para ela; a suspeita rara
vez lhe morria em embrião; uma vez lançada a semente, germinava com força,
crescia, apoderava-se dele, e então batia a hora da crise, a hora que o seu
rival pacientemente esperou, e conseguiu.
Desta vez assentou Félix numa resolução heroica: romper o encanto que o
prendia à bela viúva. Tinham já passado alguns meses, todos eles assim
entremeados de felicidade e amargura. Cem vezes se convencera das suas
injustiças; mas a cada suspeita nova ressurgiam as anteriores, as que ela
perdoara, e a última confirmava então as primeiras, e o pobre rapaz achava-se
sinceramente ludibriado e ridículo.
Escreveu uma carta longa e violenta, em que acusava a moça de perfídia e
dissimulação. Havia amargura na carta, mas havia também ódio e desprezo, tudo
quanto podia ferir para sempre um coração que até ali soubera amar e sofrer,
mas que enfim podia cansar e desprezar.
Enviada a carta, deixou-se ele entregue à sua dor, disposto a não voltar
a Catumbi.
Ninguém viu então uma lágrima que o desespero lhe arrancou; e que ele se
apressou de enxugar com vergonha de si mesmo. Recapitulou então todos os
sucessos dos últimos dias; nunca lhe parecera mais evidente a traição da moça,
nem mais cruel a situação do seu espírito. Um raio de esperança veio entretanto
projetar-se na sua noite de dúvidas. Imaginou que tudo podia ser erro e ilusão,
e esperou que a resposta de Lívia tudo viesse esclarecer.
Nada esclareceu a resposta da moça, porque o portador da carta voltou
sem ela. Ao ciúme que o devorava, veio misturar-se o despeito; complicou-se a
dor com o orgulho ofendido. Lívia apareceu-lhe com todos os caracteres de uma
loureira vulgar, e loureira não traduz bem o pensamento do moço.
Nesse estado passou Félix o resto do dia. Longas lhe correram as horas,
friamente longas como elas são, quando o coração padece ou espera. Enfim, caiu
a tarde, apagou-se de todo o sol, as sombras da noite começaram a lutar com os
derradeiros lampejos do crepúsculo, até que de todo dominaram o céu.
A melancolia da hora insinuou-se no coração do médico, e a pouco e pouco
lhe aquietou o desespero do dia. Félix meditou longo tempo na situação que as
circunstâncias lhe haviam criado. Viu o imenso espaço que aquele amor lhe
tomara na vida, e a terrível influência que poderia exercer nela, caso não
achasse forças para resistir à separação. Qual seria o meio de escapar a esse
desenlace, pior que tudo? Félix pensou numa viagem, como o meio mais fácil e
pronto. Dispunha mentalmente as cousas para esse fim, quando ouviu parar um
carro.
Daí a pouco entrou um escravo dizendo que uma pessoa insistia em
falar-lhe: era uma senhora.
- Uma senhora! - repetiu Félix.
Era Lívia. Quando Félix chegou à sala, estava ela à porta, com o rosto
coberto por um véu que arregaçou imediatamente. Félix não pôde reter um grito
de surpresa.
Lívia trazia pela mão um menino: era o filho. Caminhou para o médico
depois de alguns instantes de absoluto silêncio, e estendeu-lhe a mão.
- Não esperava a minha visita? - disse ela com tranquilidade.
- Confesso que não.
- Devia esperar, porque eu não havia respondido à sua carta, e alguma
cousa cumpria que lhe dissesse.
- Não receou que os olhos da sociedade... - disse ele.
- A sociedade está tomando chá - atalhou a viúva procurando sorrir -.
Era preciso que eu viesse e vim.
Félix fez um
movimento.
- Sim, era preciso - insistiu Lívia -. Uma carta seria já inútil; entre
nós as cartas perderam a virtude, Félix. Eu já não sei, já não tenho palavras
com que lhe restitua a confiança ao coração. Esta ousadia talvez...
A luz batia de chapa no rosto da moça; Félix viu tremerem-lhe duas
lágrimas nos olhos, hesitarem um instante, e rolarem depois na face, levemente
corada de agitação e de pejo.
- Fui talvez cruel no que lhe escrevi - disse ele - e quero crer que
fosse também injusto, mas amo-a, é todo o meu crime...
Lívia suspirou.
- Não o amo eu também? - disse ela -. Nem por isso sou cruel ou injusta.
Mas não o acuso; se o acusasse não viria aqui. Venho porque sei que padece, e a
despeito de tudo devia vir.
Félix conduziu-a para o sofá, e sentou-se numa cadeira. Luís ficou de
pé, entre ele e ela, meio indiferente, meio curioso do que ouvia sem entender.
- Não receou que este menino pudesse dizer alguma cousa? - perguntou
Félix.
- Não pensei nisso. Fui visitar Raquel, que está muito mal; fui só com
ele. Tinha a ideia de vir às Laranjeiras:
isso dominava tudo. Se conseguir dissipar-lhe as novas dúvidas que o afligem,
pouco me importam as consequências. Que quer? Eu sou assim. Vejo no mundo o meu
amor e a sua felicidade; tudo o mais me é estranho ou nulo.
Lívia dizia estas palavras com um tom singelo e verdadeiramente d'alma,
que comoveu o médico.
- Oh! Para isso basta uma cousa - disse Félix com impetuosidade -.
Jura-me que nenhuma razão havia para suspeitar?
Lívia abriu muito os olhos como espantada do que ouvira; depois,
abanando tristemente a cabeça:
- O senhor há de quebrar todo o meu orgulho - disse com amargura -. Eu
arrisco tudo para lhe restituir a felicidade e a paz; o senhor recompensa-me
este sacrifício com a humilhação. Jurar-lhe! De que serve um juramento mais
entre nós? Se o que acabo de fazer não é bastante, Félix, concluamos aqui o
nosso romance; e oxalá que alguma página dele possa algum dia lembrar-lhe com
saudade.
Dizendo estas palavras, a moça voltou o rosto para esconder a sua
comoção. Félix sentiu pungir-lhe um remorso, e teve ímpeto de cair aos pés da
bela viúva. Murmurou algumas palavras, que ela não percebeu ou não ouviu, até
que o menino chamou a atenção de ambos, dizendo:
- Vamos, mamãe?
Lívia levantou-se e desceu o véu sobre o rosto.
- Perdoe-me tudo - disse Félix -; ainda uma vez lhe peço perdão. Não me
julgue como os outros fariam, se conhecessem esta triste história de alguns
meses. Não sou mau; falta-me confiança; algum dia lhe direi por quê. Por agora,
perdoe-me outra vez. Injuriei-a, bem sei; não devia pedir-lhe nada mais, porque
me deu generosamente a maior consolação que o meu espírito ousaria esperar.
- Esse homem? - disse a viúva, depois de um instante.
- Por que me pergunta?
- Quero afastá-lo de minha casa, se ele lá vai, ou evitar as ocasiões de
me encontrar com ele.
- É um homem que a não respeita, sequer, um libertino, cuja mulher é um
anjo...
- O Dr. Batista?
- Esse.
Lívia estendeu-lhe a mão. Félix quis ainda falar-lhe, mas a viúva
observou que era tarde e dirigiu-se para a porta. Félix acompanhou-a até o
jardim. Ao despedir-se dela pela última vez, o médico apertou-lhe
fervorosamente a mão.
- Perdoa-me?
- Sim! - disse ela.
E pela primeira vez nessa noite era a sua voz terna e amorosa como de
costume.
Félix viu-a entrar no carro que partiu imediatamente. Voltou para a
sala. Estava irritado contra si mesmo. Reconhecia a sua precipitação; achava-se
grosseiramente injusto. Se lhe houvera lembrado a visita da moça, tê-la-ia
pedido como o meio único de lhe desvanecer de todo as suspeitas. Agora que ela
o deixava, acusava-se de a haver obrigado àquele extremo recurso.
A noite pareceu-lhe ainda mais longa que o dia. Velava e remordia-lhe a
consciência. Ouviu bater uma por uma as horas todas, ansioso por que viesse o
dia seguinte para ir a Catumbi resgatar
à força de ternura e respeito a injustiça com que tratara a viúva. Cerrou os
olhos quando a arraiada despontou no céu; pouco dormiu, entretanto. Ao
levantar-se tinha o espírito mais sossegado, e pôde apreciar melhor a situação.
"O casamento me restituirá a confiança", pensava ele;
"quando estivermos juntos os dous, afastados da convivência e do contato
de estranhos, a paz morará no meu coração; só então seremos felizes sem
amargura nem remorso."
X
A ENFERMA
A doença de Raquel era grave; durante alguns dias chegaram a recear um
desenlace funesto. Os velhos pais quase enlouqueceram, quando o médico os
preparou para a terrível catástrofe. A menina percebeu o seu estado, mas nem o
medo da morte, nem a saudade da terra lhe fez doer o coração. Morria como flor
que era. A mágoa era toda para os que a viam assim condenada sem remédio.
O médico assistente dera à moléstia um nome tirado não sei se do grego,
se do latim. Na opinião da mãe, havia alguma cousa mais do que o nome e a
moléstia; havia uma inexplicável melancolia, anterior à doença, uma espécie de
tédio precoce da vida, se não era antes alguma esperança malograda - ou, mais
claramente, alguma afeição sem esperança.
Para obter dela a confissão que imaginava, tinha D. Matilde o necessário
tato e doçura: era mulher e mãe. Mas, ou porque nada houvesse realmente, ou
porque quisesse levar consigo o segredo da sua melancolia, Raquel nenhuma
confissão lhe fez.
Dous dias depois da visita de Lívia, Félix foi à casa do coronel. O
coronel estava na sala, mergulhado numa poltrona, com os olhos parados e as
feições abatidas pela vigília e pela dor. Quis levantar-se quando Félix
apareceu à porta, mas este correu para ele e impediu o movimento.
- Soube anteontem do estado de sua filha - disse Félix sentando-se ao
lado do velho pai -. Disseram-me que estava mal...
- Mal - repetiu o coronel -, definitivamente mal. A pouca esperança que
tínhamos veio tirar-no-la o médico. O senhor não sabe o que é perder assim
metade da alma.
Félix disse algumas palavras banais de consolação, e chegou até a falar
de esperança; mas, ainda que a esperança fala sempre ao coração dos
desgraçados, o bom velho em outra cousa não acreditava mais que na morte.
Algum tempo estiveram calados; enfim o coronel rompeu o silêncio:
- Raquel é muito sua amiga - disse ele -. Duas vezes perguntou pelo
senhor.
- Desde quando está doente?
- De cama está há quinze dias; mas já sofria antes disso. A princípio
não me deu muito cuidado; a moléstia, porém, agravou-se rapidamente, e tem ido
a pior.
Foram interrompidos pelo médico assistente. Tinha este sido companheiro
de Félix na escola. Ao vê-lo ali suspeitou que o tivessem mandado chamar; Félix
apressou-se a explicar o motivo da sua visita.
- Em todo o caso, doutor - disse o outro -, aproveito as suas luzes, e
façamos, se lhe parece, uma conferência.
O coronel foi ver se Raquel estava acordada; voltou pouco depois e
acompanhou os dois médicos à alcova da doente.
Félix foi o primeiro que assomou à porta; parou alguns instantes,
impressionado com o espetáculo que se lhe oferecia.
Sentada à cabeceira da cama estava D. Matilde, descorada e abatida, com
os olhos túmidos, e porventura cansados de chorar. Aos pés da cama via-se uma
moça amiga da infância de Raquel, e sua dedicada enfermeira nesta ocasião.
Ambas, triste e silenciosamente, contemplavam a doente.
Raquel estava branca como a fronha do travesseiro em que descansava a
formosa cabeça. Tinha os lábios entreabertos e a respiração curta e difícil. O
pequeno rumor que fizeram os médicos ao entrar um pouco a sobressaltou. Raquel
abriu os olhos, que ardiam de febre.
Quando Félix se aproximou do leito e tomou o pulso da moça, esta olhou
para ele e fez um gesto de espanto. Olhou depois em volta de si, como se
duvidasse do lugar em que se achava. D. Matilde inclinou-se para a filha e
disse:
- É o Dr. Félix.
Raquel olhou outra vez para Félix, com aquele sorriso apagado e triste
dos doentes e murmurou:
- Obrigada!
- Como se sente? - perguntou Félix.
- Melhor - disse ela com uma voz tão fraca que parecia um suspiro
- Deveras melhor?
Raquel fez um gesto de indiferença e não respondeu.
- Vamos lá, não desanime - disse Félix - e sobretudo não faça
entristecer seus pais, que lhe querem tanto.
Félix examinou a doente, fazendo-lhe algumas perguntas, a que ela
debilmente respondia. Quando ele cessou de a interrogar, a moça murmurou:
- Morro, não é?
- Não - disse Félix -, não há de morrer, não deve morrer. Tem ainda vida
larga, mas é preciso ânimo.
Raquel fez um gesto de quem não acreditava nas boas palavras do médico e
voltou as olhos para a mãe. D. Matilde tinha os seus cravados em Félix, como se
lhe quisesse ler no rosto a sentença da filha. A doente pareceu adivinhar o
pensamento, e disse com esforço:
- Por que não dá as suas consolações a mamãe?
A conferência não durou muito tempo. Félix começou opinando por uma
modificação no tratamento até ali seguido, e declarou que não julgava todas as
esperanças perdidas. O colega concordou facilmente na alteração pedida por
Félix, tanto mais, disse ele, quanto as esperanças eram nenhumas.
Em sua opinião, Raquel estava irremediavelmente perdida. Não era opinião
aérea e infundada; ele podia demonstrá-la com argumentos cabais e irrefutáveis.
Demonstrou-o efetivamente, durante vinte minutos, com a justa apreciação dos
fatos, os dados seguros da ciência, e uma dialética tão cerrada que era
impossível fazer-lhe a menor objeção.
Quinze dias depois, entrava Raquel em convalescença.
No sentir dos pais, era Félix o salvador da filha. Fora ele quem lhes
restituíra a esperança, e a realizara com os seus bons conselhos e diligente
desvelo.
O colega de Félix, para quem o restabelecimento da moça era a destruição
de todas as noções médicas recebidas, ficou profundamente surpreendido com esse
resultado. Em todo caso, era impossível negá-lo; limitou-se a aplaudi-lo, e
quando a moça entrou em convalescença aconselhou os pais que a mandassem para
algum arrabalde da cidade, a fim de respirar ares melhores.
Não podia vir mais a propósito o conselho. Lívia mudara-se para as Laranjeiras.
A ideia da mudança era de Viana, que um dia a propôs à irmã, e fora aprovado
por ela. A casa ficava pouco acima da de Félix, do lado oposto.
Era um prédio elegante, levantado no meio de uma chácara, não extensa
nem esmeradamente tratada. Viana, entretanto, organizara um programa de
reforma, que prometia executar pontualmente. Seu contentamento parecia não ter
limites; além de preferir aquele bairro ao outro em que morava, havia a
circunstância de ir ficar ao pé da casa de Félix - o que era já meia
felicidade, dizia ele.
Lívia aprovara a mudança sob a influência de igual ideia. Aqueles
últimos dias tinham sido de plena e deliciosa paz. Seus projetos de futuro eram
imensos; delineava uma vida independente de todas as escravidões sociais, vida
exclusiva deles, cheia de todos os prestígios da poesia e do amor. Às vezes
receava que esses sonhos fossem apenas sonhos. Ainda assim não os dera por
nenhum preço deste mundo.
Estavam então nos primeiros dias de outubro; o casamento fora marcado
para meado de janeiro. Marcado, entenda-se bem, apenas entre os dous, porque
Félix conseguira da viúva a promessa de que a notícia seria dada nas vésperas
do acontecimento.
- Mas a razão deste segredo? - perguntou Lívia depois de lhe prometer o
que pedia.
- Um capricho.
A razão verdadeira era a vacilação do seu espírito; mas a que ele deu
contentou perfeitamente a moça.
- Se eu tivesse o teu coração - disse ela -, desconfiava desta
exigência; mas, vê lá, eu creio em ti.
Estavam sós na chácara; Viana, fiel ao seu programa de não perturbar os
dous namorados, foi meditar a alguma distância nas reformas que pretendia
fazer. Caminhavam os dous calados e distraídos, ou melhor, concentrados em si
mesmos. De repente, a viúva levantou a cabeça e disse como continuação das suas
anteriores palavras:
- Há contudo ocasiões em que esta confiança parece abalar-se, não porque
eu duvide de ti, mas porque duvido do destino. Já te disse que sou
supersticiosa - defeito das mulheres e das crianças. Estremeço algumas vezes,
encaro o futuro, e, sem saber por que, pergunto a mim mesma qual será o fim de
tudo isto. Desmaios apenas, e raros, de um coração que ambiciona, talvez, mais
do que poderia obter.
- Não te parece que eu esteja emendado? - disse Félix sorrindo -. Há
quantos dias não há sequer...
- Cala-te! - interrompeu Lívia tocando-lhe os lábios com os dedos -.
Tenho medo de te ouvir falar assim.
E depois de um instante de silêncio:
- Não é o teu coração que me faz tremer; o teu coração é bom. Não é
também o teu espírito, apesar de caprichoso, visionário, inconstante. Receio do
futuro, à vista do passado.
- Do passado? - perguntou Félix estacando o passo.
Lívia suspirou.
- Que houve de mau no teu passado? - continuou o médico fitando nela um
olhar perscrutador.
- Tudo.
Havia perto um velho sofá de vime. Lívia encaminhou-se lentamente para
ele e sentou-se. Félix contemplou-a algum tempo do lugar em que ficara. Já não
sorria; a dúvida ensombrava-lhe os olhos. Enfim, deu alguns passos e parou em
frente dela.
