MEMORIAL DE AIRES
Machado de Assis
Memorial de Aires é o nono e último romance de Machado de Assis, publicado em 1908,
mesmo ano da morte do autor. Em cartas pessoais, o próprio Machado reitera
diversas vezes o caráter de "ponto final" do Memorial de
Aires, expressando, além disso, alegria pela boa recepção crítica do livro.
"Não quisera o declínio", como afirma em carta a Mário de Alencar.
De fato, não houve declínio. O Memorial, apesar de menos
esfuziante que seus precedentes, é obra igualmente instigante e inovadora.
Escrito na forma de diário, e abarcando os anos de 1888 e 1889, o romance
acompanha as peripécias do pequeno círculo social do conselheiro José da Costa
Marcondes Aires, diplomata aposentado e viúvo, que já havia figurado como
personagem no livro anterior, Esaú e Jacó (1904).
A interligação de obras - já vista, aliás, em Memórias póstumas
de Brás Cubas (1881) e Quincas Borba (1890) - é, em Memorial
de Aires, um dispositivo que transcende a coincidência de personagens e põe
em questão o próprio fazer narrativo. As anotações do conselheiro Aires, anunciadas
(e por vezes transcritas) em Esaú e Jacó, tornam-se um livro, cuja
autoria oscila entre o próprio Aires e o "editor" que assina a
Advertência, "M. de A.".
O resultado desse peculiar jogo de espelhos é uma obra em ritmo lento e
cores intimistas. Às observações acerca do passar do tempo, somam-se os relatos
de pequenos lances da vida das personagens. A atenção narrativa é voltada
completamente para o menor, para acontecimentos quase inexpressivos. As
relações afetivas ocupam o palco central, enquanto eventos de maior vulto, como
a Abolição da Escravatura, parecem figurar somente como contraponto aos dramas
pessoais corriqueiros do casal Aguiar, de Fidélia e Tristão, ou às reflexões do
conselheiro Aires acerca de sua própria velhice.
A naturalidade do banal, anunciada desde o título (em que
"aire" pode também assumir o sentido que lhe dá o dicionário:
"coisa vã, fútil, sem valor"), ajusta-se à forma de diário com que se
apresenta. Os escritos do conselheiro Aires, ainda que atenuados por uma
personalidade que não ama a ênfase ("1888, 4 de fevereiro"), tomam um
inevitável tom confessional, e esta, dentre outras, talvez seja a razão pela
qual muitos leitores encontrem no Memorial o testamento
existencial de Machado de Assis.
Assim como Dom Casmurro foi lido durante décadas como
um romance de adultério, depois passou a ser lido como o romance de um narrador
pouco confiável, cujo relato é, portanto, passível de descrédito, e hoje é,
cada vez mais, lido como um romance em que estão em jogo estratégias textuais
as mais variadas e sofisticadas, a serviço da ambiguidade; assim também, o Memorial foi
lido como um canto de cisne benfazejo, ainda que melancólico, e depois passou a
ser lido como um romance em que um narrador pouco confiável sugere intenções
sórdidas por baixo das aparentemente mais singelas ações das personagens.
Melhor seria dizer, como a personagem de Shakespeare: "On both sides,
more respect", e ler o Memorial de Aires como um
livro de significação irrecuperavelmente ambígua, como já propunham Alfredo
Bosi e Roberto Schwarz, na famosa mesa-redonda de 14 de novembro de 1980, em
diálogo lúcido. Diz Alfredo
Bosi: "Há interesses que são ocultos, por exemplo, no caso do Memorial
de Aires; fica sempre aquela ambiguidade: por que o rapaz voltou? Será que
por afeto aos padrinhos? Ou por que ele tinha interesses econômicos no
Brasil?" Responde Roberto Schwarz: "Justamente, não dá pra
resolver!"
Tudo no Memorial talvez seja, mas pode ser que não
fosse. De fato, o melhor de Machado de Assis é essa tensão entre o que é e o
que poderia não ter sido. Ao mesmo tempo em que as
personagens, inclusive e principalmente o narrador, são todas boas, sinceras e
bem intencionadas (e, ao mesmo tempo, pode ser que sejam más, fingidas e
mal-intencionadas), todas são más, fingidas e mal-intencionadas (e, ao mesmo
tempo, pode ser que sejam o contrário disto). Assim, se a Abolição da
Escravatura passa quase despercebida e enseja o ato "generoso" de
Fidélia, inspirada por Tristão, de doar a fazenda do pai aos escravos libertos,
a leitura atenta indicará a perfeita consciência do narrador Aires (e, por trás
dele, a do autor Machado) de que o ato é na verdade de uma crueldade atroz,
constituindo-se como consumação de um abandono dos libertos à própria sorte.
Veja-se a anotação no diário do conselheiro: "Se eles não têm de ir viver
na roça, e não precisam do valor da fazenda, melhor é dá-la aos libertos.
Poderão estes fazer a obra comum e corresponder à boa vontade da sinhá-moça? É
outra questão, mas não se me dá de a ver ou não resolvida; há muita outra cousa
neste mundo mais interessante." ("1889, 15 de abril"). O
narrador se esquiva ao julgamento, mas o registro no diário põe o leitor em
estado de alerta, que é, de resto, o único estado possível em que pode e deve
ficar o leitor machadiano, para melhor fruição de seus textos.
Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais,
das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme
o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil
desde 1o de janeiro de 2009 ("ideia" e não "idéia";
"frequente" e não "freqüente"). No entanto, nos casos em
que os dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em
"céptico"/"cético",
"respectivo"/"respetivo"), preferiu-se aquela utilizada
pelo autor, que oscila entre "conjetura" (várias ocorrências) e
"conjectura" (uma ocorrência) e, no caso de "invetivar"
(forma não consignada nos dicionários), parece trabalhar por analogia com
"respetivo". Quanto a "aspecto"/"aspeto", o autor
utiliza as duas formas neste romance, o que se respeitou. Foram utilizadas
iniciais maiúsculas para instituições ("Câmara dos Deputados") e para
celebrações populares e religiosas ("Entrudo", "Quaresma").
Foram respeitadas algumas especificidades da escrita de Machado de
Assis, como o emprego particular de "meia" (advérbio) flexionado:
"meia doente"; e o uso da regência indireta quando deveria ser
direta: "Fidélia não voltou ao Flamengo, apesar da promessa que D. Carmo
lhe fez fazer.". Outra curiosidade da escrita machadiana presente neste
livro é a oscilação entre o emprego e o não emprego de artigo definido antes de
nome próprio ("[...] logo depois aceitava a ponta da conversação que ele
lhe dava, acerca da Fidélia ou do Tristão [...]"; "[...] marcou-se o
dia do casamento de Tristão e Fidélia [...]"). Como em vários outros
escritos seus, Machado de Assis dá preferência ao uso da preposição
"até" seguida de outra preposição, "a", como era e é comum
em Portugal ("[...] desde as sopinhas de leite até aos capotinhos de lã
[...]"), embora às vezes suprima a segunda preposição ("Ela foi
descendo até o portão [...]").
Possivelmente o maior problema no estabelecimento de textos escritos no
século XIX é o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política
a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas
presentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, que, de resto, era a
geralmente aceita no século XIX no Brasil e em Portugal. Para citar dois
exemplos: manteve-se a vírgula antes da aditiva "e" precedendo verbos
cujo sujeito é precisamente o mesmo da oração anterior ("Calou esse ponto,
e foi mais discreta que ele"), assim como não se introduziu vírgula antes
da aditiva "e" precedendo sujeito diferente ("O barão recusou a
pés juntos e o desembargador dispunha-se a voltar para a Corte [...].").
Também foram respeitadas idiossincrasias como a alternância do uso e não uso de
vírgula antes de oração consecutiva ("[...] a viúva acompanhou o
recém-chegado com tal gosto e discrição, que ele acabou pedindo-lhe que tocasse
também."; e "[...] contou-me anedotas de seu tempo de menina e moça,
com tal desinteresse e calor que me deu vontade de lhe pegar na mão
[...]"). Convém assinalar que, nos casos de elipse do verbo, inseriu-se
vírgula para indicá-la ("Disse-me que ele é bom senhor, eles, bons
escravos[...]"), o que nem sempre é o procedimento do autor. Quando se
considerou que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento
do texto, não se hesitou em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas
precedendo orações adjetivas restritivas (suprimidas) e de falta de vírgulas
precedendo orações adjetivas explicativas (inseridas).
Os numerais foram grafados por extenso, que é o uso predominante na
prosa do autor. Adotou-se esse procedimento pelo mesmo motivo que se mantiveram
em língua estrangeira os vocábulos assim escritos na primeira edição, por
acreditar-se que tudo isso contribui para aquilo que se poderia chamar de
"atmosfera textual" machadiana.
A presente edição, ao incluir as notas que esclarecem as muitas citações
e alusões encontradas na obra machadiana, visa tornar mais acessível o texto deMemorial
de Aires. Busca também fornecer informações sobre locais e instituições
familiares aos leitores contemporâneos de Machado, mas talvez já muito
distantes do leitor de hoje.
Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir
uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks,
oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a
distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de
Assis.
Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks,
de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui
Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos e Karen Nascimento, bolsistas
de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que
possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da
Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.
Marta de Senna, pesquisadora
Victor Heringer, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ
janeiro de 2011
Victor Heringer, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ
janeiro de 2011
ADVERTÊNCIA
Quem me leu Esaú e Jacó talvez
reconheça estas palavras do prefácio: "Nos lazeres do ofício escrevia o Memorial,
que, apesar das páginas mortas ou escuras, apenas daria (e talvez dê) para
matar o tempo da barca de
Petrópolis".
Referia-me ao conselheiro
Aires. Tratando-se agora de imprimir o Memorial,4
achou-se que a parte relativa a uns dous anos (1888-1889), se for decotada de
algumas circunstâncias, anedotas, descrições e reflexões - pode dar uma
narração seguida, que talvez interesse, apesar da forma de diário que tem. Não
houve pachorra de a redigir à maneira daquela outra - nem pachorra, nem
habilidade. Vai como estava, mas desbastada e estreita, conservando só o que
liga o mesmo assunto. O resto aparecerá um dia, se aparecer algum dia.
M. de A.
Em Lixboa, sobre lo mar,
Barcas novas mandey lavrar...
Barcas novas mandey lavrar...
Cantiga de JOHAM ZORRO.
Para veer meu amigo
Que talhou preyto comigo,
Alá vou, madre.
Para veer meu amado
Que mig'a preyto talhado,
Alá vou, madre.
Que talhou preyto comigo,
Alá vou, madre.
Para veer meu amado
Que mig'a preyto talhado,
Alá vou, madre.
Cantiga d'el rei DOM
DENIS.
1888
9 de janeiro
Ora bem, faz hoje um ano que voltei definitivamente da Europa.