XI
O PASSADO
- Serei indiscreto perguntando que passado foi esse? - disse Félix
depois de alguns instantes.
- Oh! Descansa! Não me pesa nada na consciência; mas no coração...
- Amaste alguém?
- Amei a meu marido.
A esta resposta de Lívia seguiu-se novo e longo silêncio. A memória do
passado a que ela tão misteriosamente aludira parecia doer-lhe na alma.
Arfava-lhe o seio, e as mãos, em que o médico amorosamente tocou, estavam
geladas e trêmulas.
- Não acreditas que eu possa compreender-te melhor que os outros? -
perguntou finalmente o médico.
- Talvez não.
Félix fez um gesto de despeito. A moça arredou o vestido e abriu espaço
no sofá, onde o médico se sentou a um sinal dela.
- Talvez me não compreendas melhor que os outros - continuou Lívia - e
com isto não quero dizer que sejas tão vulgar como os mais deles. Não o és; mas
há cousas que um homem dificilmente compreenderá, creio eu.
- Nem quando ama? - perguntou Félix.
Lívia não respondeu; Félix continuou:
- Mas que passado foi esse? Posso não compreender-te, como dizes, mas
saberei dizer-te algumas palavras de consolação, e dissipar com elas a tristeza
que te ficar desta confidência, que não é um remorso, decerto.
- Amei a meu marido - começou Lívia - e toda a minha confidência se
resume nessas poucas palavras. Tive uma paixão da primeira idade, quando o amor
vem surpreender a ignorância do coração. Será esse o amor mais forte? Há quem diga
que o primeiro amor nasce apenas da necessidade de amar. Pode ser.
Hoje que te amo sinto que pode ser assim. Em todo o caso, aquele afeto
dominou-me toda; cobrei uma vida que me parecia imortal.
- E ele?
- Amava-me, creio, mas não entendíamos o amor do mesmo modo; tal foi o
meu doloroso e tardio desencanto. Para mim era um êxtase divino, uma espécie de
sonho em ação, uma transfusão absoluta de alma para alma; para ele o amor era
um sentimento moderado, regrado, um pretexto conjugal, sem ardores, sem asas,
sem ilusões. Erraríamos ambos, quem sabe?
- Vejo que eram incompatíveis - interrompeu Félix -; mas, por que exigir
de todos essa maneira de ver e sentir, que é mais da imaginação que da
realidade?
Lívia levantou os ombros.
- Estou explicando a situação da minha alma - continuou ela -. Foi
aflitiva e triste; não lha ocultei. Riu-se de mim. Era um homem apático e frio;
honesto, é verdade, e bom coração, mas falávamos língua diversa e não nos
podíamos entender. Confiei todavia na influência do amor. Empreendi a tarefa de
o trazer à atmosfera dos meus sentimentos, errada tentativa, que só me produziu
atribulação e cansaço. Fatigava-o com isso a que ele chamava pieguices
poéticas; da fadiga passou à exasperação, da exasperação ao tédio. No dia em
que o tédio apareceu conheci que o mal estava consumado. Quis emendá-lo e não
pude. Tinha feito da nossa vida conjugal um deserto; e se a minha alma clamava
contra o destino, minha consciência me acusava de um erro, o erro de haver
perturbado a paz doméstica, a troco de um sonho que não veio. Não me faço
melhor do que sou, bem vês; mas uma parte da culpa não será da natureza que me
fez tão pueril? Tal é o meu receio agora - continuou Lívia depois de alguns
segundos de silêncio -; às vezes cuido que não vim ao mundo para ser feliz nem
para dar a felicidade a ninguém. Nasci defeituosa, parece. Serás tu capaz de
desfazer a apreensão ou corrigir o defeito?
A viúva concluiu estendendo-lhe a mão, que o médico apertou entre as
suas. Um sorriso de simpatia ou de comiseração, ou de ambas as cousas juntas,
entreabriu os lábios de Félix. Nenhum deles falou; ambos pareciam conversar
consigo mesmo. Enfim, a viúva repetiu a pergunta.
- Talvez possa dissipar-te a apreensão - respondeu Félix -; mas, creio
que não será fácil. Tens um coração ainda muito criança, e que o há de ser até
a morte, penso eu.
Félix calou-se, e contemplou à vontade a fisionomia da viúva, que tinha
os olhos postos no chão, absorta e pensativa. A pouco e pouco o rosto do médico
se foi igualmente fechando, e ambos, durante largo espaço, se deixaram ir na
corrente de seus pensamentos sombrios. Félix foi o primeiro que despertou do
letargo.
- Naufragaste à vista de terra - disse ele -, e do naufrágio trouxeste
apenas úmidos os vestidos. Sabes o que é naufragar em mar alto e solitário, e
perder tudo, até a vida? Foi assim comigo.
- Sim? - disse Lívia com um tom em que a alegria se misturava à
curiosidade.
Félix não pôde reter um sorriso.
"O infortúnio é egoísta", pensou ele.
E continuou:
- Sim, perdi muito mais. Abraçar um cadáver, que é isso para quem já
abraçou uma serpente? Tu perdeste apenas alguns anos de amor mal compreendido;
não perdeste um bem precioso, que o tempo me levou: a confiança. Podes hoje ser
feliz do mesmo modo que o querias ser então; basta que te ame alguém. Eu não,
minha querida Lívia, falta-me a primeira condição da paz interior: eu não creio
na sinceridade dos outros.
Aqui parou como se esperasse alguma observação da viúva; ela, porém,
olhava para ele tranquila e até risonha. Félix continuou as suas confidências
do passado. Eram histórias de afeições malogradas e traídas, contadas com
sincera expansão, como se estivesse falando a si mesmo. Às vezes a comoção
fazia tremer-lhe a voz, e nessas ocasiões, sobretudo, lia-se nos olhos da moça
o enlevo com que ela ouvia falar-lhe o coração.
- Ninguém esperdiçou mais generosamente os afetos do que eu - continuou
o médico -, ninguém mais do que eu soube ser amigo e amante. Era crédulo como
tu; a hipocrisia, a perfídia, o egoísmo nunca me pareceram mais que lastimáveis
aberrações. Meu espírito criara um mundo seu, uma sociedade
platônica,- em que a fraternidade era a língua universal, e o amor,
a lei comum. Deixei-me ir assim, rio abaixo dos anos, gastando a seiva toda da
juventude, sem cálculo nem arrependimento, até que me bateu a hora das
decepções funestas.
Calou-se. Sentira um rumor próximo; era Viana que passeava na chácara
entregue às suas combinações de horticultura. Ouviria ele a voz de Félix?
Parece que sim, porque a pouco e pouco se foi afastando do lugar. Os dous
ficaram outra vez sós. O médico prosseguiu:
- Não me caíram as ilusões como folhas secas que um débil sopro desprega
e leva, foram-me arrancadas no pleno vigor da vegetação. Não me deixaram essas
doces recordações, que são para as almas enfermas como que uma aura de
vitalidade. Meu espírito ficou árido e seco. Invadiu-me então uma cruel
misantropia, a princípio irritada e violenta, depois melancólica e resignada.
Calejou-se-me a alma a pouco e pouco, e o meu coração literalmente morreu.
Félix continuou a narração por este mesmo tom elegíaco e triste. Foi
longa e fiel. Se a viúva não o escutasse só com o coração, poderia perceber
alguma cousa mais do que ressentimento e amargura. Félix não era virtualmente
mau; tinha, porém, um cepticismo desdenhoso ou hipócrita, segundo a ocasião.
Não perceberia só isso; veria também que a natureza fora um tanto cômplice na
transformação moral do médico. A desconfiança dos sentimentos e das pessoas não
provinha só das decepções que encontrara; tinha também raízes na mobilidade do
espírito e na debilidade do coração. A energia dele era ato de vontade, não
qualidade nativa: ele era mais que tudo fraco e volúvel.
Lívia não percebia nada disto; escutava-o com a fé pia de um coração
amante. Sabendo que a razão do atual abatimento eram os infortúnios passados,
ela confiava de si mesma o renovar aquela alma que envelhecera antes do tempo.
Tais foram as suas consolações quando o médico terminou a longa confidência.
Ele agradeceu-lhas comovido, não sem lhe perguntar se ela teria força bastante
para concluir essa missão piedosa.
- Tenho - afirmou Lívia.
- É certo que me ressuscitaste - continuou o médico -; e se o futuro me
guarda ainda alguns dias de felicidade sem mescla, a ti só os deverei, minha
boa Lívia; tu só haverás feito o milagre. Mas...
- Mas? - repetiu a moça com impaciência.
- A obra não está completa - continuou Félix -; metade apenas. Fizeste
brotar dentre as ruínas uma flor solitária, mas bela; única neste árido terreno
do meu coração. Não basta; é preciso agora um raio que a anime e lhe conserve o
perpétuo viço; essa é a confiança, não de uma hora, mas a de todos os dias, a
que não falece nunca e nos restitui a serenidade dos primeiros tempos. Sem ela,
o meu amor será um largo e inútil martírio.
Dizendo isto, conchegou-a ao seio; tocavam-se quase os rostos, que a
ternura, não a voluptuosidade, enlanguescia. Não foi longo esse instante de
mútua contemplação, mas valeu por muitas horas de prática. Se a vida pudesse
ser eternamente aquilo, é provável que o coração de Félix adquirisse a paz que
almejava. Enfim, a moça deixou cair o corpo, como se lho debilitasse o peso de
comoções tão vivas, e a palavra afluiu aos lábios de ambos.
Falaram então
em prosa; conversaram de seus projetos de futuro, dos arranjos do casamento,
de uma viagem que fariam logo depois. Iam levantar-se quando ao longe lhes
apareceu o irmão de Lívia. Caminhava apressadamente e alegre, ao encontro dos
dous namorados. Félix compôs o rosto com a expressão que o caso pedia; Viana
aproximou-se, e disse à irmã que o Coronel Morais estava na sala com a filha.
Lívia pediu licença ao médico e dirigiu-se para a casa. Félix deu o
braço a Viana.
- Falávamos das suas reformas - disse ele - e fazíamos prosaicamente o
orçamento da despesa que vai ter.
Viana sorriu-se à socapa, mas não deixou cair o assunto no chão. Falou
com volubilidade dos seus planos, que eram vastos e originais, concluindo por
uma singela confissão, acompanhada de um olhar indagador.
- Receio - disse ele - que a Lívia se case mais tarde ou mais cedo.
Félix limitou-se a sorrir com indiferença; entravam ambos na sala.
XII
UM PONTO NEGRO
Lívia e Raquel estavam assentadas no sofá; o coronel, encostado a uma
cadeira, consultava o relógio. Não consultava; tinha o relógio na mão, diante
dos olhos, mas os olhos reviam-se na filha, enquanto esta respondia às
perguntas da viúva.
- Aqui está a doente - disse Lívia apenas viu assomar à porta da sala o
médico e o irmão.
Raquel voltou a cabeça, e não pôde reter uma exclamação de surpresa e de
alegria. Félix adiantou o passo e foi apertar-lhe a mão.
- Então? Não está salva? - disse ele olhando alternadamente para as duas
moças.
- Foi o senhor que a salvou - disse o coronel chegando-se ao grupo.
- Não fui; auxiliei a natureza, nada mais.
- Havemos de pô-la totalmente boa e viva como era antes - disse Lívia
dando um beijo na convalescente.
Raquel ouviu este diálogo com um sorriso triste que parecia ainda mais
triste naqueles lábios sem cor. Estava extremamente pálida e magra; os olhos,
agora que o fogo da febre se apagara neles, pareciam amortecidos e fundos.
Ainda assim, não perdera ela a sua natural gentileza. Mais: a própria morbidez
do aspecto como que lhe dava realce maior.
Talvez essa circunstância influísse na impressão que o médico agora recebia;
pela primeira vez lhe pareceu Raquel uma mulher.
O coronel respirava felicidade por todos os poros. A alegria que perdera
durante a moléstia da filha, voltava agora mais que nunca ruidosa e
comunicativa. Era um velho palreiro e jovial, amigo da palestra e de anedotas,
antes gracioso que chocarreiro, tendo aquela amável gravidade com que a gente
se familiariza sem perder o respeito. De quando em quando olhava para a filha
com olhos paternalmente namorados, então parecia esquecer-se do resto do mundo,
porque o mundo inteiro, ao menos parte dele, que a outra parte lhe ficara em
casa, estava ali resumida naquela franzina e alquebrada criatura.
- E promete-me que ma restituirá - disse ele à viúva -, não corada, que
ela nunca o foi, mas com aspecto de saúde, viva como era, e alegre, e até se
quiser travessa?
- E por que não? Os ares são bons; os carinhos serão fraternais, e
melhor que os ares e os carinhos, há de curá-la a natureza, e creio também que
a boa vontade dela. Não é assim? - disse Lívia batendo na face de Raquel.
A resposta de Raquel foi dar-lhe um beijo, e sorrir, não já tristemente
como da primeira vez. A tarde caíra de todo. O coronel fez algumas
recomendações derradeiras à filha, agradeceu à viúva e ao médico, meteu-se no
carro e voltou para Catumbi.
Lívia foi mostrar à amiga o seu aposento; Félix despediu-se de ambas e
dirigiu-se para a porta.
- Volta? - perguntou Lívia.
- Talvez não, minha senhora - respondeu Félix, cuja intenção positiva
era ir lá tomar chá.
A presença de Raquel veio de algum modo alterar as relações dos dous
namorados. Já não podiam ser frequentes as entrevistas solitárias em que ambos
se esqueciam do mundo e de si. Mais que nunca, procurou Félix recatar o seu
amor das vistas alheias, por modo que, apesar da convivência que tinha com os
dous, Raquel nada suspeitou entre eles. Alguma cousa adivinharia se reparasse
que a viúva, quando estava com ela, quase que só falava do médico; mas, como
ela também não falava de outra pessoa, parecia-lhe que era antes a viúva quem a
imitava.
Por esse tempo começou Meneses a frequentar a casa de Viana, com quem
travara relações alguns meses antes. Félix fez a respeito dele um elogio
sincero e merecido. O parasita acompanhou a boa opinião do médico com um entusiasmo
que cheirava a bons jantares. O advogado correspondeu à expectação da viúva e
não tardou que se tornasse familiar na casa.
Estava curado da sua malfadada paixão. Curado e vexado, dizia ele,
quando Félix o interrogou a esse respeito.
- Estes amores são as lições da escola de meninos - concluiu Meneses
sorrindo -. Já saíste da primeira escola; por que não sobes de estudos?
A esta metáfora, um tanto rebuscada, respondeu Félix com um sorriso que
podia confessar e negar ao mesmo tempo. Meneses, que não tinha nenhuma intenção
oculta nas suas palavras, não se deu a averiguar qual das duas expressões
convinha ao sorriso do amigo. As relações de ambos pareceram estreitar-se mais.
Com um pouco mais de expansão e confiança, teria o médico referido ao amigo os
seus amores e a sua felicidade próxima. Não o fez, nem Meneses lho adivinhou.
Teve suspeitas uma noite em que surpreendeu os olhos da viúva amorosamente
cravados no médico, mas a indiferença com que este se levantou para ir gracejar
com Raquel de todo o dissuadiu.
Os dias foram assim passando, longos para os dous amantes, breves para
Meneses e Raquel, que achavam naquela casa a mais deliciosa companhia deste
mundo.
Aqui podia acabar o romance muito natural e sacramentalmente, casando-se
estes dous pares de corações e indo desfrutar a sua lua de mel em algum canto
ignorado dos homens. Mas para isso, leitor impaciente, era necessário que a
filha do coronel e o Dr. Meneses se amassem, e eles não se amavam, nem se
dispunham a isso. Uma das razões que desviavam da gentil menina os olhos de
Meneses era que este os trazia namorados da viúva. De admiração ou de amor? Foi
de admiração primeiro, e depois foi de amor; cousa de que nem ele, nem o autor
do livro temos culpa. Que quer? Ela era formosa e moça, ele, rapaz e amorável,
e de mais a mais, inexperiente ou cego, que não adivinhava a situação anterior
da viúva e do médico, ainda por entre os véus com que lha ocultavam.
Ao inverso de Félix, cujo espírito só engendrava receios e dúvidas,
Meneses era antes de tudo propenso às fantasias cor-de-rosa. Irmanavam-se no
ponto de serem joguetes de sua imaginação. Meneses facilmente entreviu um mundo
de esperanças. A afabilidade com que a viúva o tratava pareceu-lhe auspiciosa;
o mais inocente de todos os sorrisos servia-lhe de base a um castelo de vento;
uma expressão qualquer, simples cortesia de sala, afigurava-se-lhe cheia de mil
promessas de futuro. Nem futuro nem esperanças havia; havia a candura dele, que
era botão de flor, ainda entrefechado à corrupção da vida.
Tal era o contraste desses dous caracteres, que a estrela da viúva, não
sei se boa ou má estrela, reuniu a seus pés. Um, se viesse a adorar um rosto
hipócrita, desceria na escala das degradações, com os olhos fitos na quimera da
sua felicidade; outro, ardendo pela mais angélica das criaturas humanas,
quebraria com as próprias mãos a escada que o levaria ao céu.
Félix percebeu, enfim, o que se passava no coração do amigo. Sua
primeira impressão foi de cólera, não porque duvidasse logo da moça, mas por
isso mesmo que outro homem se atrevia a amá-la. E não havia perigo em tal
situação? A simples pergunta era suficiente para dar largas ao espírito de
Félix. Veio imediatamente a ideia de que à moça não fosse desagradável o amor
de Meneses. A vaidade, primeiro, depois o hábito, enfim a curiosidade do
coração, os levariam um para o outro. Talvez os houvessem levado já.