O que me lembrou esta data foi, estando a beber café, o pregão de um vendedor
de vassouras e espanadores: "Vai vassouras! Vai espanadores!" Costumo
ouvi-lo outras manhãs, mas desta vez trouxe-me à memória o dia do desembarque,
quando cheguei aposentado à minha terra, ao meu Catete,
à minha língua. Era o mesmo que ouvi há um ano, em 1887, e talvez fosse a mesma
boca.
Durante os meus trinta e tantos anos de diplomacia algumas vezes vim ao
Brasil, com licença. O mais do tempo vivi fora, em várias partes, e não foi
pouco. Cuidei que não acabaria de me habituar novamente a esta outra vida de
cá. Pois acabei. Certamente ainda me lembram cousas e pessoas de longe,
diversões, paisagens, costumes, mas não morro de saudades por nada. Aqui estou,
aqui vivo, aqui morrerei.
*****
Cinco horas da tarde
Recebi agora um bilhete de mana Rita, que aqui vai colado:
9 de janeiro
|
Não vejo necessidade disso, mas respondi que sim.
10 de janeiro
Fomos ao cemitério.
Rita, apesar da alegria do motivo, não pôde reter algumas velhas lágrimas de
saudade pelo marido que lá está no jazigo, com meu pai e minha mãe. Ela ainda
agora o ama, como no dia em que o perdeu, lá se vão tantos anos. No caixão do
defunto mandou guardar um molho dos seus cabelos, então pretos, enquanto os
mais deles ficaram a embranquecer cá fora.
Não é feio o nosso jazigo; podia ser um pouco mais simples - a inscrição
e uma cruz -, mas o que está é bem feito. Achei-o novo demais, isso sim. Rita
fá-lo lavar todos os meses, e isto impede que envelheça. Ora, eu creio que um
velho túmulo dá melhor impressão do ofício, se tem as negruras do tempo, que
tudo consome. O contrário parece sempre da véspera.
Rita orou diante dele alguns minutos, enquanto eu circulava os olhos
pelas sepulturas próximas. Em quase todas havia a mesma antiga súplica da
nossa: "Orai por ele! Orai por ela!" Rita me disse depois, em
caminho, que é seu costume atender ao pedido das outras, rezando uma prece por
todos os que ali estão. Talvez seja a única. A mana é boa criatura, não menos
que alegre.
A impressão que me dava o total do cemitério é
a que me deram sempre outros; tudo ali estava parado. Os gestos das figuras,
anjos e outras, eram diversos, mas imóveis. Só alguns pássaros davam sinal de
vida, buscando-se entre si e pousando nas ramagens, pipilando ou gorjeando. Os
arbustos viviam calados, na verdura e nas flores.
Já perto do portão, à saída, falei a mana Rita de uma senhora que eu
vira ao pé de outra sepultura, ao lado esquerdo do cruzeiro, enquanto ela
rezava. Era moça, vestia de preto, e parecia rezar também, com as mãos cruzadas
e pendentes. A cara não me era estranha, sem atinar quem fosse. E bonita, e
gentilíssima, como ouvi dizer de outras em Roma.
- Onde está?
Disse-lhe onde estava. Quis ver quem era. Rita, além de boa pessoa, é
curiosa, sem todavia chegar ao superlativo romano. Respondi-lhe que
esperássemos ali mesmo, ao portão.
- Não! Pode não vir tão cedo, vamos espiá-la de longe. É assim bonita?
- Pareceu-me.
Entramos e enfiamos por um caminho entre campas, naturalmente. A alguma
distância, Rita deteve-se.
- Você conhece, sim. Já a viu lá em casa, há dias.
- Quem é?
- É a viúva Noronha. Vamos embora, antes que nos veja.
Já agora me lembrava, ainda que vagamente, de uma senhora que lá
apareceu em Andaraí,
a quem Rita me apresentou e com quem falei alguns minutos.
- Viúva de um médico, não é?
- Isso; filha de um fazendeiro da Paraíba do
Sul,, o barão de Santa-Pia.
Nesse momento, a viúva descruzava as mãos, e fazia gesto de ir embora.
Primeiramente espraiou os olhos, como a ver se estava só. Talvez quisesse
beijar a sepultura, o próprio nome do marido, mas havia gente perto, sem contar
dous coveiros que levavam um regador e uma enxada, e iam falando de um enterro
daquela manhã. Falavam alto, e um escarnecia do outro, em voz grossa:
"Eras capaz de levar um daqueles ao morro? Só se fossem quatro como
tu". Tratavam de caixão pesado, naturalmente, mas eu voltei depressa a
atenção para a viúva, que se afastava e caminhava lentamente, sem mais olhar
para trás. Encoberto por um mausoléu, não a pude ver mais nem melhor que a
princípio. Ela foi descendo até o portão, onde passava um bonde em que entrou e
partiu. Nós descemos depois e viemos no outro.
Rita contou-me então alguma cousa da vida da moça e da felicidade grande
que tivera com o marido, ali sepultado há mais de dous anos. Pouco tempo
viveram juntos. Eu, não sei por que inspiração maligna, arrisquei esta
reflexão:
- Não quer dizer que não venha a casar outra vez.
- Aquela não casa.
- Quem lhe diz que não?
- Não casa; basta saber as circunstâncias do casamento, a vida que
tiveram e a dor que ela sentiu quando enviuvou.
- Não quer dizer nada, pode casar; para casar basta estar viúva.
- Mas eu não casei.
- Você é outra cousa, você é única.
Rita sorriu, deitando-me uns olhos de censura, e abanando a cabeça, como
se me chamasse "peralta". Logo ficou séria, porque a lembrança do
marido fazia-a realmente triste. Meti o caso à bulha; ela, depois de aceitar
uma ordem de ideias mais alegre, convidou-me a ver se a viúva Noronha casava
comigo; apostava que não.
- Com os meus sessenta e dous anos?
- Oh! Não os parece; tem a verdura dos trinta.
Pouco depois chegamos a casa e Rita almoçou comigo. Antes do almoço,
tornamos a falar da viúva e do casamento, e ela repetiu a aposta. Eu,
lembrando-me de Goethe,
disse-lhe:
- Mana, você está a querer fazer comigo a aposta de
Deus e de Mefistófeles; não conhece?
- Não conheço.
Fui à minha pequena estante e tirei o volume do Fausto,
abri a página do prólogo no Céu, e li-lha, resumindo como pude. Rita escutou
atenta o desafio de
Deus e do Diabo, a propósito do velho Fausto, o servo do Senhor, e
da perda infalível que faria dele o astuto. Rita não tem cultura, mas tem
finura, e naquela ocasião tinha principalmente fome. Replicou rindo:
- Vamos almoçar. Não quero saber desses prólogos nem de outros; repito o
que disse, e veja você se refaz o que lá vai desfeito. Vamos almoçar.
Fomos almoçar; às duas horas Rita voltou para Andaraí,
eu vim escrever isto e vou dar um giro pela cidade.
12 de janeiro
Na conversa de anteontem com Rita esqueceu-me dizer a parte relativa a
minha mulher, que lá está enterrada em Viena.
Pela segunda vez falou-me em transportá-la para o nosso jazigo. Novamente lhe
disse que estimaria muito estar perto dela, mas que, em minha opinião, os
mortos ficam bem onde caem; redarguiu-me que estão muito melhor com os seus.
- Quando eu morrer, irei para onde ela estiver, no outro mundo, e ela
virá ao meu encontro - disse eu.
Sorriu, e citou o exemplo da viúva Noronha, que fez transportar o marido
de Lisboa,
onde faleceu, para o Rio de
Janeiro, onde ela conta acabar. Não disse mais sobre este assunto,
mas provavelmente tornará a ele, até alcançar o que lhe parece. Já meu cunhado
dizia que era seu costume dela, quando queria alguma cousa.
Outra cousa que não escrevi foi a alusão que ela fez à gente Aguiar, um
casal que conheci a última vez que vim, com licença, ao Rio de
Janeiro, e agora encontrei. São amigos dela e da viúva, e celebram
daqui a dez ou quinze dias as suas bodas de prata. Já os visitei duas vezes e o
marido, a mim. Rita falou-me deles com simpatia e aconselhou-me a ir
cumprimentá-los por ocasião das festas aniversárias.
- Lá encontrará Fidélia.
- Que Fidélia?
- A viúva Noronha.
- Chama-se Fidélia?
- Chama-se.
- O nome não basta para não casar.
- Tanto melhor para você, que vencerá a pessoa e o nome, e acabará
casando com a viúva. Mas eu repito que não casa.
14 de janeiro
A única particularidade da biografia de Fidélia é que o pai e o sogro
eram inimigos políticos, chefes de partido na Paraíba do
Sul. Inimizade de famílias não tem impedido que moços se amem, mas é
preciso ir a Verona ou
alhures. E ainda os de Verona,
dizem comentadores que as famílias de Romeu e de
Julieta eram antes amigas e do mesmo partido; também dizem que
nunca existiram, salvo na tradição ou somente na cabeça de Shakespeare.
Nos nossos municípios, ao norte, ao sul e ao centro, creio que não há
caso algum. Aqui a oposição dos rebentos continua a das raízes, e cada árvore
brota de si mesma, sem lançar galhos a outra, e esterilizando-lhe o terreno, se
pode. Eu, se fosse capaz de ódio, era assim que odiava; mas eu não odeio nada
nem ninguém - perdono a
tutti, como na
ópera.
Agora, como foi que eles se amaram - os namorados da Paraíba do
Sul - é o que Rita me não referiu, e seria curioso saber. Romeu e
Julieta aqui no Rio,
entre a lavoura e a advocacia - porque o pai do nosso Romeu era
advogado na cidade da Paraíba -
é um desses encontros que importaria conhecer para explicar. Rita não entrou
nesses pormenores; eu, se me lembrar, hei de pedir-lhos. Talvez ela os recuse
imaginando que começo deveras a morrer pela dama.
16 de janeiro
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Tão depressa vinha saindo do Banco do Sul encontrei
Aguiar, gerente dele, que para lá ia. Cumprimentou-me muito afetuosamente,
pediu-me notícias de Rita, e falamos durante alguns minutos sobre cousas gerais.
Isto foi ontem. Hoje pela manhã recebi um bilhete de Aguiar,
convidando-me, em nome da mulher e dele, a ir lá jantar no dia 24. São as bodas
de prata. "Jantar simples e de poucos amigos", escreveu ele. Soube
depois que é festa recolhida. Rita vai também. Resolvi aceitar, e vou.
20 de janeiro
Três dias metido em casa, por um resfriamento com pontinha de febre.
Hoje estou bom e, segundo o médico, posso já sair amanhã; mas poderei ir às
bodas de prata dos velhos Aguiares? Profissional cauteloso, o Dr. Silva me
aconselhou que não vá; mana Rita, que tratou de mim dous dias, é da mesma
opinião. Eu não a tenho contrária, mas se me achar lépido e robusto, como é
possível, custar-me-á não ir. Veremos; três dias passam depressa.