Aconteceu uma vez que, falando dela, a fisionomia de Meneses, de risonha
que estava, se tornasse subitamente séria. Félix era mais hábil que ele, não
lhe foi difícil sondar-lhe o coração. O amigo contou-lhe tudo, com o fervor que
lhe era próprio, e a singeleza de um homem ainda pouco conversado nas cousas do
mundo. O médico escutou-o com sofreguidão, mas aparentemente quieto.
- E esperanças? - disse ele.
- Poucas ou muitas; não sei bem o que seja. Há ocasiões em que tudo se
me afigura fácil e decisivo; outras vezes desanimo e descreio de mim mesmo. Ela
é afável comigo, mas também o é contigo e com os mais. Adivinharia já alguma
cousa? Quero crer que sim, e visto que se não agasta, é bom sinal, penso eu. O
pior de tudo é que eu me não atrevo a dizer-lhe o que sinto.
Uma só palavra bastava ao médico para arredar do seu caminho aquele
rival nascente; Félix repeliu essa ideia, metade por cálculo, metade por
orgulho - mal-entendido orgulho - mas natural dele. O cálculo era cousa pior;
era uma cilada - experiência, dizia ele -, era pôr em frente uma da outra duas
almas que lhe pareciam, por assim dizer, consanguíneas, tentá-las a ambas,
aquilatar assim a constância e a sinceridade de Lívia.
Assim pois, era ele o artífice do seu próprio infortúnio, com as suas
mãos reunia os elementos do incêndio em que viria a arder, senão na realidade,
ao menos na fantasia, porque o mal que não existisse depois, ele mesmo o
tiraria do nada, para lhe dar vida e ação.
Meneses explicou ainda mais o estado de sua alma; não era amor violento
que sentia, era afeição serena e branda: tranquila, mas irresistível
fascinação. O médico, por um sentimento de pudor que lhe ficara, não animou
abertamente as esperanças do amigo; entretanto, a sua palavra era tão alegre, o
riso de tão boa feição, que o espírito de Meneses para logo sentiu
reflorirem-lhe as esperanças, se é que elas haviam secado alguma vez.
XIII
CRISE
Lívia não percebeu logo o amor de Meneses; mas, era impossível que tarde
ou cedo o não suspeitasse. Não se fingiu admirada, quando ele lho confiou
depois de algum tempo de assiduidade nas Laranjeiras.
Nem se admirou nem se irritou; além de não ser motivo para cólera, havia entre
ambos, como Félix dissera um dia, certa conformidade de sentir e pensar, que de
algum modo os vinculava.
A resposta que lhe deu foi certamente fria e decisiva, não desdenhosa
nem severa. Quando viu porém a tristeza que lhe causou, esqueceu de todo as
formalidades convencionais e necessárias; procurou suavizar as penas do moço.
Tirou-lhe toda a esperança presente ou futura; não poderia amá-lo nunca. A
amizade, porém, que lhe tinha, talvez o consolasse do desengano. Isso apenas;
não devia simular um amor que não sentia nem acenar-lhe com uma felicidade que
lhe não podia dar.
- Que me não pode dar! - repetiu Meneses apegando-se ainda a uma
esperança fugitiva -; e se eu esperar que algum dia soe a hora da felicidade
que me nega? Nada depende de nós; os próprios movimentos do coração parecem
nascer de mil circunstâncias fortuitas, se não é que os rege uma lei
misteriosa, e essa... Quem sabe? Um dia, talvez - ouso crê-lo -, um dia sentirá
que a simpatia que lhe inspiro se transforma, e...
- Basta! - interrompeu Lívia em tom imperioso.
Meneses calou-se; ela continuou:
- O amor não é isso que o senhor diz; não nasce de uma circunstância
fortuita, nem de uma longa intimidade, é uma harmonia entre duas naturezas, que
se reconhecem e completam. Por mais semelhante que seja o nosso espírito, sinto
que Deus não nos fez para que o amor nos unisse.
Meneses não estava para estas averiguações teóricas; é até duvidoso que
prestasse atenção às últimas palavras da viúva. O quimérico edifício que tão
laboriosamente construíra, via-o ele desfazer-se em fumo, e esta só impressão o
dominava agora.
Decorreu algum tempo de completo e acanhado silêncio. Estavam encostados
à janela que dava para o jardim. Meneses não ousava levantar os olhos para ela;
não era só natural vexame da posição em que se achava, era também medo de
contemplar ainda uma vez o bem que perdia. Lívia compreendia esse estado da
alma do moço. Lastimava - quem sabe? - não ser ele o escolhido do seu coração.
Era o mais que lhe podia dar, e era muito. Enfim:
- Fiquemos amigos - disse ela -. A amizade lhe fará esquecer o amor; é
mais serena que ele, e talvez menos exposta a perecer. Conheço que sou egoísta;
peço-lhe uma cousa que só a mim aproveitará. Amigos, não lhe será difícil
achá-los; eu não os acharia tão facilmente nem tais como o senhor.
Meneses tocou levemente na mão que ela lhe estendeu ao terminar estas
palavras. O pedido que ela lhe fazia era mais afetuoso que judicioso; a um
coração desenganado não há imediatamente compensações possíveis nem eficazes
consolações. A bondade da viúva o comoveu todavia; ia agradecer-lhe quando
Raquel entrou na sala.
Raquel estacou. Ambos estavam acanhados. A viúva foi a primeira que
rompeu o silêncio chamando a filha do coronel. Que queria dizer o sorriso
benévolo, mas sonso, que lhe pairava nos lábios? Não o viu Meneses, que olhava
para fora, mas viu-o a viúva e estremeceu.
Meneses não voltou lá durante uma semana; prolongaria a ausência, se o
amor, fecundo de ilusões, lhe não houvesse enchido o peito de esperanças novas.
Lívia tratou-o com a costumada afabilidade, talvez com afabilidade maior. Como
a confiança de Félix não se havia alterado, Lívia usava assim uma dissimulação
honesta, por simples motivo de piedade e gratidão. Estava no seu caráter este
modo de interpretar as cousas, e de as tratar assim sem grande respeito às
conveniências sociais. Profanas, diria eu antes, se quisesse exprimir os
verdadeiros sentimentos da viúva, que achava naquela obra de simpatia uma
espécie de missão espiritual.
Às missionárias daquela espécie, se as há, desejo-lhes maior perspicácia
ou mais feliz estrela. Nem a estrela nem a perspicácia da nossa heroína estavam
acima do seu coração. O sentimento que a impelia era bom; o procedimento é que
era errado. Ela não atentava nisso. Interrogava o rosto do médico, mais
confiante e alegre que nunca, e só isto lhe bastava a seus olhos. Fossem eles
menos namorados, e veriam que a tranquilidade de Félix era tão exagerada e fora
dele, que não podia ser sincera.
A esses erros e ilusões, que podiam conter os elementos de um drama não
remoto, veio juntar-se ainda a ilusão de Raquel. Esta aplaudia sinceramente os
sentimentos que atribuía à viúva em relação a Meneses; o sorriso com que os
surpreendera não queria dizer outra cousa. Fê-lo sentir um dia à viúva; a
energia com que ela lhe respondeu mais a persuadiu ainda. Lívia quis então
referir-lhe tudo, o verdadeiro objeto do seu amor e o seu próximo casamento;
mas, posto que a idade não as separasse muito, Lívia considerava-a ainda
criança e reprimiu o seu primeiro impulso.
Raquel ficou com as suas suspeitas.
Perdoemos agora à inexperiência da boa moça - criança, como dizia a
viúva - a leviandade com que insinuou ao médico as suspeitas que alimentava.
Fê-lo por meio de alusão delicada e fina numa ocasião em que o pedia a
conversa. O golpe foi profundo, a prova pareceu decisiva desta vez.
Raquel notou a impressão do médico. O sorriso inocente e brincão que lhe
entreabria os lábios repentinamente se lhe apagou. Félix olhava para ela sem
ver a mudança que se lhe havia operado. Viu-a enfim, mas não a entendeu. Tentou
fazer-se galhofeiro como sempre fora com ela; conseguiu fazê-la sorrir.
Os dias que se seguiram a este foram de triste provação para a viúva.
Sabemos já que o ciúme de Félix era às vezes ríspido. Nunca o fora mais que
desta vez. Longas cartas trocaram ambos, amargas as dela, as dele friamente
cruéis e chocarreiras. Félix não lhe disse logo a causa desta nova crise:
adivinhou-a Lívia, e tudo lhe contou lealmente, sem lhe negar a boa intenção
com que tratava o coração de Meneses. Era mostrar-se muito pouco mulher. Félix viu
em tudo aquilo um tecido de absurdos.
O que lhe disse então foi o transunto das cartas que lhe escrevera.
Grosseiro, irônico, incoerente, tudo isso foi nas palavras com que fulminou a
pobre senhora.
Lívia não protestava. Quis interrompê-lo uma vez; quando ele acabou nada
achou que lhe merecesse resposta. Estavam na sala. Olhou assustada para todas
as portas, deixou-se cair frouxamente numa cadeira e tapou o rosto com as mãos.
Félix deu um passo para ela; o movimento era bom, mas o arrependimento
veio logo.
- Adeus! - disse ele.
A moça descobriu o rosto.
- Félix! - exclamou ela.
O médico parou alguns instantes. Lívia levantou-se e foi a ele
arrebatadamente. Chegou a pegar-lhe numa das mãos, abatida e lacrimosa ia
começar uma última súplica. Ele porém puxou a mão violentamente, olhou para
ela, e depois de longo silencio, repetiu:
- Adeus!
XIV
OU CAPÍTULO DO ACASO
Félix chegou a casa cheio de cólera e desespero. Entrou impetuoso na
sala; como se precisasse de vingar em alguma cousa a suposta injúria, lançou
mão do primeiro vaso que se lhe deparou e deitou-o ao chão. O vaso fez-se em
estilhas.
- Que é isso? - disse uma voz estranha. Félix estacou espantado; olhou
para o vão de uma janela, donde viera a voz, e deu com a figura de Moreirinha,
comodamente sentado, com um livro de gravuras aberto sobre os joelhos.
- Sou eu - disse o visitante levantando-se e indo apertar a mão ao dono
da casa -. Admira-se de me ver aqui? Tomei a liberdade de o esperar, a despeito
das observações que me fez o seu criado.
Félix não pôde encobrir o desprazer que lhe causava a visita. Moreirinha
leu-lhe isso claramente nos olhos, e continuou:
- Talvez não lhe seja agradável a minha presença, sobretudo porque me
parece ter alguma cousa que o molesta nesta ocasião; mas não podia ser de outro
modo...
Félix levantou os ombros.
- E maior será ainda o seu desgosto - continuou Moreirinha -, quando souber
que não lhe peço asilo só por uma hora, mas até amanhã.
Dizendo isto, estendeu-lhe a mão. Félix estendeu-lhe a sua, e friamente
lhe disse que podia ficar o tempo que quisesse.
Quando o coração padece não há maior importuno que um conversador
indiferente e frívolo. Esta circunstância veio ainda azedar mais o espírito de
Félix. A solidão lhe daria talvez um bálsamo salutar, se o havia para ele. O
acaso deparou-lhe, entretanto, uma testemunha diante de quem lhe era forçoso
aparentar a serenidade que não tinha.
O hóspede compreendeu a situação, e francamente lhe disse que o não
queria perturbar; viera como asilado, não como visita; não tinha direito às
atenções do dono da casa. Félix respondeu o melhor que pôde a esta cortesia,
que aliás o obrigava ainda mais. Não havendo meio de escapar, procurou ao menos
ser igualmente cortês. Demais, Moreirinha não era tão importuno como pareceria,
porque falava sempre e não tinha o sestro dessa outra casta de importunos que
interrompem a cada passo os discursos com perguntas... de boca e de gesto.
Não se demorou o hóspede em dizer a causa que o trouxera ali: era
Cecília. Apesar da situação em que se achava, Félix não pôde deixar de lhe
prestar atenção.
- Cecília? - perguntou ele.
- É verdade: é o meu mau anjo. Lembra-se dos elogios que lhe fiz dela?
Eram sinceros, e eram também justos naquele tempo. Até então não havia
encontrado docilidade igual. Não sou piegas, sabe; mas gosto de um episódio
assim. Não sei que lhe fizeram à boa rapariga, que de todo mudou e veio a ser um
verdadeiro diabo. Aquelas cadeias tão leves que nos prendiam um ao outro, e que
eu chamava cadeias de rosas, tornaram-se de ferro pesado. Quero fugir-lhe e não
posso; tenho tentado tudo para escapar-lhe, mas em vão. Escondo-me em casa, na
casa dos amigos, nos hotéis; onde quer que esteja lá irá buscar-me, e então
Deus sabe o que sofro. Hoje lembrou-me vir passar aqui o resto do dia e a noute
com o senhor; estou certo de que não dará comigo.
Félix ouvira atentamente a exposição do Moreirinha, não sem achar alguma
relação entre o estado dele e o seu. Moreirinha referiu então muitos episódios
do que ele chamava sua escravidão.
- E não conhece nenhum meio de lhe escapar por uma vez?
- Nenhum; ainda quando eu pudesse sair da Corte, estou certo de que ela
iria buscar-me a bordo do navio ou à portinhola do carro que me levasse.
Tão notável mudança no caráter de Cecília não deixou de chamar a atenção
de Félix. Compreendeu facilmente que era obra do próprio amante. A rola
fizera-se gavião, pela única razão de que Moreirinha lhe dera ensejo de
conhecer a própria força.
De abatimento em abatimento chegara Moreirinha à miserável posição
atual. Não era ele homem de salutares reações nem de resignações filosóficas:
era, sim, homem de fugir e adiar, caráter feito de inércia e medo,
maravilhosamente disposto para os desesperos inúteis e as capitulações
vergonhosas.
- Mas, por que não sai da Corte algum tempo? - disse Félix após alguns
minutos -. Sempre há de haver meio de fugir...
Moreirinha refletiu um instante.
- Por duas razões - disse ele -: a primeira é que, apesar de tudo, não
deixo de gostar dela, e se pudesse escapar-lhe durante trinta dias, ia no
trigésimo primeiro procurá-la...
- A segunda razão... - interrompeu Félix a quem parecia incomodar essa
ingênua confissão.
- A segunda razão - respondeu Moreirinha com hesitação - é que... não
posso.
Félix desceu os olhos ao vestuário do rapaz, e viu nele o comentário das
palavras que acabava de ouvir. Elegância ainda havia, mas já pobre e rafada; os
botins tinham sinais de longo serviço; o paletó, aliás bem lançado, era de
fazenda visivelmente inferior. Trazia luvas cor havana, mas ao olhar curioso de
Félix não escapou a circunstância de que as pontas dos dedos já estavam
assinaladas por uma leve pasta de cor preta, vestígio de aturado uso.
Não era preciso grande perspicácia para compreender que aquilo tudo era
obra de Cecília. Nem ficaria longe da verossimilhança quem afiançasse que
Moreirinha estava eternamente condenado ao capricho daquela mulher. Não tinha
decerto o rapaz com que lhe satisfazer todas as vaidades e necessidades; ela
incumbia-se de abrir outras verbas no orçamento da receita, mediante um bem
combinado sistema de impostos.
Félix compreendeu tudo isso de relance, e procurou trazer o espírito de
Moreirinha a ideias mais alegres, menos ainda por ele que por si.
Não foi cousa difícil. Ao espírito de Moreirinha repugnavam as
preocupações graves. Aproveitou o ensejo que o médico lhe ofereceu e entrou a
falar das cousas correntes do dia. Dos mil episódios da vida de certa classe,
não havia gazeta melhor informada que o amante de Cecília. Os novos amores de
uma, os arrufos de outra, o dito chistoso desta, a aventura daquela, tudo ele
sabia em primeira mão. Não lhe perguntassem por estreias literárias nem crises
políticas; mas a mobília com que Fulano presenteara a certa dama, a ceia
equívoca em que Sicrano chegara a beber champagne por
uma botina, esse era domínio seu, desde que os amores de Cecília de todo o
separaram da sociedade.
Isto não recreava nem interessava, mas enchia o tempo, e desde que
estava obrigado a sofrer o hóspede, era melhor sofrê-lo assim. Era impossível,
entretanto, não volver o espírito à sua própria situação. De quando em quando o
médico esquecia o narrador, e o seu pensamento ia esvoaçar em derredor da
viúva. Foi numa dessas ocasiões que lhe chegou uma carta dela. Félix abriu-a
sofregamente e leu-a duas vezes. Era longa; recapitulava a história daqueles
últimos meses, e concluía fazendo um apelo à razão do médico. Adivinhava-se que
a moça escrevera com lágrimas, mas já não havia o tom súplice com que em
análogas ocasiões lhe pedia a reconciliação.
O tempo alguma obra havia já feito no espírito de Félix; a carta veio
consumá-la. Félix não estava ainda certo da inocência da viúva, mas já estava
certíssimo da brutalidade da sua explosão, e este reconhecimento era uma dor
nova, quase tão profunda como a outra.
Seu primeiro impulso foi ir ter com Lívia; desistiu dele e preferiu
escrever-lhe uma carta. Três vezes a começou sem lograr chegar ao fim. Vacilava
entre ser afetuoso ou severo; num caso lembrava-lhe a perfídia possível,
noutro, a provável inocência; temia ser injusto ou ridículo. Como todos os
caracteres indecisos, não achou mais recurso que uma inútil desesperação.