*****
Seis horas da tarde
Gastei o dia a folhear livros, e reli especialmente alguma cousa de Shelley e
também de Thackeray.
Um consolou-me de outro, este desenganou-me daquele; é assim que o engenho
completa o engenho, e o espírito aprende as línguas do espírito.
*****
Nove horas da noite
Rita jantou comigo; disse-lhe que estou são como um pero, e com forças
para ir às bodas de prata. Ela, depois de me aconselhar prudência, concordou
que, se não tiver mais nada, e for comedido ao jantar, posso ir; tanto mais que
os meus olhos terão lá dieta absoluta.
- Creio que Fidélia não vai - explicou.
- Não vai?
- Estive hoje com o desembargador Campos, que me disse haver deixado a
sobrinha com a nevralgia do costume. Padece de nevralgias. Quando elas lhe
aparecem é por dias, e não vão sem muito remédio e muita paciência. Talvez vá
visitá-la amanhã ou depois.
Rita acrescentou que para o casal Aguiar é meio desastre; contavam com
ela, como um dos encantos da festa. Querem-se muito, eles a ela, e ela a eles,
e todos se merecem, é o parecer de Rita e pode vir a ser o meu.
- Creio. Já agora, se me não sentir impedido, irei sempre. Também a mim
parece boa gente a gente Aguiar. Nunca tiveram filhos?
- Nunca. São muito afetuosos, D. Carmo ainda mais que o marido. Você não
imagina como são amigos um do outro. Eu não os frequento muito, porque vivo
metida comigo, mas o pouco que os visito basta para saber o que valem, ela
principalmente. O desembargador Campos, que os conhece desde muitos anos, pode
dizer-lhe o que eles são.
- Haverá muita gente ao jantar?
- Não; creio que pouca. A maior parte dos amigos irá de noite. Eles são
modestos, o jantar é só dos mais íntimos, e por isso o convite que fizeram a
você mostra grande simpatia pessoal.
- Já senti isso, quando me apresentaram a eles, há sete anos, mas então
supus que era mais por causa do ministro que do homem. Agora, quando me
receberam, foi com muito gosto. Pois lá vou no dia 24, haja ou não haja
Fidélia.
25 de janeiro
Lá fui ontem às bodas de prata. Vejamos se posso resumir agora as minhas
impressões da noite.
Não podiam ser melhores. A primeira delas foi a união do casal. Sei que
não é seguro julgar por uma festa de algumas horas a situação moral de duas
pessoas. Naturalmente a ocasião aviva a memória dos tempos passados, e a
afeição dos outros como que ajuda a duplicar a própria. Mas não é isso. Há
neles alguma cousa superior à oportunidade e diversa da alegria alheia. Senti
que os anos tinham ali reforçado e apurado a natureza, e que as duas pessoas
eram, ao cabo, uma só e única. Não senti, não podia sentir isto logo que
entrei, mas foi o total da noite.
Aguiar veio receber-me à porta da sala - eu diria que com uma intenção
de abraço, se pudesse havê-la entre nós e em tal lugar; mas a mão fez esse
ofício, apertando a minha efusivamente. É homem de sessenta anos feitos (ela
tem cinquenta), corpo antes cheio que magro, ágil, ameno e risonho. Levou-me à
mulher, a um lado da sala, onde ela conversava com duas amigas. Não era nova
para mim a graça da boa velha, mas desta vez o motivo da visita e o teor do meu
cumprimento davam-lhe à expressão do rosto algo que tolera bem a qualificação
de radiante. Estendeu-me a mão, ouviu-me e inclinou a cabeça, olhando de
relance para o marido.
Senti-me objeto dos cuidados de ambos. Rita chegou pouco depois de mim;
vieram vindo outros homens e senhoras, todos de mim conhecidos, e vi que eram
familiares da casa. Em meio da conversação, ouvi esta palavra inesperada a uma
senhora, que dizia a outra:
- Não vá Fidélia ter ficado pior.
- Ela vem? - perguntou a outra.
- Mandou dizer que vinha; está melhor; mas talvez lhe faça mal.
O mais que as duas disseram, relativamente à viúva, foi bem. O que me
dizia um dos convidados apenas foi ouvido por mim, sem lhe prestar atenção
maior que o assunto nem perder as aparências dela. Pela hora próxima do jantar
supus que Fidélia não viesse. Supus errado. Fidélia e o tio foram os últimos
chegados, mas chegaram. O alvoroço com que D. Carmo a recebeu mostrava bem a
alegria de a ver ali, apenas convalescida, e apesar do risco de voltar à noite.
O prazer de ambas foi grande.
Fidélia não deixou inteiramente o luto; trazia às orelhas dous corais, e
o medalhão com o retrato do marido, ao peito, era de ouro. O mais do vestido e
adorno, escuro. As joias e um raminho de miosótis à cinta vinham talvez em
homenagem à amiga. Já de manhã lhe enviara um bilhete de cumprimentos
acompanhando o pequeno vaso de porcelana, que estava em cima de um móvel com
outros presentinhos aniversários.
Ao vê-la agora, não a achei menos saborosa que no cemitério,
e há tempos em casa de mana Rita, nem menos vistosa também. Parece feita ao
torno, sem que este vocábulo dê nenhuma ideia de rigidez; ao contrário, é
flexível. Quero aludir somente à correção das linhas - falo das linhas vistas;
as restantes adivinham-se e juram-se. Tem a pele macia e clara, com uns tons
rubros nas faces, que lhe não ficam mal à viuvez. Foi o que vi logo à chegada,
e mais os olhos e os cabelos pretos; o resto veio vindo pela noite adiante, até
que ela se foi embora. Não era preciso mais para completar uma figura
interessante no gesto e na conversação. Eu, depois de alguns instantes de
exame, eis o que pensei da pessoa. Não pensei logo em prosa, mas em verso, e um
verso justamente de Shelley,
que relera dias antes, em casa, como lá ficou dito atrás, e tirado de uma das
suas estâncias de 1821:
I can give
not what men call love.
Assim disse comigo em inglês, mas logo depois repeti em prosa nossa a
confissão do poeta, com um fecho da minha composição: "Eu não posso dar o
que os homens chamam amor... e é pena!"
Esta confissão não me fez menos alegre. Assim, quando D. Carmo veio
tomar-me o braço, segui como se fosse para um jantar de núpcias. Aguiar deu o
braço a Fidélia, e sentou-se entre ela e a mulher. Escrevo estas indicações sem
outra necessidade mais que a de dizer que os dous cônjuges, ao pé um do outro,
ficaram ladeados pela amiga Fidélia e por mim. Desta maneira pudemos ouvir
palpitar o coração aos dous - hipérbole permitida para dizer que em ambos nós,
em mim, ao menos, repercutia a felicidade daqueles 25 anos de paz e consolação.
A dona da casa, afável, meiga, deliciosa com todos, parecia realmente
feliz naquela data; não menos o marido. Talvez ele fosse ainda mais feliz que
ela, mas não saberia mostrá-lo tanto. D. Carmo possui o dom de falar e viver
por todas as feições, e um poder de atrair as pessoas, como terei visto em
poucas mulheres, ou raras. Os seus cabelos brancos, colhidos com arte e gosto,
dão à velhice um relevo particular, e fazem casar nela todas as idades. Não sei
se me explico bem, nem é preciso dizer melhor para o fogo a que lançarei um dia
estas folhas de solitário.
De quando em quando, ela e o marido trocavam as suas impressões com os
olhos, e pode ser que também com a fala. Uma só vez a impressão visual foi
melancólica. Mais tarde ouvi a explicação a mana Rita. Um dos convivas - sempre
há indiscretos -, no brinde que lhes fez aludiu à falta de filhos, dizendo
"que Deus lhos negara para que eles se amassem melhor entre si". Não
falou em verso, mas a ideia suportaria o metro e a rima, que o autor talvez
houvesse cultivado em rapaz; orçava agora pelos cinquenta anos, e tinha um
filho. Ouvindo aquela referência, os dous fitaram-se tristes, mas logo buscaram
rir, e sorriram. Mana Rita me disse depois que essa era a única ferida do
casal. Creio que Fidélia percebeu também a expressão de tristeza dos dous,
porque eu a vi inclinar-se para ela com um gesto do cálix e brindar a D. Carmo
cheia de graça e ternura:
- À sua felicidade.
A esposa Aguiar, comovida, apenas pôde responder logo com o gesto; só
instantes depois de levar o cálix à boca, acrescentou, em voz meio surda, como
se lhe custasse sair do coração apertado esta palavra de agradecimento:
- Obrigada.
Tudo foi assim segredado, quase calado. O marido aceitou a sua parte do
brinde, um pouco mais expansivo, e o jantar acabou sem outro rasto de
melancolia.
De noite vieram mais visitas; tocou-se, três ou quatro pessoas jogaram
cartas. Eu deixei-me estar na sala, a mirar aquela porção de homens alegres e
de mulheres verdes e maduras, dominando a todas pelo aspecto particular da
velhice de D. Carmo, e pela graça apetitosa da mocidade de Fidélia; mas a graça
desta trazia ainda a nota da viuvez recente, aliás de dous anos. Shelley continuava
a murmurar ao meu ouvido para que eu repetisse a mim mesmo: I can give
not what men call love.
Quando transmiti esta impressão a Rita, disse ela que eram desculpas de
mau pagador, isto é, que eu, temendo não vencer a resistência da moça, dava-me
por incapaz de amar. E pegou daqui para novamente fazer a apologia da paixão
conjugal de Fidélia.
- Todas as pessoas daqui e de fora que os viram - continuou - podem
dizer a você o que foi aquele casal. Basta saber que se uniram, como já lhe
disse, contra a vontade dos dous pais, e amaldiçoados por ambos. D. Carmo tem
sido confidente da amiga, e não repete o que lhe ouve por discreta, resume só o
que pode, com palavras de afirmação e de admiração. Tenho-as ouvido muita vez.
A mim mesma Fidélia conta alguma cousa. Converse com o tio... Olhe, ele que lhe
diga também da gente Aguiar...
Neste ponto interrompi:
- Pelo que ouço, enquanto eu andava lá fora, a representar o Brasil, o
Brasil fazia-se o seio de
Abraão. Você, o casal Aguiar, o casal Noronha, todos os casais, em
suma, faziam-se modelos de felicidade perpétua.
- Pois peça ao desembargador que lhe diga tudo.
- Outra impressão que levo desta casa e desta noite é que as duas damas,
a casada e a viúva, parecem amar-se como mãe e filha, não é verdade?
- Creio que sim.
- A viúva também não tem filhos?
- Também não. É um ponto de contato.
- Há um ponto de desvio; é a viuvez de Fidélia.
- Isso não; a viuvez de Fidélia está com a velhice de D. Carmo; mas se
você acha que é desvio tem nas suas mãos concertá-lo, é arrancar a viúva à
viuvez, se puder; mas não pode, repito.