Anoitecera; Moreirinha estava mais alegre que nunca, e pagava a
hospitalidade do médico com as suas galhofas costumadas. Não contava com
Cecília, mas adivinhou que era ela quando ouviu parar um carro à porta.
- Estou perdido! - disse ele desatando um longo suspiro.
Era ela.
Cansada de esperar que lhe levassem resposta do recado que dera, Cecília
desceu do carro e entrou em casa. Ao chegar à porta relanceou os olhos pela
sala, onde não viu desde logo o amante; Moreirinha metera-se no vão de uma
janela. Félix olhou severamente para Cecília, como quem lhe estranhava a
liberdade que tomara. Mas onde iam
já as flores de antanho? A dócil rapariga de outro tempo
tornara-se mulher desgarrada e solta. Caminhou afoutamente para o médico e
estendendo-lhe a mão:
- Como estás, mon vieux?
- disse com um risinho de mofa.
Nessa ocasião descobriu o amante, que parecia entretido em contar as
estrelas. Foi a ele, e soltava já as primeiras palavras de uma veemente
apóstrofe, quando Félix julgou prudente intervir a tempo de evitar um
escândalo; reconciliou-os como pôde, e secamente os despediu.
Lívia estava à janela desconsolada e triste, enquanto Raquel, não menos
triste que ela, executava no piano uma melodia adequada à situação de ambas.
Não viera resposta do médico, a viúva sentia desvanecer-se-lhe a esperança de
tantos meses, e com ela o futuro que tão perto se lhe afigurava. Estas eram as
suas melancólicas reflexões, quando viu parar à porta de Félix um carro, descer
uma mulher, entrar, sair depois com um homem e partirem ambos.
O golpe foi terrível e mais profundo que nunca. A viúva não temia
decerto uma rival triunfante; mas via e sentia o desprezo do homem por quem
tantas lágrimas chorara naquele dia. Se o médico lhe aparecesse então, ela
reconheceria o seu engano, e a alegria de se sentir estimada lhe daria forças
contra a dor de se ver ofendida. Félix não veio. Lívia mal pôde resistir à
humilhação. Uma lágrima - a última que lhe restava - foi a única expressão do
seu imenso desespero.
XV
No dia seguinte, logo cedo, Viana foi à casa do médico. Não ia almoçar
com ele; ia convidá-lo para jantar.
- Faço anos hoje - disse o parasita - e quisera ter à mesa alguns
amigos, poucos. O senhor é dos primeiros, não pode faltar.
- Não faltarei - respondeu Félix.
Viana emitiu em seguida algumas ideias a respeito da maneira por que
encarava um jantar de anos. Não devia compreender senão amigos íntimos, por ser
festa do coração, alegria doméstica, em que tudo o que não falasse a língua da
amizade seria estrangeiro ou talvez inimigo. Não bastava gosto para a escolha
de tais amigos; era preciso jeito e sagacidade para discernir os que se
prendiam pelo afeto dos que aderiam pelo costume. Esqueceu-lhe o principal;
esqueceu-lhe dizer que, no seu ponto de vista, um jantar de anos era também um
jantar a juros.
Félix aceitou o convite com sofreguidão; esperava um pretexto para
voltar à casa de Lívia. Pungia-o ainda o ciúme, mas a irritação passara, e em
lugar dela nascera o desejo de ver restabelecida a harmonia antiga, não por ato
de vontade própria, mas por uma completa justificação da amada.
Com tais sentimentos saiu de casa. Lívia estava à janela quando o viu
chegar; foi recebê-lo no patamar da escada que dava para o jardim. Ao
apertar-lhe a mão, entre triste e risonha:
- Era eu que devia perdoar-lhe - disse -; mas seria ofender o seu
orgulho.
- O meu orgulho? Perdoar-me? - repetiu Félix.
- Sim - disse ela fazendo um gesto afirmativo.
Leu-lhe Félix no rosto tão sincera tranquilidade, que esteve quase a
aceitar a reconciliação. Hesitou algum tempo; deitou os olhos à sala, e viu
atravessá-la na direção da escada a figura de Raquel. Então lembrou-lhe a
semiconfidência que esta lhe fizera, e amargamente respondeu à viúva:
- Sejamos sérios.
Lívia empalideceu. Quis responder alguma cousa, e não pôde; Raquel
estava com eles. Pouco depois chegaram o coronel e D. Matilde; Meneses não
tardou muito. Algumas pessoas mais completavam o pessoal da festa. A presença
de estranhos constrangia a viúva e o médico; era forçoso ser alegre como os outros,
e isso custava a ambos, mais ainda a ela que a ele.
O jantar passou sem novidade de vulto. As pilhérias do coronel, e os
brindes repetidos de Viana entretiveram a sociedade. Félix tentou seguir a
corrente da alegria e logrou obtê-lo. Não reparava - ainda mal! - que a fronte
da viúva parecia entristecer-se mais; seus olhos procuravam antes os de Meneses
que os dela. Meneses tinha os seus embebidos nela.
No fim do jantar Viana propôs que fossem conversar na chácara. Meneses
pediu que a filha do coronel tocasse primeiro uma melodia que lhe ouvira alguns
dias antes. Raquel consentiu. A melodia era extremamente melancólica, e Raquel
tocava-a com alma. O tom da música influiu nos ânimos; não havia só o simples
silêncio da atenção, mas o recolhimento da tristeza.
Em alguns dos convivas esta impressão era mais natural e foi mais
pronta. O médico, entretanto, forcejava não só por sacudir a estranha
influência, como por afetar completa isenção de espírito.
Luís estava em pé diante dele, com os cotovelos fincados nos seus
joelhos. Félix brincava-lhe com os cabelos, e ambos sorriam um para o outro,
como se fossem os únicos estranhos à comoção geral. Ora, no meio do absoluto
silêncio da sala, apenas interrompido pelas notas soltas e magoadas que os
dedos de Raquel tiravam do piano, o filhinho de Lívia fez esta singela pergunta
ao médico:
- Por que é que o senhor não se casa com mamãe?
Lívia estremeceu. Raquel cessou de tocar e volveu rapidamente a cabeça
para o grupo donde partira a voz. Dos outros convivas, uns sorriam da inocente
indiscrição do menino, outros observavam a viúva, ninguém reparava em Raquel.
A filha do coronel deixou imediatamente o piano. Viana lembrou então o
passeio da chácara. Todos aceitaram o alvitre e saíram da sala. A espécie de
acanhamento que a pergunta do menino deixara em todos para logo desapareceu de
alguns.
Lívia não saíra logo. A alguma distância repararam na falta dela, e
Raquel propôs-se a ir buscá-la. Achou-a a abraçar e beijar o filho. Conquanto
ela fosse mãe extremosa, não havia razão imediata para aquela explosão de
ternura. Raquel estacou sem compreender nada.
A viúva olhou para ela conchegando o filho ao coração.
- Que queres? - perguntou.
Raquel não respondeu. A pouco e pouco se lhe ia alumiando o espírito.
Olhou longo tempo para ela, como se à força quisesse arrancar-lhe a explicação
que o seu coração pressentia. Enfim, pareceu adivinhar tudo.
- Ama-o então? - perguntou ela com os lábios trêmulos.
- Creio que o amei - respondeu Lívia baixando tristemente a cabeça.
Se o espírito de Raquel não fosse ainda o regaço da castidade, aquela
confissão mentirosa da viúva, porque ela ainda amava, podia fazer-lhe nascer
alguma desairosa suspeita. Mas Raquel não viu naquelas palavras mais do que um
amor medroso e não compreendido. Sua eloquente resposta foi apertá-la nos
braços.
Lívia apertou-a com força. Era a primeira vez que o acaso lhe deparava
uma confidente. Alteava-se-lhe o seio, túmido de suspiros; duas lágrimas lhe
romperam dos olhos e foram morrer na espádua de Raquel. O menino interrompeu
essa doce efusão. Lívia respirou largamente, e beijando com ternura a moça,
disse:
- Vamos.
Mas Raquel não se movia. Tinha os olhos postos nela, os lábios
apertados, os braços pendentes. Lívia sacudiu-lhe brandamente os ombros.
- Que tens? - disse.
- Nada - suspirou Raquel.
Lívia estremeceu. Súbito relâmpago lhe atravessou as sombras do
espírito. Interrogou-a de novo, mas foi em vão. Então sentiu em si todas as
energias do seu temperamento, e com um grito, que a cólera abafava, exclamou:
- Ah! Tu o amas também!
Raquel não lhe respondeu. Se a viúva lhe houvera falado com brandura é
provável que lhe fizesse plena confissão de seus sentimentos. Mas, às palavras
coléricas de Lívia, a pobre moça começou a tremer.
- Tu o amas também! - respondeu Lívia com voz surda e concentrada.
Raquel curvou o corpo, pôs as mãos em atitude de súplica, e murmurou com
voz trêmula:
- Perdão!
Pairou nos lábios da viúva um sorriso sarcástico. Raquel repetiu ainda
muitas vezes a palavra "perdão"; mas a única resposta da sua rival
foi pegar-lhe do braço e indicar-lhe a porta.
- Vai ter com ele! - exclamou.
Depois saiu arrebatada da sala. Raquel, magoada pela violência do gesto
da viúva, acompanhou-a com o olhar até à porta. Os olhos da corça ofendida não
chamejavam ódio contra a leoa irritada.
XVI
RAQUEL
Quando Raquel ficou só, atirou-se ao sofá, trêmula, fria, com os olhos
secos, sem compreender bem aquele drama íntimo, mas sentindo-lhe já algum
terrível desenlace. O que ela via claro é que a outra amava o mesmo homem, e
com tal força, que cedera a um impulso de cólera, tão contrário aos seus
hábitos de brandura.
As reflexões de Raquel não passaram daí. Nem todas as almas podem
encarar as grandes crises. Quer-se um espírito robusto para estas situações
complexas. Raquel ficou simplesmente atônita e abatida.
Na chácara foi notada a ausência das duas. Viana deixou os hóspedes e
foi à sala.
- Que faz aqui? - perguntou ele à filha do coronel.
Raquel ficara perturbada com a presença de Viana, e ainda mais com a
pergunta. Enfim, balbuciou uma resposta infantil.
- Estava pensando numa cousa - disse ela.
- Onde está Lívia? - perguntou Viana sem atender à resposta da moça nem
ao sorriso forçado que lhe entreabria os lábios.
- Creio que está incomodada; foi para dentro.
- Cousa de cuidado?
- Parece que não.
Viana deu duas voltas na sala e saiu para a chácara, pedindo à moça que
lá se fosse reunir aos outros.
Félix, entretanto, viera até o jardim, que ficava em frente da casa. Mal
havia dado alguns passos quando viu encostada à porta da sala a filha do
coronel, com os olhos postos no céu, acaso pedindo a Deus que lhe estendesse a
mão para subir até lá. Era sol-posto, hora de melancolia; tudo ali em volta
assumia a cor pardacenta e luminosa dos últimos instantes da tarde.
Félix caminhou cautelosamente para a casa, subiu por um dos lanços da
escada, e surpreendeu a moça, dizendo-lhe:
- Está linda assim, mas nós precisamos vê-la cá fora.
Raquel retraiu o corpo sem ousar dizer uma só palavra. Félix
estendeu-lhe a mão convidando-a a descer. A moça entrou para dentro; o médico
deu ainda um passo, mas ela, fazendo um gesto suplicante, disse com voz aflita:
- Pelo amor de Deus, saia!
Félix não resistiu; desceu ao jardim e caminhou para a chácara a
reunir-se às outras pessoas. Em vão buscava conjecturar a causa daquela
súplica. Era impossível conciliar o procedimento de Raquel com a familiaridade
e a confiança que entre ambos havia. A razão da diferença devia ser grave. Mas
qual seria ela?
Os convidados retiraram-se cedo. Meneses e Félix foram os últimos que
saíram, ao lado um do outro, ambos entregues a reflexões diversas, porque Félix
pensava nas palavras de Raquel, Meneses, na pergunta do menino.
A filha do coronel desceu ao jardim. Era noite fechada. Sentou-se num
banquinho, e ali ficou em triste meditação. A pobre moça tremia de susto, de
incerteza, de apreensão. Não ousava encontrar os olhos de Lívia; tinha-lhe
medo, medo pueril, escusado, sem razão, mas enfim medo, e nada havia que
tranquilizasse a sua alma franzina e pusilânime.
Como benefício celeste, entraram-lhe a correr as lágrimas, até então
retidas pela presença de estranhos. Ninguém lhas viu, que a noite era fechada e
o sítio, ermo; mas a aura estiva, que começava a bafejar a folhagem ressequida
do sol, acaso lhe ouviu os soluços, acaso lhos levou ao seio de Deus. Veio
então, de influxo divino, uma doce consolação às suas mágoas solitárias.
Não ousando voltar para dentro, determinou esperar ali o irmão da viúva,
que fora acompanhar um amigo da vizinhança. Pedir-lhe-ia então para a levar no
dia seguinte à casa de seus pais. Não hesitava entre a ternura deles e o ódio
de Lívia.
Assim refletia ela, quando sentiu passos no jardim. Voltou-se; era a
viúva.
- Ah! - exclamou Raquel levantando-se, trêmula e assustada -; pelo amor
de Deus! Eu não lhe fiz mal nenhum!
Lívia acercou-se de Raquel; travou-lhe brandamente das mãos, apesar do
esforço com que ela buscava esquivar-se, e disse:
- Que mal me farias tu, criança? A culpada sou eu; sou eu que te peço
perdão, porque fui cruel e injusta, e cedi ao egoísmo do meu coração...
Perdoa-me!
- Perdoo-lhe tudo! - respondeu Raquel.
Caíram nos braços uma da outra. Jamais duas rivais se estreitaram mais
sinceramente amigas do que essas duas. Largos minutos correram sem que nenhuma
delas falasse; refletiam talvez, talvez não pudessem vencer o acanhamento da
sua posição. Lívia foi a primeira que rompeu o silêncio:
- Como é que vieste a amá-lo? - perguntou ela.
- Não sei - respondeu ingenuamente Raquel -; nasceu-me o amor sem que eu
reparasse nele. Nem sei se nasceria; creio que foi apenas transformação, porque
eu de pequena me acostumei a admirá-lo. Foi talvez a admiração que se fez amor
quando eu cresci.
- Nunca lho deste a entender?
- Oh! Nunca.
- E ele?
- Percebi que me queria. Brincava comigo, como quando eu era criança:
nada mais.
- E resignavas-te à sorte?
- Que poderia fazer senão isso? Alguma esperança tive nestes últimos
tempos; em que a fundava, não sei; talvez na circunstância de nos vermos mais a
miúdo. Enganava-me; penso que não nasci para ser feliz.
- Quem sabe? - disse a viúva -. Nem sempre o nosso coração acerta; pode
ser que mais tarde te apareça outro a quem ames do mesmo modo...
- Do mesmo modo? - interrompeu Raquel com surpresa.
Lívia pegou-lhe nas mãos.
- Não te parece que assim seja? - perguntou.
- Oh! Não. Chame-me criança, se lhe parece; a senhora há de saber mais do
que eu, naturalmente; mas o meu coração me diz que eu não poderia amar a
ninguém mais.
- A ninguém mais! - murmurou a viúva amargamente -. Concentraste então
toda a seiva do teu coração, neste amor silencioso e quimérico? Não digas isso;
amarás mais tarde a outro que te amará também, e serás feliz, creio eu.
Murchará esta primeira flor do teu coração, mas há seiva nele para dar vida a
outra flor, tão bela talvez, e com certeza mais afortunada. O contrário,
Raquel, seria injustiça de Deus. O amor é a lei da vida, a razão única da
existência. Encher de uma só vez a alma, sem que ninguém lhe beba o licor
divino, e regressar ao céu sem ter conhecido a felicidade na terra? Nem o
quererá Deus, nem o temerás tu. Falas pela boca da tua amargura de hoje; espera
a ação do tempo, que é bom amigo.
Raquel meditava. Era a primeira vez que ela ouvia falar daquele modo em
cousas do coração. A linguagem da viúva servia-lhe a um tempo de consolação e
de luz.
Lívia falou ainda muito tempo, sem preconceito nem reserva; não falou
como rival, senão como amiga e mãe. Não reparava sequer que lhe dava armas
contra si. Falaria talvez de outro modo se se considerasse feliz; mas, como a
situação de ambas era igual, ela entornou na alma de Raquel todo o sentimento
de que a sua alma estava cheia, e foi eloquente, porque foi sincera.
- Sim - disse Raquel, quando ela acabou -; compreendo tudo isso que me
está dizendo. A senhora sabe amar... E ainda o ama, não?
Lívia calou-se.
- Que lhe custa dizer? - insistiu a donzela.
- Custa-me lágrimas. Eu não te poderia explicar nunca este sentimento
que me nasceu como erva ruim para me envenenar a existência, e que eu tanto
tempo supus que seria a coroa de minha vida... Não te quero enfadar, que são
tristezas para isso.
- Mas então ele? - aventurou Raquel.
- Não me perguntes mais; afirmo-te só que o amei, que talvez tornasse a
amá-lo...
- E que ainda o ama - concluiu a rival.
Lívia esteve calada alguns instantes, procurando ler-lhe no rosto,
apesar das sombras da noite, as impressões que lhe iriam na alma.
- Não! Já o não amo! - disse a viúva com esforço.
Seguiu-se um longo silêncio.
- E se o amasse - disse enfim Lívia -, que farias tu?
- Nada! - respondeu resolutamente Raquel.
- Deveras, nada?
- Pediria a Deus que a fizesse feliz, e estou que Deus me ouviria.
- Eras capaz disso? - perguntou a viúva segurando-lhe nos pulsos e
fitando lhe os olhos em cheio.
- Era - respondeu ingenuamente a donzela.
Lívia não disse palavra. Se das comoções da sua alma algum vestígio lhe
subiu ao rosto, disfarçou-lho a noite às vistas de Raquel. Ambas ficaram
pensativas algum tempo. Uma forte rajada fê-las estremecer. Era sinal de chuva
próxima; nuvens negras começavam a povoar o céu. As duas recolheram-se a casa.
- Vales mais do que eu - dizia a viúva entrando com Raquel na sala -. Eu
sou apenas egoísta; egoísta e nada mais. Guarda essas flores evangélicas do
sacrifício, do perdão e do amor. São raras; e por isso é que és um anjo.
Foi diferente a noite que ambas passaram.
Raquel estava mais tranquila depois da conversa no jardim; mas que
destino teria a flor de sua alma, lírio transformado em goivo, vivido de
lágrimas, medrado no silêncio? Não lhe apeteciam lutas. Faltavam-lhe as armas
de combate - a astúcia ou a energia -; faltava-lhe principalmente o desejo de
despertar um coração que sabia não ser seu.
Mas esse coração, possuía-o acaso Lívia? Parecia-lhe que não; o
mistério, porém, a reticência, a indecisão das palavras da rival, tudo se lhe
afigurava cobrir um drama que ela não compreendia nem conjecturava.
No ânimo de Lívia outras foram as preocupações. Para ela, a situação era
mais clara. Sentia desvanecer-se o amor de Félix, e via surgir uma rival
perigosa. Tinha medo da ignorância de Raquel; receava que a inocência dessa
alma ainda em flor pudesse dominar o espírito rebelde de Félix; e tal seria a
catástrofe das suas esperanças.
E quando todas essas sombras lhe povoavam o espírito, e o coração lhe
pulsava com mais força, perguntava-lhe a consciência se lhe era lícito opor
algum obstáculo à felicidade da donzela, dado que esta vencesse o coração do
seu noivo.
Lívia não dormiu a noite toda. No dia seguinte, apenas a claridade da
manhã lhe entrou no quarto, a viúva levantou-se, vestiu à pressa um roupão, e
foi ao quarto de Raquel.
A filha do coronel dormia profundamente. Repousava de suas longas
reflexões. Lívia abriu o cortinado muito ao de leve, contemplou-lhe o rosto
sereno e risonho, os olhos cerrados, e os lábios semiabertos como se em sonhos
murmurasse palavras de amor. Os cabelos esparsos lhe serviam de resplendor à
sua cabeça angélica.
"Não!", pensava Lívia. "O amor não dorme assim tranquilo
em dias de infortúnio e desespero. Criança inconsciente que te supões alar às
regiões do sol, que sabes tu dos precipícios da viagem, que conheces tu das
voragens do coração?"
- Ah! Estava aqui! - exclamou Raquel acordando -; ainda bem!
- Por quê?
- Sonhei que morria, e que era recebida no céu. Fora bom morrer assim;
mas eu sempre tinha pena de deixar a terra. Acordou hoje muito cedo.
- Queria dar um passeio - disse Lívia indo abrir a janela -, mas a manhã
já está quente.
Raquel olhou para ela; viu-lhe os olhos pisados e o rosto desfeito.
Compreendeu que não havia dormido, e que chorara.
"Ama-o então muito?", perguntou ela a si mesma.
XVII
SACRIFÍCIO
A situação das duas moças demandava um termo. Raquel foi a primeira que
resolveu deixar completamente o campo; tinha no seu restabelecimento uma
excelente razão para regressar a casa.
Lívia compreendeu a intenção da amiga quando esta lhe comunicou a sua
resolução. Era tão simples e tocante o sacrifício, que a viúva não resistiu a
um impulso generoso. Respondeu-lhe com um beijo. O beijo era de admiração;
Raquel acreditou fosse de agradecimento, e sorriu com tristeza.
Ficou assentado que Raquel iria no domingo próximo, e nesse sentido foi
avisado o coronel.
Estavam ainda no dia seguinte ao do episódio do menino. Nenhuma das suas
circunstâncias esquecera ao médico. A esquivança de Raquel continuava a
preocupar-lhe o espírito, não menos que a infundada suspeita que nutria a
respeito da viúva. Era meado o mês de dezembro. A data do casamento estava
próxima. Tudo exigia um desenlace a tempo.
Não tardou que o médico descobrisse os sentimentos que a filha do
coronel nutria a seu respeito. Surpreendeu-a perto de uma janela interior, a
beijar uma página de um álbum de retratos. Aproximou-se cauteloso, lançou os
olhos à página e viu nela o seu próprio retrato.
A descoberta fê-lo sorrir. Seria aquilo a razão da mudança que notara
nela? Nesse caso sabia já da afeição que o ligava à viúva, talvez do projetado
casamento. Era possível também que a volta dela à casa de seus pais não tivesse
outro motivo.
Por mais isento que seja o espírito de um homem, é raro que o não
lisonjeie uma afeição assim, medrosa e silenciosa, nascida e vivida na soledade
da alma. Félix sentiu primeiro essa impressão de egoísmo. Veio depois outro
sentimento melhor - o de uma respeitosa admiração. Seu pensamento entrou a
conjecturar a data daquele singular amor; à proporção que se internava nos dias
do passado, ia combinando uma série de episódios esparsos, aparentemente vagos,
agora significativos e eloquentes. Não era recente a afeição dela; era talvez
anterior à sua enfermidade.
Chegara o sábado, véspera da partida de Raquel. Era de noite. Félix
estava em casa da viúva, e ambos, e Raquel, e até Viana, todos pareciam
preocupados e tristes. O médico olhava para a filha do coronel, sem reparar que
os olhos de Lívia seguiam os seus e como que buscavam ler por eles os
sentimentos do coração.
Raquel esquivava-se às atenções do médico. Em certa ocasião, porém -
achando-se Félix mais afastado -, aproximou-se dele com um livro.
- Já leu este romance? - perguntou ela.
- Deixe ver - disse Félix, convidando-a com um gesto a sentar-se.
Raquel não se sentou; estendeu-lhe o livro, e olhou com insistência para
o médico.
Félix pegou no livro e consultou a primeira página; ia voltar
distraidamente a segunda, quando lhe caiu nos joelhos um papelinho dobrado.
Raquel voltou assustada a cabeça para lado de Lívia, que de pé, junto do piano,
tirava notas soltas do teclado, sem olhar para o grupo. Raquel fez ao médico um
sinal de silêncio e afastou-se dele. Félix guardou o papel no bolso.
"Quase uma criança!", ia ele pensando quando se retirava para casa
depois do chá.
Quando ali chegou não se deu ao trabalho de tirar o chapéu. Abriu a
carta logo na sala. Dizia a carta:
"Pela memória de sua mãe, não seja cruel! Lívia ama-o muito. Não a
faça morrer, que seria um pecado!"
Félix esfregou os olhos e releu o bilhete.
Não havia negá-lo; a letra era de Raquel, e o conteúdo era uma súplica a
favor da rival. Não sorria o médico; estava atônito. A verdade, tão
inverossímil desta vez, metia-se-lhe pelos olhos, singela, eloquente,
espontânea. Espontânea seria? Félix fez essa pergunta a si mesmo, e
afirmativamente lhe respondeu; não atribuía à viúva tamanha influência, nem à
donzela tamanha submissão, que uma inspirasse e a outra escrevesse aquela
carta. A cousa pareceu-lhe o que realmente era: um sacrifício de Raquel.
Félix não era homem de grandes expansões; mas, se Raquel estivesse
diante dele naquela ocasião, era capaz de cair-lhe aos pés. Abafar uma afeição
silenciosa, a primeira talvez, para pedir a felicidade de outra mulher, era
abnegação rara, que o surpreendia.
A ação de Raquel fez-lhe esquecer por algum tempo a viúva, objeto da
carta que acabava de ler. Raquel não afirmaria tão claramente os sentimentos da
amiga, se não tivesse plena certeza deles. Como conciliaria, entretanto, a
afirmação de hoje com a suspeita de ontem? A mesma Raquel lhe insinuara diversa
inclinação da viúva. Naturalmente reconhecera o contrário. A ideia da
reabilitação de Lívia para logo dominou o espírito de Félix. Seu amor existia
no mesmo estado de força e viço; fácil de desmaiar, não era menos fácil de se
restabelecer. No dia seguinte parecia desfeita a nuvem que por alguns dias o
abafara.
Foi à casa da viúva; era uma hora da tarde. Tinha curiosidade de encarar
a filha do coronel. Achou-a tão alegre e travessa como era dantes. Era assim
aparentemente; os olhos estranhos não viam a mágoa interior e encoberta que lhe
roía o coração. Seu infortúnio tinha pudor.
Ao médico era impossível encobrir esse estado. A tocante generosidade da
moça fez-lhe bem ao coração. Teve ele a delicadeza de não tratar a viúva por
modo que magoasse a donzela; mas, tão outro se mostrava do que fora até então,
que a viúva não pôde resistir-lhe, e aquele dia foi muito menos triste que os
outros.
As travessuras de Luís faziam coro com as de Raquel. A porta da sala estava
aberta. Luís desceu os degraus que comunicavam da sala com o jardim, na ocasião
em que Lívia fechava uma pulseira de Raquel. Quando a viúva deu por falta do
filho, correu à porta. O menino corria na direção da porta da rua. A mãe desceu
atrás dele.
Raquel ia descer também; Félix pegou-lhe na mão. A moça estremeceu toda;
afoguearam-se-lhe as faces, e ela balbuciou:
- Leu a minha carta?
- Li - respondeu Félix cravando nela um olhar que era a um tempo de
simpatia e de pena -; li, e não sei se deva crer o que lá me diz.
- É a verdade.
- Mas então supõe?...
- Que ela o ama; afirmo-lho.
- E que eu a amo também? - perguntou com hesitação.
- Isso... creio - assentiu Raquel, abaixando os olhos.
Félix calou-se. Decorreram dous ou três minutos de silêncio. Raquel
continha com dificuldade os movimentos do coração. Preferia estar a cem léguas
dali, mas lembrava-se da outra e isso lhe dava ânimo.
O médico foi o primeiro que falou:
- Como sabe que ela me ama?
- Sei - respondeu Raquel sorrindo com afetação -, e é quanto basta.
Demais, nenhuma moça escreveria semelhante carta a um homem se não tivesse
certeza do que afirmava. Só lhe peço uma cousa: destrua essa carta. Nada vale,
mas eu não quisera que a conservasse.
Lívia aproximava-se; sentiram passos na escada de pedra. Raquel correu à
porta, enquanto Félix tirava a carteira do bolso, e procurava o bilhete de
Raquel. Foi nessa ocasião que o coronel e a esposa chegaram. As duas moças
desceram a recebê-los.
Félix desceu também, e caminhou a alguns passos de distância, com o
coração dividido entre o amor de Lívia e a admiração de Raquel.
Os pais da moça jantaram nas Laranjeiras.
Lívia acompanhou depois toda a família à cidade. Na ocasião de se despedir do
médico, a filha do coronel sentiu que as forças lhe iam faltando. Reagiu,
porém, sobre si mesma e, sem olhar para ele, estendeu-lhe a mão, que o médico
respeitosamente apertou. Ao voltar-lhe as costas, um suspiro lhe saiu do peito;
partira-se o último vínculo da esperança.
XVIII
RENOVAÇÃO
Lívia não ignorou muito tempo a existência da carta de Raquel. Félix
mostrou-lha no dia seguinte, desejoso de saber como havia nascido no espírito
da moça a convicção tão generosamente afirmada.
- Contei-lhe tudo - disse a viúva -, quando supunha que tudo estivesse
morto no teu coração. Ela condoeu-se de mim, e vejo agora que não era
sentimento estéril o que me revelara. Pobre Raquel!
- Esta carta foi excelente consolação, Lívia, porque eu sentia uma
dúvida cruel a teu respeito... Mas a que propósito lhe falaste?
Lívia hesitou alguns instantes. Ou melhor, reprimiu o seu primeiro
impulso, que foi referir ao médico o amor e a confissão de Raquel. Estaria no
seu caráter se o fizesse; mas um vislumbre de reflexão atalhou essa confidência
prestes a subir-lhe aos lábios. Recearia que a notícia de um amor tão generoso
o desviasse dela? Pode ser. A explicação que lhe deu foi breve.
- Já lhe disse - respondeu a moça -; confiei-lhe a causa das minhas
mágoas, num dia em que mostrava condoer-se de mim. Se errei a culpa é sua.
Félix não insistiu. Pela sua parte, deixou também de referir a razão da
recente frieza nas suas relações com ela. A viúva, que o sabia, achou mais
acertado não lhe falar nisso.
Tantas vezes apagada no céu, reaparecia enfim a estrela da felicidade, e
para sempre? Era caso de dúvida, à vista do passado; mas a credulidade da viúva
estava acima da sua experiência. A ternura de Félix nunca fora mais espontânea
e viva do que então. O coração como que se lhe renovara. O sacrifício de Raquel
não era estranho a essa reação, que fazia reviver todas as esperanças da amada.
A alegria tornou a florir no rosto e no peito da viúva. Ela possuía a
memória da felicidade, não a das tristezas. O que eram reminiscências de
infortúnio apagaram-se com o tempo; a serenidade dos primeiros dias foi só o
que lhe ficou.
Houve em certa ocasião uma leve nuvem passageira; foi a presença de
Meneses, que ainda frequentava a casa da viúva. A maneira por que Félix
recebera o amigo fez compreender à moça que no coração dele havia ainda um
travo de amargura. Não lhe foi difícil extingui-lo de todo. Referiu-lhe
ingenuamente tudo o que se passara entre ela e Meneses, a branda austeridade
com que respondera às suas declarações amorosas, enfim o procedimento honesto
do rapaz.
Félix abanou a cabeça.
- Censuras-me? - inquiriu a moça.
- Não - afirmou o médico -. Lastimo-te.
- A intenção era boa.
- Seria; mas a vida não é fábrica de sentimentos; não se vive como se
romanceia. Ímpetos de generosidade são muito bons, quando se não corre perigo
nenhum. Quem te afiançava a honestidade desse moço?
- Oh! Adivinha-se!... Queres uma prova? Ele não voltará cá.
- Por quê?
- Creio que percebeu tudo.
O médico ficou algum tempo pensativo. Duas vezes tentou falar e
conteve-se. Enfim disse:
- Não é preciso perceber aquilo de que há de ter certeza amanhã.
Casamo-nos na segunda semana de janeiro. A notícia será pública desde já.
Félix esperava um movimento expansivo da viúva, ao ouvir esta
declaração. Lívia não se alterou; apenas empalideceu.
- Tens razão - disse Félix depois de olhar para ela algum tempo -; eu
não tenho direito a mais. Tantas vezes te iludi, que é legítimo o teu receio.
No dia seguinte fez o médico oficialmente o seu pedido na presença de
Viana, que abraçou com entusiasmo o futuro cunhado.
- Isto devia acabar assim mesmo - disse ele -; há muito que eu previa e
desejava o casamento. Nasceram um para o outro; estão na força da idade; não
podia haver melhor união. Pela minha parte desistirei até, se for preciso, da
viagem que o senhor me prometeu. Lembra-se? Não faz mal. O que eu quero é
vê-los felizes. Eu logo vi que tramavam alguma cousa, mas gabo-lhes a habilidade.
Dê-me outro abraço, doutor.
Félix prestou-se às expansões do parasita. Lívia contemplava o noivo com
adoração. Para ambos eles o mundo inteiro havia desaparecido. Inteiro não;
Viana fez casualmente alusão a Raquel, e essa intempestiva recordação entristeceu
a moça. Ela via que a sua felicidade era causa da desventura da amiga, e agora
que a tinha quase realizada, sentia morder-lhe um piedoso remorso.
Adiantaram-se os preparativos do casamento. Lívia pediu ao médico a
supressão de todo aparato, para não ferir o coração de Raquel, pensava ela. A
publicidade seria apenas a necessária. Não contava com o irmão, que se
encarregou de dar ao consórcio proporções de acontecimento.
A notícia foi referida por ele na rua do
Ouvidor, esquina da rua Direita.
Daí a dez minutos chegara à rua da
Quitanda. Tão depressa correu que um quarto de hora depois era
assunto de conversa na esquina da rua dos
Ourives. Uma hora bastou para percorrer toda a extensão da nossa
principal via pública. Dali espalhou-se em toda a cidade.
Foi geral o espanto. Ninguém acreditava que Félix se determinasse ao
casamento. Falava-se, é verdade, no namoro; mas, além de ser boato sem
importância nem generalidade, alguns não atribuíam ao médico mais do que a
intenção de um passatempo, ao passo que outros davam às relações entre ele e a
viúva um caráter absolutamente íntimo, sem nenhuma aspiração de legalidade.
A convicção entrou enfim no espírito público. Moreirinha atribuía o caso
a um desconcerto cerebral do médico. O Dr. Luís Batista não deu opinião;
parecia-lhe indiferente o casamento da viúva.
Raquel recebeu a notícia sem admiração, mas com mágoa. Esperanças, não
as tinha já; o mal que nos não espanta não nos dói contudo menos por isso. Quem
lhe deu a notícia foi Meneses, que a recebeu com filosófica resignação. O amor
deste tinha-se convertido numa espécie de adoração religiosa. Achava na mulher
amada todas as qualidades que podiam seduzir um homem como ele. Havia, além
disso, aquele vínculo simpático de duas criaturas que viviam mais da imaginação
que da vida prática. A recusa de Lívia não rompera, transformara as cadeias que
o prendiam a ela.