A mana não costuma dizer pilhérias, mas quando lhe sai alguma tem pico.
Foi o que eu lhe disse então, ao metê-la no carro que a levou a Andaraí,
enquanto eu vim a pé para o Catete.
Esqueceu-me dizer que a casa Aguiar é na praia do
Flamengo, ao fundo de um pequeno jardim, casa velha, mas sólida.
Sábado
Ontem encontrei um velho conhecido do corpo diplomático e prometi ir
jantar com ele amanhã em Petrópolis.
Subo hoje e volto segunda-feira. O pior é que acordei de mau humor, e antes
quisera ficar que subir. E daí pode ser que a mudança de ar e de espetáculo
altere a disposição do meu espírito. A vida, mormente nos velhos, é um ofício
cansativo.
Segunda-feira
Desci hoje de Petrópolis.
Sábado, ao sair a barca da
Prainha, dei com o desembargador Campos a bordo, e foi um bom
encontro, porque daí a pouco o meu mau humor cedia, e cheguei a Mauá já
meio curado. Na estação de Petrópolis estava
restabelecido inteiramente.
Não me lembra se já escrevi neste Memorial que o Campos
foi meu colega de ano em São Paulo.
Com o tempo e a ausência perdemos a intimidade, e quando nos vimos outra vez, o
ano passado, apesar das recordações escolásticas que surgiram entre nós, éramos
estranhos. Vimo-nos algumas vezes, e passamos uma noite no Flamengo;
mas a diferença da vida tinha ajudado o tempo e a ausência.
Agora na barca fomos reatando melhor os laços antigos. A viagem por mar
e por terra era de sobra para avivar alguma cousa da vida escolar. Bastante
foi; acabamos lavados da velhice.
Ao subir a serra as nossas impressões divergiram um tanto. Campos achava
grande prazer na viagem que íamos fazendo em trem de ferro. Eu confessava-lhe
que tivera maior gosto quando ali ia em caleças tiradas a burros, umas atrás
das outras, não pelo veículo em si, mas porque ia vendo, ao longe, cá embaixo,
aparecer a pouco e pouco o mar e a cidade com tantos aspectos pinturescos. O
trem leva a gente de corrida, de afogadilho, desesperado, até à própria estação
de Petrópolis.
E mais lembrava as paradas, aqui para beber café, ali para beber água na fonte
célebre, e finalmente a vista do alto da serra, onde os elegantes de Petrópolis aguardavam
a gente e a acompanhavam nos seus carros e cavalos até à cidade; alguns dos
passageiros de baixo passavam ali mesmo para os carros onde as famílias
esperavam por eles.
Campos continuou a dizer todo o bem que achava no trem de ferro, como
prazer e como vantagem. Só o tempo que a gente poupa! Eu, se retorquisse
dizendo-lhe bem do tempo que se perde, iniciaria uma espécie de debate que
faria a viagem ainda mais sufocada e curta. Preferi trocar de assunto e
agarrei-me aos derradeiros minutos, falei do progresso, ele também, e chegamos
satisfeitos à cidade da serra.
Os dous fomos para o mesmo hotel
(Bragança). Depois de jantar saímos em passeio de digestão, ao longo
do rio.
Então, a propósito dos tempos passados, falei do casal Aguiar e do conhecimento
que Rita me disse que ele tinha da vida e da mocidade dos dous cônjuges.
Confessei achar nestes um bom exemplo de aconchego e união. Talvez a minha
intenção secreta fosse passar dali ao casamento da própria sobrinha dele, suas
condições e circunstâncias, cousa difícil pela curiosidade que podia exprimir,
e aliás não está nos meus hábitos, mas ele não me deu azo nem tempo. Todo este
foi pouco para dizer da gente Aguiar. Ouvi com paciência, porque o assunto
entrou a interessar-me depois das primeiras palavras, e também porque o
desembargador fala muito agradavelmente. Mas agora é tarde para transcrever o
que ele disse; fica para depois, um dia, quando houver passado a impressão, e
só me ficar de memória o que vale a pena guardar.
4 de fevereiro
Eia, resumamos hoje o que ouvi ao desembargador em Petrópolis acerca
do casal Aguiar. Não ponho os incidentes, nem as anedotas soltas, e até excluo
os adjetivos que tinham mais interesse na boca dele do que lhes poderia dar a minha
pena; vão só os precisos à compreensão de cousas e pessoas.
A razão que me leva a escrever isto é a que entende com a situação moral
dos dous, e prende um tanto com a viúva Fidélia. Quanto à vida deles ei-la aqui
em termos secos, curtos e apenas biográficos. Aguiar casou guarda-livros. D.
Carmo vivia então com a mãe, que era de Nova Friburgo,
e o pai, um relojoeiro suíço daquela cidade. Casamento a grado de todos. Aguiar
continuou guarda-livros, e passou de uma casa a outra e mais outra, fez-se
sócio da última, até ser gerente de banco, e chegaram à velhice sem filhos. É
só isto, nada mais que isto. Viveram até hoje sem bulha nem matinada.