Não acontecia o mesmo a Raquel, e esta circunstância não escapou ao
rapaz, que habilmente a interrogou, e adivinhou tudo. Meneses sacudiu
lentamente a cabeça, mas não lhe disse palavra. Apenas pensou consigo que, se o
acaso ou a Providência houvesse
disposto as cousas de outro modo, ambos eles podiam ser felizes.
Meneses repeliu a ideia de fazer confidências à filha do coronel; tanto,
porém, lhe falou da viúva, que a outra alguma cousa desconfiou. Sabedores,
enfim, do que padeciam interiormente, a comum desventura os vinculou de algum
modo. Como as relações eram antes corteses que familiares, nenhum deles falou
com a efusão que lhes pedia o sentimento; adivinharam-se, o que era muito, e
apiedavam-se um do outro, o que era quase tudo.
XIX
À PORTA DO CÉU
Dous dias antes do casamento, Lívia foi jantar à casa do coronel, a
convite deste, que reunira algumas pessoas de amizade. Félix não compareceu,
apesar de instantemente chamado; cedera a um sentimento de delicadeza, não
querendo mortificar com a sua presença a filha do coronel, nem perturbar de
algum modo o espírito da viúva.
A primeira ideia de Lívia foi não aceder ao convite, a fim de não
afrontar a dor de Raquel. Instaram tanto os pais da moça que lhe foi impossível
recusar.
As duas moças encararam-se comovidas; a diferença era que Raquel pôde
ocultar melhor o seu abalo do que a viúva. Essa vitória da donzela sobre si
mesma fez redobrar a admiração da rival. Entendeu-lhe a delicada intenção, e
agradeceu-lha na primeira ocasião que se lhe deparou.
- Sei tudo - acrescentou Lívia -; sei da tua carta, que foi a chave com
que de novo se me abriram as portas da fortuna. Eu não sei se poderia ser tão
heroica como tu. Separa-nos o destino; deixa-me beijar-te as mãos.
O gesto acompanhou estas palavras: Raquel recusou ceder ao desejo da
viúva.
- Seja feliz! - murmurou ela.
Tais foram as últimas palavras que houve entre ambas. Quando a viúva
saiu trocaram um beijo, a que não se podiam recusar, e que da parte de Raquel
foi muito menos espontâneo que da outra. Lívia o sentiu e sinceramente lho
perdoou.
Ao entrar no carro, com o irmão, a viúva ia desconsolada e triste. Seu
coração sabia amar, e a ideia de que a sua felicidade custaria lágrimas a
alguém fundamente lhe doía.
"Por que razão", pensava ela, "me há de lançar a Providência esta
gota amarga na taça das minhas delícias? Se eu ao menos o ignorasse... a minha
felicidade não seria travada de remorsos... Felicidade? - continuou ela
dirigindo o pensamento a uma nova ordem de ideias -; será deveras felicidade? O
sonho, tantas vezes dissipado, realizar-se-á, enfim?... Há quase um ano que eu
pus toda a minha existência nesta vaga probabilidade; está próximo o termo, não
sei que sorte avessa me repele para longe. Não a mereço talvez, ou então
ambiciono demais... Chamam-me bela, devia talvez contentar-me com ser
admirada..."
Neste ponto
foi a moça interrompida por uma observação banal do irmão, que tinha um
termômetro infalível nos pés e anunciou que havia trovoada iminente.
A irmã olhou silenciosamente para ele, e admirou consigo mesma a ventura
daqueles para quem as tempestades do ar importam mais que as tempestades da
vida. Viana faria provavelmente a reflexão inversa se adivinhasse as
preocupações da irmã.
Quando chegaram às Laranjeiras acharam
Félix na sala, conversando infantilmente com o filho de Lívia, que lhe pedia a
explicação do mecanismo do relógio. Félix aplicava todos os recursos da
imaginação para satisfazer a curiosidade do menino. Como ouvisse parar um
carro, e logo depois rumor de passos no jardim, o médico disse ao menino que a
mamãe estava aí, e aproveitou a ocasião para lhe anunciar que ia casar com ela.
Ao ouvir esta notícia, o menino subiu aos joelhos do médico, e perguntou
alegremente se era verdade o que dizia.
- Sim, é verdade - repetiu Félix.
- O senhor casa com mamãe?
- Caso, já disse.
Neste momento assomou à porta a figura de Lívia. O menino desceu dos
joelhos de Félix e correu a abraçar a mãe.
- É verdade que mamãe casa com o Doutor Félix? - disse ele depois de receber
um beijo da viúva.
- É, meu filho - respondeu esta entrando e estendendo a mão ao médico.
A presença de Félix e a alegria de Luís mudaram o curso às reflexões da
moça. Cinco minutos bastaram para fazer esquecer a tristeza própria e o
infortúnio da rival abatida. Raquel verteria naquela ocasião, no silêncio da
sua alcova, uma lágrima de saudade? Nenhum deles pensou nisso, nem a viúva a
quem ela tão generosamente servira, nem Félix, que era o objeto daquelas dores
solitárias.
Félix estava mais jovial que nunca. Perdera de todo as maneiras
friamente polidas; tornara-se expansivo, gárrulo, terno, quase infantil. O
coração parecia-lhe cheio do presente e do futuro. Não era só a situação que
explicava esta mudança; era também a volubilidade do espírito.
A viúva lia-lhe na alma, que, enfim, ressurgira, um poema de inefáveis
venturas. Houve um momento em que lhe lembraram as mesmas alegrias da véspera
do seu primeiro casamento, e estremeceu; mas a impressão durou pouco; o segundo
marido não era, como o primeiro, uma criatura sem alma, era, sim, uma alma sem
ação. Mas o amor não começava já a reanimá-la?
Mais quarenta e oito horas, e eles uniriam para sempre os seus destinos.
Esse ato decisivo e grave da vida do homem, já o médico o encarava com a
tranquilidade de ânimo resoluto, sem tropeçar na responsabilidade nem
arrecear-se das consequências. Antolhava-se-lhe o lar doméstico como a cidade
da paz e da concórdia. Não via às portas dela o lívido espectro da dúvida;
flores e folhas verdes, não mortíferas, senão vivificantes, pareciam
alcatifar-lhe o caminho e convidá-lo a descansar enfim da vida que tão mal
vivera.
Lívia saboreava esse renascimento do amante. Estavam sós e iam dar o
penúltimo beijo de despedida. O último seria o da noite seguinte. As mãos dela
pousavam nos ombros de Félix, e os olhos de ambos procuravam fundir as duas
almas no mesmo raio de luz.
O céu não dava razão aos receios de Viana; tinham-se dissipado as nuvens
que anunciavam próxima borrasca. Não havia luar, mas a noite estava clara; e as
vivíssimas estrelas que luziam no céu, algum poeta imaginoso as compararia a línguas de
fogo daquele pentecostes de amor.
- Jura-me ainda uma vez que me amas! - dizia ele -. É doce à minha alma
ouvir-te essa confissão!
- Pelo céu, por meu filho, por ti, juro que te amarei sempre! Amava-te
ainda quando eras indiferente ao meu afeto, quando o negavas, quando me pagavas
com o desdém. Por que te não amaria agora que és todo meu... todo, não?
- Duvidas?
- Eu não sei duvidar; recear, sim. Já te disse por que razão. Mas hoje
não receio, não; sinto que sou verdadeiramente amada. Quaisquer que fossem as
minhas queixas, eu tudo te perdoaria agora, que me abres a porta do céu.
- Oh! Tu és um anjo!
- Adeus!
- Adeus! Amas-me muito, não?
- Muito!
E um beijo casto, longo, quase divino, selou esta confissão tantas vezes
repetida entre eles. Depois apertaram as mãos, e Félix saiu.
A rua estava deserta, o silêncio era profundo. Félix entrou em casa
exaltado e alegre. Não tinha sono; recorreu aos livros, mas não lhe aproveitou
o recurso, porque se os olhos corriam no papel, o espírito estava ausente, no
tempo e no espaço; buscava a amada e planeava futuros.
Com a fadiga veio o sono. Félix adormeceu nos braços dos anjos.
Batiam oito horas quando ele acordou e abriu as janelas. O dia estava
triste. Caía uma chuva fina e constante que havia começado pouco antes dos
primeiros albores da manhã. Que lhe importava a ele a melancolia da natureza,
se tinha dentro da alma uma fonte de inefáveis alegrias?
Assentou-se à escrivaninha, e durante duas horas fez o inventário da sua
vida de solteiro, rasgando com indiferença uma imensidade de cartas que lhe
lembravam afeições extintas ou simples relações passageiras. Varria o templo em
que devia entrar a escolhida de seu coração. Quando relia algumas dessas
epístolas - folhas caídas da estação que se fora -, desenhava-se-lhe nos lábios
um sorriso irônico, mas tranquilo, tal era a transformação de sua alma já
indiferente às lutas do passado.
Às dez horas levantou-se para almoçar. Acabava de sentar-se à mesa
quando lhe vieram dizer que uma pessoa o procurava.
Era o Dr. Luís Batista.
XX
UMA VOZ MISTERIOSA
Félix estacou à porta da sala. Luís Batista deu dous passos para ele.
- Nunca me ofereceu a sua casa - disse -, e a minha indiscrição vem
reparar o seu esquecimento.
Era um gracejo ou um remoque? Félix limitou-se a apertar a mão que o
outro lhe estendia e convidou-o a sentar-se.
- Disseram-me que estava almoçando - observou Batista -; não quero de
nenhum modo interrompê-lo. Vá, e eu ficarei aqui folheando algum livro.
- Ia começar a almoçar - respondeu o médico -; se quiser almoçaremos
juntos.
- Não; se me consente, visto que ainda está solteiro, irei familiarmente
assistir ao seu almoço, e então lhe exporei o motivo que aqui me traz.
Félix convidou-o a entrar, e ambos se sentaram à mesa. As primeiras
frases trocadas foram acanhadas e frias, mas as maneiras livres do hóspede
conseguiram abalar a reserva do dono da casa.
- É verdade - disse Batista -, ouvi dizer que ia casar...
- Amanhã.
- Assisto portanto ao seu penúltimo almoço de rapaz solteiro. Há muita
gente que ainda não acredita. Creio que o senhor tinha fama de celibatário
convencido e, pela regra, um celibatário convencido é um noivo à mão. Também eu
era assim; e contudo... O casamento é bom; tem seus inconvenientes, como tudo
neste mundo; mas é bom, com a condição única de o aceitarmos como ele deve
ser...
- Um pouco livre? - disse Félix sorrindo.
- Não sei se pouco ou muito, é questão de temperamento. O essencial é
que seja livre. Eu assim o entendo e pratico; sou um pecador miserável,
confesso, mas tenho ao menos o mérito de não ser hipócrita, e agora mesmo...
- Agora mesmo? - repetiu Félix depois de alguns instantes de silêncio.
- Não sei se deva contar-lhe isto; o senhor é ainda neófito, vai
naturalmente aborrecer-se e amaldiçoar-me... Mas, em suma, é indispensável que
eu lhe diga tudo, porque isso prende com o motivo que me traz à sua casa.
Batista aceitou uma xícara de café que o médico lhe ofereceu. Depois,
com um modo acintemente leviano, referiu ao dono da casa uma aventura amorosa
daqueles últimos dias. Tratava-se de uma mulher caprichosa e requestada. Seu
triunfo era portanto duas vezes glorioso. Como beleza, desafiava ao próprio
médico a resistir-lhe depois de meia hora de contemplação. Achar-se-iam,
talvez, outras mulheres mais formosas; nenhuma, porém, tinha como essa o
misterioso encanto que sabe agrilhoar a vontade mais rebelde.
- Quando ela me fita os seus grandes olhos - continuou pinturescamente
Luís Batista -, é o mesmo que se me entornasse chumbo derretido nas veias.
Todo o estilo da sua descrição era assim - galhofeiro e sensual. Falou
durante vinte minutos com o entusiasmo próprio da sua situação. Félix ouvia
pacientemente a narração do hóspede, sem atinar com a relação que teria aquilo
com o pedido que lhe ia fazer. Interiormente estava aborrecido. Não fora o
médico em sua longa vida de rapaz solteiro nem casto nem cauto; mas a atmosfera
do noivado começava a arejar-lhe o espírito, e semelhante confidência, naquela
ocasião, lhe parecia de todo ponto extravagante.
- Não desconheço - disse Luís Batista quando concluiu a sua expansão
amorosa -, não desconheço que uma aventura destas, em véspera de noivado,
produz igual efeito ao de uma ária de
Offenbach no meio de uma melodia de Weber. Mas, meu caro amigo, é
lei da natureza humana que cada um trate do que lhe dá mais gosto. A vida é uma
ópera bufa com intervalos de música séria. O senhor está num intervalo;
delicie-se com o seu Weber até
que se levante o pano para recomeçar o seu Offenbach.
Estou certo de que virá cancanear comigo, e afirmo-lhe que achará bom parceiro.
Dizendo isto, Luís Batista engoliu o resto, já frio, do café que tinha
na xícara, acendeu de novo o charuto, e recostou-se na cadeira. Félix teve
tempo de reassumir a atitude tranquila que as últimas palavras de Batista lhe
haviam alterado.
- Enfim - disse ele -, que ligação há entre essa aventura e o pedido que
me vai fazer?
- Toda - respondeu Batista -; se ela não existisse, eu não viria
pedir-lhe nenhum favor. O senhor sabe o que é um capricho de mulher amante; não
ignora também que o menor desejo dela é uma ordem para o cavalheiro seu
escolhido.
Félix fez um gesto afirmativo.
- Pois bem - continuou Batista. Estamos nesse caso. Ela é extremamente
caprichosa, e mais ainda que caprichosa, é amante de cousas d'arte. Há dias fui
achá-la aborrecida. Interroguei-a; nada me quis dizer. Pela conversa adiante
falou-me duas ou três vezes numa gravura que vira na rua do
Ouvidor, e que o dono vendera quando ela lá voltou, disposta a
comprá-la. O assunto era o mais ortodoxo possível: a israelita
Betsabé no banho e o rei Davi a espreitá-la do seu eirado. Não lhe
parece galante? A gravura creio que era finíssima; mas tinha, além disso, um
merecimento para a pessoa de quem lhe falo: é que a figura deBetsabé era
a cópia exata das suas feições. Vaidade de moça bonita. Mostrava-se tão
desconsolada quando falava naquilo, que facilmente percebi não ser outro o
motivo do aborrecimento em que a fui encontrar.
- E então?
- Fiz o que faria qualquer outro. Era necessário que a todo o trance ela
possuísse um exemplar da gravura. Fui procurá-lo, e não achei. Gastei dous
longos dias nessas pesquisas, e quando voltei à casa dela não tive remédio
senão tirar-lhe a última esperança. Ela apertou-me afetuosamente as mãos, e
agradeceu-me o trabalho, dizendo-me que era mais uma prova de amor que lhe
dava; concluiu, porém, tudo isso com um suspiro. Eu não me atrevo a dizer ao
senhor o que quer dizer um suspiro neste caso; aquele suspiro era uma
insistência do desejo.
- Parece que sim - disse Félix que já adivinhara o final da exposição.
- Dir-me-á o senhor - continuou Batista - que eu devia aproveitar o paquete
que partiu ontem e mandar vir da Europa a gravura. Não duvidaria fazê-lo, e ela
esperaria de boa vontade; mas quem pode afirmar que o meu amor dure até à volta
do paquete? Tive então uma ideia salvadora.
- Ah!
- Voltei à loja onde ela vira a gravura e inquiri do dono da casa quem
lha havia comprado. Depois de algum trabalho de memória disse-me que fora o
senhor. A princípio hesitei se devia importuná-lo. O pedido não seria
indiscreto em qualquer outra ocasião; mas, quando o senhor está para tomar um estado
moral, rogar-lhe que me ajude a enxugar as lágrimas de uma bela pecadora, é
mais que indiscrição, é atrevimento. Hesitei, a voz da razão era mais fraca que
a do pecado, e venceu o pecado.
Luís Batista calou-se, esperando a resposta do médico. Houve um largo
silêncio.
Levantaram-se da mesa e foram para a sala, sem que Félix desse a
resposta. Luís Batista foi o primeiro que tornou ao assunto.
- Não me pode fazer o que lhe peço? - disse ele.
- Tenho estado a perguntar a mim mesmo se me é lícito fazê-lo - respondeu
Félix sorrindo -, e se ao entrar nas fileiras do matrimônio devo ajudar a
deserção de um camarada.
Luís Batista estava naquele dia singularmente falador. A simples
observação do médico deu azo a um largo discurso a respeito do regímen
matrimonial. Era meio-dia; Félix estava já fatigado da visita e da palestra.
Aproveitou um interstício para dizer:
- Em suma, tem grande desejo de possuir a gravura?
- Queria que ma cedesse.
- Faço-lhe presente dela.
- Eu não desejava de nenhum modo prejudicá-lo - disse Batista -; há de
consentir então que eu lhe faça um presente de noivado.
Félix não respondeu; foi buscar a disputada gravura e trouxe-lha. Luís
Batista não pôde reter um grito de surpresa. A figura de Betsabé,
dizia ele, parecia realmente uma cópia da sua dama. A dama era talvez mais
formosa do que a cópia.
Foi nesse momento que trouxeram ao médico uma carta, entregue pelo
correio. Félix abriu-a distraidamente, mas tanto que lhe leu o conteúdo ficou
muito pálido e encostou-se a uma cadeira. Com a mão trêmula aproximou o papel
dos olhos, enquanto os dentes mordiam os lábios até deitar sangue. Luís Batista
aproximou-se rapidamente de Félix e perguntou-lhe o que tinha.
- Nada - disse o médico -, uma vertigem apenas... Há de dar-me licença,
preciso estar só.
O hóspede curvou-se, sorriu e saiu.
Félix encerrou-se no seu quarto. Do que lá se passou ninguém de casa
soube: algum rumor se ouvia de quando em quando, mas abafado, e uma ou outra
exclamação vaga e solta. Eram quatro horas quando o médico saiu à sala.
O tempo tinha melhorado. O sol reaparecera entre duas nuvens, dando de
chapa nas árvores molhadas de chuva e nos telhados que escorriam um resto de
água. Dissera-se que a natureza queria fazer outro contraste ao inverso do da
manhã, porque, se a tarde sorria alegre, o homem dava sinais de tempestade
interior. Tinha os olhos vermelhos, a boca contraída, os cabelos em desordem.
Saiu com passo vacilante. De quando em quando, colhia o alento com a expressão
de quem lhe custa respirar. Um escravo, a que ele deu algumas ordes, reparou no
estado do senhor, e perguntou-lhe se estava doente.
Félix respondeu secamente que não. O escravo abanou a cabeça e saiu.
Félix escreveu em seguida uma carta que sobrescritou para a viúva.
Vestiu-se depois. Não tardou que lhe parasse um carro à porta. Meteu-se nele e
mandou tocar para a cidade.
XXI
ÚLTIMO GOLPE
Era já sobretarde quando a carta chegou às mãos da viúva. Viana descera
à chácara, enquanto a irmã dividia a atenção entre os gracejos do filho e o seu
próprio pensamento. O menino enchia toda a sala com a sua pessoa; as
travessuras dele não eram enfadonhas. Lívia não o contemplava só com os olhos
de mãe; via nele como que o elo de ouro entre uma quimera desfeita e uma
quimera realizada. Tais eram as suas reflexões quando a mucama lhe veio trazer
a carta de Félix. Entregou-lha e saiu.
Lívia estremeceu; a letra do sobrescrito revelava o estado febril da mão
que o escrevera. Abriu rapidamente a carta e leu-a.
Quando Luís, numa das suas voltas, se chegou à mãe, achou-a com os olhos
cravados no chão, trêmula e pálida. Chamou por ela, inutilmente. Agarrou-lhe as
mãos e a moça pareceu acordar de um letargo.
- Que tem, mamãe? - perguntou o menino afagando-a com voz lacrimosa.
Lívia não respondera a princípio. A voz da criança chamou-a enfim à
realidade. Olhou vagamente à roda da sala, e como se a pouco e pouco lhe
voltasse a consciência, dirigiu lentamente os olhos à carta fatal. Tinha-a
ainda entre as mãos. Releu-a com ansiedade, levantou-se arrebatadamente, deu
alguns passos e de novo se deixou cair na cadeira. O menino correu à porta
assustado. O tio entrava nesse momento.
- Que é? - disse Viana vendo o ar assustado do menino, e as feições
decompostas da irmã.
Lívia entregou-lhe a carta. A carta dizia assim:
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|
Quando Viana acabou de ler este estranho e misterioso documento, ficou
tão pálido como a irmã. Não compreendia nada do que se passava; indignava-o,
todavia, o procedimento de Félix. Sufocou a cólera a ver se evitava a explosão
da viúva. Olharam-se ambos silenciosamente alguns instantes; o menino tinha-se
aproximado e segurava uma das mãos da mãe, olhando para o tio como se esperasse
dele alguma explicação.
- Recusa - disse enfim Viana - e nenhuma explicação nos dá do seu
procedimento. O ato é tão indigno que não te deve mortificar; quando um homem
dá este triste documento da sua lealdade, penso que a mulher que o ama pode dar
graças a Deus de o não ter acompanhado até o altar. Espero que penses como
eu...
Viana não pôde acabar. As lágrimas, tanto tempo sustidas, romperam enfim
dos olhos da viúva, impetuosas e amargas. A dor, de tão concentrada que fora a
princípio, fez-se violenta e explosiva; mas o organismo estava tão abalado por
tantas comoções, que a infeliz moça perdeu os sentidos.
Quando ela voltou a si era noite; achou-se no seu próprio leito, tendo
ao pé de si o irmão e um médico. O médico falou-lhe e ela respondeu sem saber o
que dizia nem o que ouvia. A febre era intensa, mas o médico esperava que no
dia seguinte cedesse à energia do remédio que lhe ia aplicar.
Viana ficou só com a irmã, e procurou distraí-la do sucesso da tarde,
tarefa inútil porque a viúva não pensava nele; o olhar vago indicava que ainda
se não havia feito luz no seu espírito. Às vezes contraía os sobrolhos e fitava
o olhar no espaço como se estivesse a recordar-se. Numa dessas vezes volveu os
olhos pelo quarto parecendo procurar alguém. A ausência de Félix de todo lhe
alumiou o espírito.
Deu um grito abafado e desatou a chorar.
Acorreu o irmão, com palavras de brandura e conselho, dizendo-lhe que
nem tudo estava perdido, e que era possível remediar o mal. Lívia não prestava
fé a essas vãs consolações; estava entregue ao seu desespero. Abafada com
soluços, lavada em lágrimas, soltava gritos de angústia, e convulsivamente se
revolvia no leito.
Viana teve medo desse grave estado e mandou chamar o médico. Quando este
chegou, já a doente havia sossegado; mas, com as lágrimas, tinha-se ido a
razão. O delírio durou toda a noite e parte da manhã seguinte. De tarde a febre
declinou um pouco e a doente adormeceu.
Só no dia seguinte, quando o abatimento veio substituir a exaltação,
pôde a moça refletir no recente infortúnio. Debalde perguntava a si mesma a
causa daquele súbito rompimento do noivo, nada lho explicava. Algum mistério
haveria, alguma razão aparentemente legítima porque à viúva nada lhe dizia o
coração que fosse contrário à lealdade de Félix.
Contou-lhe o irmão que havia ido à casa do médico, e não o encontrara,
nem lá lhe quiseram dizer para onde fora. Agora, depois de maduro exame,
pensava em ir pedir-lhe uma explicação do procedimento.
Lívia desaprovou-lhe a resolução.
- Mas - disse Viana - não podemos ficar assim...
- Podemos - interrompeu a viúva -; enquanto estou doente a explicação
será natural para os outros. Quando me levantar da cama direi que eu mesma
desfiz o casamento. Achaste-me sempre singular; é provável que os outros me
vejam com iguais olhos; e tudo se explicará da melhor maneira.
- Mas a explicação dele...
- A explicação dele não é precisa.
Raquel, apenas soube da doença de Lívia, foi passar alguns dias com ela.
Naquelas circunstâncias o encontro de ambas foi profundamente triste. A viúva
não lhe confiou logo a causa verdadeira da sua enfermidade, mas durou pouco a
reserva, porque a ausência de Félix fez impressão na moça, e Lívia julgou
melhor dizer-lhe tudo. Era a segunda vez que ambas achavam no seio uma da
outra, não a consolação, que não a há para as desilusões recentes, mas o
adormecimento momentâneo do coração.
Lívia entrou a convalescer do abalo que lhe dera a fatal carta. Raquel
tornara-se enfermeira dedicada e continuou a ser o que sempre fora, amiga
afetuosa. A viúva não acreditava na realidade do seu restabelecimento. Em sua
opinião, era uma aparência que a realidade desfaria em pouco tempo.
Dez dias depois do rompimento de Félix, apareceu Meneses nas Laranjeiras.
Tinha ouvido algumas perguntas relativas ao casamento do médico, que sabia não
se ter efetuado, sem que até então transpirasse a causa verdadeira. Soube,
porém, da moléstia de Lívia, e a isso atribuiu a demora do casamento.
A moça abafou um suspiro quando o viu entrar. Não era arrependimento;
era talvez lástima de si própria, que não pudera aceitar esse coração mais confiante
e menos escabroso que o do outro.
Mas se era já impossível uma aliança que a natureza não aconselhara,
ainda que o pedira a razão, vinha de molde o amigo a quem confiaria os seus
infortúnios. Esse foi o primeiro impulso; o segundo foi, não de orgulho, mas de
pudor. O coração teve pejo de ir confessar o seu erro diante daquele mesmo a
quem repelira um dia.
Era difícil que semelhante situação se escondesse aos olhos de Meneses.
A ausência do noivo era inexplicável; Meneses suspeitou a verdade e Raquel lha
confirmou. O fim com que a donzela delatou o segredo confiado foi ainda um
sacrifício; pediu a intervenção de Meneses para a reconciliação do médico com a
viúva.
- Peço-lhe uma cousa difícil - concluiu ela aludindo pela primeira vez
ao amor de Meneses -, mas é uma boa ação.
- É uma boa ação, e não é difícil - replicou Meneses olhando para ela
fixamente.
Raquel abaixou severamente os olhos. Um espectador atento concluiria,
talvez, que a ferida dele não estava longe de cicatrizar, mas que, pelo
contrário, a dela continuava a deitar sangue.
Meneses dispôs-se a tentar alguma cousa. Reconhecia que o procedimento
de Félix era misterioso; mas não desesperou de lhe descobrir a causa e confiava
em que poderia removê-la. Conseguiu saber que o médico se refugiara na Tijuca.
Quando estava pronto a ir ter com ele, hesitou, refletiu e recuou da primeira
resolução.
Foi preciso que uma nova crise o empuxasse para lá. A viúva recaíra
enferma, não tendo podido resistir às longas vigílias e maldormidas noites. A
moléstia desta vez trouxe um caráter menos violento que da primeira vez, mas
pertinaz; a febre não era intensa, era constante. O médico assistente não achou
que houvesse perigo; recomendou o mais desvelado tratamento, e repouso absoluto
de espírito.
Meneses não hesitou; partiu para a Tijuca.
XXII
A CARTA
Quando Meneses chegou à Tijuca eram
quatro horas da tarde. A casa de Félix ficava afastada do caminho. O portão
estava aberto; Meneses atravessou rapidamente o espaço que ia da estrada à casa
e bateu. Veio um moleque abrir-lhe a porta. Meneses entrou precipitadamente e
perguntou:
- Onde esta o senhor?
- Senhor não fala a ninguém - respondeu o moleque com a mão na chave
como se o convidasse a sair.
- Há de falar comigo - insistiu resolutamente Meneses.
O tom decidido do rapaz abalou o escravo, cujo espírito, costumado à
obediência, não sabia quase distingui-la do dever. Seguiram ambos por um
corredor, chegaram diante de outra porta, e aí o moleque, antes de a abrir,
recomendou a Meneses que esperasse fora. Perdida recomendação, porque, apenas o
moleque abriu a porta, Meneses entrou afoutamente atrás dele.
Era um gabinete pequeno com quatro janelas que o enchiam de luz. Perto
de uma janela havia uma rede estendida. Sobre a rede via-se um homem
negligentemente deitado com um livro nas mãos.
Era Félix.
Félix levantou a cabeça, deu com os olhos em Meneses, e empalideceu.
Meneses não dera um passo mais. Ficaram assim alguns segundos a olhar um para o
outro. Enfim, o médico disse ao escravo que se retirasse, e os dous ficaram
sós.
O silêncio prolongou-se ainda mais. Da parte de Félix era confusão; da
parte de Meneses, desapontamento. Viera ele em todo o caminho a descrever na
imaginação o estado de Félix, acabrunhado por alguma grande dor, e em vez disso
achava-o a ler pacificamente um livro. Quis lançar mão do livro, para conhecer
bem até que ponto a sua desilusão era completa; mas o médico rapidamente o
afastou.
- Não atendeste à ordem geral que eu havia dado - disse enfim, o dono da
casa - e creio que só alguma razão poderosa te obrigaria a isso.
- Assim era - retorquiu Meneses -, mas a razão acabou e eu volto para a
cidade.
Dizendo isto, pôs o chapéu na cabeça e dirigiu-se para a porta. Parou um
instante, caminhou de novo até a rede e proferiu secamente estas palavras:
- Tens consciência do que fizeste?
- Tenho - respondeu Félix -; fiz o que me cumpria fazer. Mas, antes de
mais nada, vens aqui por inspiração tua ou por mandado de...
- Venho porque era um dever da minha parte livrar-te da vergonha, e a
ela, da morte.
- Da morte! - exclamou Félix levantando-se de um pulo.
O terror que se lhe pintara no rosto fez boa impressão no amigo.
Suspeitou este que nem tudo estivesse perdido. Sentaram-se ambos, e Meneses
referiu ao médico os acontecimentos que deixo narrados no capítulo anterior.
Félix escutou a narração do amigo com um interesse que não podia vir senão do
amor. Meneses concluiu pintando-lhe com as cores que o caso pedia a baixeza do
seu procedimento, o desaire que recaía sobre a viúva, e o remorso que o havia
de acompanhar a ele, ainda quando daquele triste episódio não saísse nenhuma
fatal consequência.
Félix mostrou-se profundamente comovido com a narração de Meneses e as
reflexões que lhe fizera.
- Tens razão - disse ele quando o amigo acabou de falar -; procedi
covardemente. Ela ainda me ama... E perdoa-me, não é? Sim, há de perdoar-me...
Pobre Lívia! Se tu soubesses como ela tem sofrido por minha causa!...
Meneses, satisfeito, disse-lhe que era indispensável voltar à cidade.
Enquanto falava, porém, o rosto de Félix mudou de expressão. A única resposta
do médico foi:
- Não! O que está feito, está feito; agora é impossível recuar.
- Impossível! - gritou Meneses.
- Impossível - repetiu placidamente Félix.
Meneses levantou-se impaciente e começou a passear. A serenidade do
médico mais lhe doía do que indignava, porque alguma razão poderosa devia ele
ter para cortar tão peremptoriamente toda a tentativa de reconciliação. Quisera
sabê-la e tremia de o interrogar.
O médico, entretanto, deixara-se estar sentado, quase tão tranquilo como
na ocasião em que Meneses lhe entrara no gabinete.
Não era fingida essa tranquilidade, que durava já de alguns dias, depois
de outros - os primeiros -, que foram de aflitiva tempestade.
O homem não se esconde de si mesmo, e o maior infortúnio dos corações
pusilânimes é sentirem que o são. Quando Félix chegou à Tijuca tinha
passado a excitação do primeiro momento; o espírito, fraco de si, e abatido
pela imensidade do abalo, não achou na solidão o alívio que lhe pedira. Vieram
então muitos dias de luta e de febre, em que ele, para fortalecer o ânimo, lia
e relia a misteriosa carta que trouxera consigo. O remédio era antes veneno
para a sua alma ulcerada; lembrava-lhe a felicidade que perdera.
Era isto o que padecia o coração. A consciência padecia também, porque a
sociedade, que ele não vira no primeiro instante, agora lhe aparecia como um
juiz inflexível, a pedir-lhe conta de uma injúria sem explicação. Às vezes
arrependia-se do ato; outras vezes, não se arrependia, mas acusava-se de
precipitado e louco. Nunca mais tristemente se revelara a inconsistência do
espírito.
Com o tempo a consciência foi calando as vozes, e com o tempo, e a
distância, e a sua índole variável, se lhe foi aquietando o coração. Aquele
homem, que alguns dias antes chorava de desespero, nenhum vestígio guardara de
suas lágrimas. Não se lhe apagara o amor da viúva, mas no lugar da paixão
veemente, como que ficara apenas uma recordação remota e suave. Esta mudança
era em parte obra do seu esforço, que buscava no esquecimento um refúgio; mas
em grande parte era um efeito natural dele.
Tal foi a situação em que o achou Meneses. A presença deste trouxe à
memória do médico a última crise do coração. A impressão foi grande, não longa;
a face do lago, que uma rajada encrespara, voltou à serenidade primitiva.
Meneses passeava de um lado para outro, a observar de quando em quando o
médico. Ao seu espírito repugnava a ideia de que Félix recorresse a um meio
extraordinário para sair de uma situação difícil, não sancionada pelo coração.
Uma causa havia, decerto, que se lhe afigurava grave, e que ele a todo custo
queria conhecer. Seus esforços convergiam para esse ponto. Instado pelo amigo,
Félix aludiu à carta que recebera, mas recusou mostrá-la.
- Há nela um segredo - disse ele - que me impede de a comunicar a
ninguém. Lívia tem jus ao meu respeito e possui ainda o meu amor.
Estas últimas palavras foram ditas com certa comoção. Meneses não perdeu
a esperança de o vencer. A sinceridade era a sua eloquência; podia-se dizer que
ele falava com o coração nas mãos. O espírito de Félix ia cedendo ao encanto;
ele mesmo recordava as horas felizes do passado e as saudosas esperanças do
futuro. O coração palpitou-lhe com mais força e a imaginação fez o resto. A
carta, porém, a fatal carta lhe ocupou logo o pensamento, e a fronte descaiu
diante do insuperável obstáculo. Cansado de lutar, Meneses resolveu partir para
a cidade.
- Não sei o que pensarão os outros - disse ele -; eu levo a suspeita de
que não a amaste nunca, e que esse rompimento estrepitoso foi um meio de salvar
a tua liberdade.
Ouvindo estas palavras, Félix não pode conter um gesto de cólera. A
atitude quieta de Meneses o fez cair em si.
- Tens razão - disse ele depois de algum tempo -. Quero que pelo menos
alguém me reconheça inocente e digno. Dás-me a tua palavra de honra que nada
revelarás do que vais ler?
- Dou.
Félix foi buscar a carteira, tirou dela a carta, e entregou-a a Meneses.
Meneses leu o que se segue:
|
|
A carta não tinha assinatura.
Meneses ficou atônito; mas foi obra de alguns instantes, poucos. Sua
índole generosa repelia a ideia de acreditar na revelação que acabava de ler.
- É impossível! - disse ele.
Félix ergueu a cabeça, que apertava entre as mãos, e replicou:
- Essa é a tua convicção; eu quisera que fosse a minha. Mas que
testemunho tens tu contra o que aí vês escrito?
- Não sei - respondeu Meneses com calor -, mas é o que me diz o coração.
Repugna-me crer que essa pobre senhora... Não, é impossível! Demais, uma carta
anônima!
- Põe o nome que quiseres aí embaixo; não lhe aumentas nem lhe tiras o
valor, se a revelação é verdadeira.
- Quem te diz que é verdadeira?
- Quem me diz que o não é? A dúvida era já bastante para justificar o
que fiz. Não foi só o receio do futuro que me impeliu, foi principalmente a
lembrança do passado. A traição dela, se a houve, não deve doer nada ao marido
que se foi; mas, ao marido que vem, a ideia da perfídia anterior destrói pela
base toda a confiança, que é a condição da felicidade. Não sei o que farias tu
no meu caso; eu segui o impulso do coração e da razão.
Meneses ouvira atentamente o amigo. Quando ele acabou:
- Creio-te sincero - disse -; e compreendo que sofreste.
- Muito!
- Mas recusarás uma reflexão? Quem escreveria esta carta? Não foi um amigo,
decerto. Um amigo, se lhe pesasse o teu ato, viria falar-te cara a cara. Um
indiferente também não foi. Resta, pois, um inimigo, teu ou dela...
- Dela?
- Ou um interessado: escolhe.
Félix refletiu um instante.
- Inimigo, não sei se os tinha; interessado... em quê?
- Ela é rica; algum pretendente...
- Não havia nenhum.
Meneses não fraqueou na defesa da sua hipótese. Quanto mais atentava na
revelação da carta, mais o coração lhe bradava contra ela. Para ele a inocência
de Lívia era clara como o sol. Félix sentia-lhe a convicção, e lastimava-se de
a não ter, tão viva e tão profunda.
A noite caíra de todo. Meneses declarou que só voltaria à cidade no dia
seguinte.
Félix compreendeu que o amigo não perdera a esperança de o converter e,
longe de se irritar, agradeceu-lhe a intenção. Era a primeira vez que ele se
expandia com alguém a respeito do seu amor; fê-lo com abundância e sinceridade.
Não lhe lembrara sequer que Meneses também amara a viúva.
Muitas vezes falaram da carta. Meneses perguntou ao médico em que
circunstâncias a recebera. Félix referiu a visita de Luís Batista, o objeto
dela, a conversa travada entre ambos, até que a carta lhe chegou às mãos.
A singularidade da visita de Luís Batista não escapou a Meneses.
- Visitava-te esse homem? - perguntou ele.
- Nunca.
- Eras amigo dele?
- Havia mais razões para sermos inimigos que outra cousa.
Meneses hesitou; não se atrevia a desposar uma suspeita. Mas o espírito
do médico era terreno fecundo para ela. Apenas as perguntas de Meneses lhe
deitaram o gérmen, para logo foi lançando raízes e cresceu.
- Crês então que ele?... - aventurou o médico.
- Não sei; mas, não te parece curiosa toda essa história de gravuras?
Félix refletiu algum tempo. Como quando os olhos se vão acostumando à
meia-luz de um sítio, e começam a distinguir a pouco e pouco os objetos, o
espírito do médico entrou a recordar e a examinar todos os incidentes daquela
fatal manhã. O que ele a princípio não vira, apareceu-lhe então claro e
evidente. O tom ameno e jovial de Luís Batista, a sua estranha verbosidade, o
episódio dos amores tão levemente contados a um homem que não era seu natural
confidente, tudo isto com a circunstância da humilhação que recebera quando a
viúva lhe fechou a sua sala, enfim, a má reputação dele eram indícios de sobejo
para não achar natural a visita que lhe fizera. Mas, como deduzir daqui a
autoria da carta?
Meneses resolveu a dúvida naturalmente.
- Se não desses crédito à carta - disse ele -, o último de quem te
lembrarias seria Luís Batista, porque ninguém faz mal a um homem no mesmo
instante em que lhe vai pedir um favor.
Félix aceitou esta explicação; mas o que acabou de o convencer foi uma
circunstância até então deslembrada e agora decisiva. O médico levantou-se
rapidamente da cadeira; deu alguns passos na sala e parou em frente de Meneses.
- É verdade - disse -; foi ele com certeza! Quando eu li a carta fiquei
fulminado. Ele aproximou-se de mim; eu pedi-lhe que me deixasse só. Obedeceu,
mas um sorriso, que então me pareceu feroz indiferença, mas que hoje vejo que
era de triunfo, lhe roçou os lábios. Foi ele; oh! Sinto que foi ele.
Entendamo-nos, leitor; eu, que te estou contando esta história, posso
afirmar-te que a carta era efetivamente de Luís Batista. A convicção porém do
médico - sincera, decerto - era menos sólida e pausada do que convinha. A alma
dele deixava-se ir ao sabor de uma desconfiança nova, que as circunstâncias
favoreciam e justificavam.
Quando Meneses viu que o maior trabalho estava feito, não teve mais que
falar outra vez de Lívia. A placidez do médico desaparecera; todo ele era agora
amor e ódio, arrependimento e vingança. A noite foi maldormida, e quando a
aurora os convidou a sair do leito, Félix era totalmente outro. Ardia por ir
fazer ao pés da viúva plena confissão da sua indignidade. Era o nome que lhe
dava; dar-lhe-ia outro, se os acontecimentos o fizessem duvidar outra vez.
Apressaram a viagem; Meneses estava alegre com o resultado da missão;
lamentou com o médico a fatalidade do caso, mas estava certo de que tudo ia
acabar como devia. Mil ideias cor-de-rosa enchiam o cérebro de Félix, e ambos
desceram rapidamente na direção da cidade.
XXIII
ADEUS
Apenas chegaram à cidade, Félix despediu-se de Meneses e seguiu para as Laranjeiras.
Ia palpitante e receoso; pela primeira vez nesse dia lhe lembrou a doença da
viúva. Temeu que fosse tarde. Não era; as janelas estavam abertas. Entrou no
jardim; subiu as escadas, cabisbaixo; quando levantou os olhos viu Raquel
diante de si.
Raquel, cujo coração era menos filosófico, posto soubesse resignar-se
como o de Meneses, não viu o médico sem algum abalo interior. Fê-lo entrar e
foi ter com a enferma.
Quando Lívia soube que Félix ali estava, sorriu tristemente e fechou os
olhos. Abriu-os para contemplar a boa amiga que esperava ao pé do leito. Não
estavam molhados. Cobria-os um véu de serena melancolia.
- Agradece-lhe por mim, Raquel, e dize-lhe que me verá quando eu puder
sair daqui.
Félix recebeu o recado e sentiu a frieza dele, apesar da doçura da voz
que lho transmitia.
Era muito contudo; não estaria longe a reconciliação.
A convalescença de Lívia foi mais rápida do que se devera esperar. O
intervalo foi aproveitado por Félix em se reconciliar com Viana, que achou
dentro de si bastante misericórdia para perdoar o culpado. A submissão do
médico o lisonjeou, e o seu arrependimento lhe pareceu o que realmente era -
sincero. Era natural perguntar-lhe a razão do rompimento. Viana achou melhor
calar-se; o que ele queria antes de tudo era a reparação do erro.
Lívia consentiu finalmente em receber o médico. Estava na sala,
envolvida num roupão branco, com um resto de palidez que a enfermidade lhe
deixara no rosto. Nas circunstâncias em que ambos se tornavam a ver não podia
ela estar melhor. O ar da moça não era risonho, mas também não era severo.
Félix caminhou lentamente para ela, tímido e fascinado ao mesmo tempo. De novo
sentia o império que a viúva sempre exercera em seu espírito.
Quando Félix confessou à viúva todo o seu arrependimento e lhe implorou
o perdão da culpa que cometera, escutou-o Lívia com grande serenidade, e
afetuosa lhe respondeu:
- Não lhe nego o perdão que me pede; seria duvidar do seu arrependimento,
e eu creio que é sincero. Podia talvez exigir que me dissesse a causa que o
levou...
- A causa é triste de confessar - interrompeu Félix.
- Não lha peço. Mas quer ouvir o resto?
Felix curvou
a cabeça.
- Creio no seu arrependimento, e não duvido do seu amor, apesar de tudo
o que se há passado. Isto lhe deve bastar. O destino ou a natureza não nos fez
um para o outro. O casamento entre nós seria uma cerimônia apenas. Seria mais;
seria o nosso infortúnio, e mais vale sonhar com a felicidade que poderíamos
ter do que chorar aquela que houvéssemos perdido.
Félix ouviu as palavras da moça cabisbaixo e abatido. Não ousava
responder-lhe nem interrogá-la; mas do seu mesmo silêncio colhia a moça a
sinceridade da dor e do arrependimento.
- Se isto lhe dói - continuou ela -, vê bem que a culpa não é minha. Eu
aceito uma situação não criada por mim, nem também pelo senhor, mas - como eu
lhe dizia -, pela natureza ou pelo destino. No ponto a que chegamos é esta a
resolução melhor.
- Não é - interrompeu Félix com impetuosidade -, não é a melhor porque
ambos perderemos com ela, e nada nos impede a resolução contrária. Creio que
não duvide do meu amor; mas digo-lhe que o não compreende, nem avalia. Eu não
teria ânimo de lhe propor, nas circunstâncias em que nos achamos, um rompimento
que...
O sorriso com que a moça o ouvia cortou-lhe a palavra neste ponto. Caiu
em si, lembrou-lhe - que ele facilmente esquecia tudo -, lembrou-lhe que lhe
não cabia falar de rompimento, e murmurou:
- Não tenho direito de falar assim, e vejo que mereço um castigo...
- Não é castigo - atalhou a viúva -, é necessidade. Se alguma consolação
pode levar desta última entrevista, leve a certeza de que o amo como dantes, e
de que o meu padecimento será ainda maior do que o seu. O casamento é já agora
impossível. Eu não sei o que motivou a sua carta, mas imagino que foi alguma
dúvida nova a meu respeito. Se nos casássemos, cessariam elas?
- Sim! Porque eu hoje creio e vejo o que padeceu por mim. Para duvidar
do seu amor seria preciso que houvesse perdido a razão. Demais - continuou
Félix enquanto Lívia abanava tristemente a cabeça -, viveremos só para nós,
fecharemos a nossa casa aos olhos estranhos...
- Ainda assim o irá perseguir esse mau gênio, Félix; seu espírito
engendrará nuvens para que o céu não seja limpo de todo. As dúvidas o
acompanharão onde quer que nos achemos, porque elas moram eternamente no seu
coração. Acredite o que lhe digo; amemo-nos de longe; sejamos um para o outro
como um traço luminoso do passado, que atravesse indelével o tempo, e nos doure
e aqueça os nevoeiros da velhice.
Lívia proferiu estas últimas palavras com a voz trêmula, e uma lágrima
lhe rolou pela face pálida.
- Por que nos separaremos agora que estamos à porta do céu? - perguntou
Félix -. Não me cabe o direito de exigir uma felicidade que repeli tantas
vezes; mas, se pudesse entrar na minha alma, veria que os meus erros, por
maiores que sejam, e são grandes, anima-os sempre um sentimento de amor, e que
enfim eu cedo sempre ao grito de minha consciência. A mais bela ação seria
perdoar-me esquecendo, e o único modo de esquecer seria voltarmos ao tempo de
nossas esperanças.
- Perdoei tudo, e tudo esqueci; apagou-se o passado e nenhum
ressentimento me ficou. O que se não apaga é o futuro.
Félix torcia as mãos. Era patente o seu desespero. A viúva mal podia
encará-lo. Seguiu-se um longo silêncio, interrompido pela chegada de Luís. O
menino pôs termo à entrevista. Félix olhou ainda algum tempo para a moça; mas
leu-lhe na fisionomia que a resolução era inabalável. Levantou-se para sair.
- Conservaremos a estima recíproca - disse Lívia estendendo-lhe a mão -,
e espero que me conserve também alguma cousa mais... como eu.
Eram as últimas palavras da moça, vieram entrecortadas de soluços. Félix
quis pegar-lhe nas mãos e aproveitar esse passageiro desmaio para conseguir a
retratação das palavras. Mas a moça abraçou-se ao filho em cujo seio escondeu o
rosto.
- Não faça chorar mamãe - disse Luís enlaçando com os bracinhos o
pescoço da viúva.
Félix retirou-se lentamente, com os olhos anuviados, turvo o espírito, o
passo vacilante, e transpôs a custo a soleira daquela porta que se lhe ia
fechar para sempre.
XXIV
HOJE
Dez anos volveram sobre os acontecimentos deste livro, longos e
enfastiados para uns, ligeiros e felizes para outros, que é a lei uniforme
desta mofina sociedade humana. Ligeiros e felizes foram eles para Raquel e
Meneses, que eu tenho a honra de apresentar ao leitor, casados, e amantes ainda
hoje. A piedade os uniu; a união os fez amados e venturosos.
A pouco e pouco, o primeiro amor de Raquel se foi apagando, e o coração
da moça não achou melhor convalescença que desposar o enfermeiro. Se lho
dissessem no tempo em que ela adoecera por amor do médico, levantaria
desdenhosamente os ombros, e com razão. Donde se colhe quão acertado é aquele
provérbio oriental que diz - que a noite vem
pejada do dia seguinte. Qual fosse a aurora que a sua noite trazia
no seio não o adivinhara Raquel, mas a sua atual opinião é que não a podia
haver mais bela em toda a escala do tempo.
O coronel e D. Matilde, com poucos meses de intervalo, foram continuar
na eternidade a doce união que os distinguira neste mundo.
Lívia entra serenamente pelo outono da vida. Não esqueceu até hoje o
escolhido de seu coração, e à proporção que volvem os anos, espiritualiza e
santifica a memória do passado. Os erros de Félix estão esquecidos; o traço
luminoso, de que ela lhe falara na última entrevista, foi só o que lhe ficou.
No tempo em que os mosteiros andavam nos romances - como refúgio dos
heróis, pelo menos -, a viúva acabaria os seus dias no claustro. A solidão da
cela seria o remate natural da vida, e como a olhos profanos não seria dado
devassar o sagrado recinto, lá a deixaríamos sozinha e quieta, aprendendo a
amar a Deus e a esquecer os homens.
Mas o romance é secular, e os heróis que precisam de solidão são obrigados
a buscá-la no meio do tumulto. Lívia soube isolar-se na sociedade. Ninguém mais
a viu no teatro, na rua, ou em reuniões. Suas visitas são poucas e íntimas. Dos
que a conheceram outrora, muitos a esqueceram mais tarde; alguns a
desconheceriam agora.
Talvez o tempo lhe respeitasse a beleza, a não ser a catástrofe que lhe
enlutou a vida. Já na meiga e serena fisionomia vão apontando sinais de
decadência próxima. Os poucos que lhe frequentam a casa não reparam nisso,
porque a alma não perdeu o encanto, e é ainda hoje a mesma feiticeira amável de
outro tempo. Ela, sim, ela vê que a flor inclina o colo, e que não tarda o
vento da noite a dispersá-la no chão. Mas do mesmo modo que a beleza lhe não
acordara vaidades, assim a decadência lhe não inspira terror.
Para consolo e companhia de sua velhice tem ela o filho, em cuja
educação concentra todos os esforços. Luís possui as graças da mãe, apenas
modificadas por uns toques varonis. Tem só quinze anos; mas como herdou a
índole austera da viúva, e pouco, muito pouco, da viveza de imaginação, parece
menos um adolescente que um homem.
Félix é que não iria parar ao claustro. A dolorosa impressão dos
acontecimentos a que o leitor assistiu, se profundamente o abateu, rapidamente
se lhe apagou. O amor extinguiu-se como lâmpada a que faltou óleo. Era a
convivência da moça que lhe nutria a chama. Quando ela desapareceu, a chama
exausta expirou.
Não foi só isto. A sagacidade de Lívia adivinhara as provações que lhe
daria o casamento. Quando de todo se lhe calou o coração, Félix confessou
ingenuamente a si próprio que o desenlace de seus amores, por mais que o
mortificasse outrora, foi ainda assim a solução mais razoável. O amor do médico
teve dúvidas póstumas. A veracidade da carta que impedira o casamento, com o
andar dos anos, não só lhe pareceu possível, mas até provável. Meneses
disse-lhe um dia ter a prova cabal de que Luís Batista fora o autor da carta;
Félix não recusou o testemunho nem lhe pediu a prova. O que ele interiormente
pensava era que, suprimida a vilania de Luís Batista, não estava excluída a
verossimilhança do fato, e bastava ela para lhe dar razão.
A vida solitária e austera da viúva não pôde evitar o espírito
suspeitoso de Félix. Creu nela a princípio. Algum tempo depois duvidou de que
fosse puramente um refúgio; acreditou que seria antes uma dissimulação.
Dispondo de todos os meios que o podiam fazer venturoso, segundo a
sociedade, Félix é essencialmente infeliz. A natureza o pôs nessa classe de
homens pusilânimes e visionários, a quem cabe a reflexão do poeta: "perdem
o bem pelo receio de o buscar". Não se contentando com a
felicidade exterior que o rodeia, quer haver essa outra das afeições íntimas,
duráveis e consoladoras. Não a há de alcançar nunca, porque o seu coração, se
ressurgiu por alguns dias, esqueceu na sepultura o sentimento da confiança e a
memória das ilusões.
FIM
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