Queriam-se, sempre se quiseram muito, apesar dos ciúmes que tinham um do
outro, ou por isso mesmo. Desde namorada, ela exerceu sobre ele a influência de
todas as namoradas deste mundo, e acaso do outro, se as há tão longe. Aguiar
contara uma vez ao desembargador os tempos amargos em que, ajustado o
casamento, perdeu o emprego por falência do patrão. Teve de procurar outro; a
demora não foi grande, mas o novo lugar não lhe permitiu casar logo, era-lhe
preciso assentar a mão, ganhar confiança, dar tempo ao tempo. Ora, a alma dele
era de pedras soltas; a fortaleza da noiva foi o cimento e a cal que as uniram
naqueles dias de crise. Copio esta imagem que ouvi ao Campos, e que ele me
disse ser do próprio Aguiar. Cal e cimento valeram-lhe logo em todos os casos
de pedras desconjuntadas. Ele via as cousas pelos seus próprios olhos, mas se
estes eram ruins ou doentes, quem lhe dava remédio ao mal físico ou moral era
ela.
A pobreza foi o lote dos primeiros tempos de casados. Aguiar dava-se a
trabalhos diversos para acudir com suprimentos à escassez dos vencimentos. D.
Carmo guiava o serviço doméstico, ajudando o pessoal deste e dando aos arranjos
da casa o conforto que não poderia vir por dinheiro. Sabia conservar o bastante
e o simples; mas tão ordenadas as cousas, tão completadas pelo trabalho das mãos
da dona que captavam os olhos ao marido e às visitas. Todas elas traziam uma
alma, e esta era nada menos que a mesma, repartida sem quebra e com alinho
raro, unindo o gracioso ao preciso. Tapetes de mesa e de pés, cortinas de
janelas e outros mais trabalhos que vieram com os anos, tudo trazia a marca da
sua fábrica, a nota íntima da sua pessoa. Teria inventado, se fosse preciso, a
pobreza elegante.
Criaram relações variadas, modestas como eles e de boa camaradagem.
Neste capítulo a parte de D. Carmo é maior que a de Aguiar. Já em menina era o
que foi depois. Havendo estudado em um colégio do Engenho Velho,
a moça acabou sendo considerada a primeira aluna do estabelecimento, não só sem
desgosto, tácito ou expresso, de nenhuma companheira, mas com prazer manifesto
e grande de todas, recentes ou antigas. A cada uma pareceu que se tratava de si
mesma. Era então algum prodígio de talento? Não, não era; tinha a inteligência
fina, superior ao comum das outras, mas não tal que as reduzisse a nada. Tudo
provinha da índole afetuosa daquela criatura.
Dava-lhe esta o poder de atrair e conchegar. Uma cousa me disse Campos
que eu havia observado de relance naquela noite das bodas de prata, é que D.
Carmo agrada igualmente a velhas e a moças. Há velhas que não sabem fazer-se
entender de moças, assim como há moças fechadas às velhas. A senhora de Aguiar
penetra e se deixa penetrar de todas; assim foi jovem, assim é madura.
Campos não os acompanhou sempre, nem desde os primeiros tempos; mas
quando entrou a frequentá-los, viu nela o desenvolvimento da noiva e da
recém-casada, e compreendeu a adoração do marido. Este era feliz, e para
sossegar das inquietações e tédios de fora, não achava melhor respiro que a
conversação da esposa, nem mais doce lição que a de seus olhos. Era dela a arte
fina que podia restituí-lo ao equilíbrio e à paz.
Um dia, em casa deles, abrindo uma coleção de versos italianos, Campos
achou entre as folhas um papelinho velho com algumas estrofes escritas. Soube
que eram do livro, copiadas por ela nos dias de noiva, segundo ambos lhe
disseram, vexados; restituiu o papel à página, e o volume, à estante. Um e
outro gostavam de versos, e talvez ela tivesse feito alguns, que deitou fora
com os últimos solecismos de família. Ao que parece, traziam ambos em si um
gérmen de poesia instintiva, a que faltara expressão adequada para sair cá
fora.
A última reflexão é minha, não do desembargador Campos, e leva o único
fim de completar o retrato deste casal. Não é que a poesia seja necessária aos
costumes, mas pode dar-lhes graça. O que eu fiz então foi perguntar ao
desembargador se tais criaturas tiveram algum ressentimento da vida.
Respondeu-me que um, um só e grande; não tiveram filhos.
- Mana Rita disse-me isso mesmo.
- Não tiveram filhos - repetiu Campos.
Ambos queriam um filho, um só que fosse, ela ainda mais que ele. D.
Carmo possuía todas as espécies de ternura, a conjugal, a filial, a maternal.
Campos ainda lhe conheceu a mãe, cujo retrato, encaixilhado com o do pai,
figurava na sala, e falava de ambos com saudades longas e suspiradas. Não teve
irmãos, mas a afeição fraternal estaria incluída na amical, em que se dividia
também. Quanto aos filhos, se os não teve, é certo que punha muito de mãe nos
seus carinhos de amiga e de esposa. Não menos certo é que para essa espécie de
orfandade às avessas, tem agora um paliativo.
- D. Fidélia?
- Sim, Fidélia; e teve ainda outro que acabou.
Aqui referiu-me uma história que apenas levará meia dúzia de linhas, e
não é pouco para a tarde que vai baixando; digamo-la depressa.
Uma das suas amigas tivera um filho, quando D. Carmo ia em vinte e
tantos anos. Sucessos que o desembargador contou por alto, e não valia a pena
instar por eles, trouxeram a mãe e o filho para a casa Aguiar durante algum
tempo. Ao cabo da primeira semana tinha o pequeno duas mães. A mãe real
precisou ir a Minas,
onde estava o marido; viagem de poucos dias. D. Carmo alcançou que a amiga lhe
deixasse o filho e a ama. Tais foram os primeiros liames da afeição que cresceu
com o tempo e o costume. O pai era comerciante de café - comissário - e andava
então a negócios por Minas;
a mãe era filha de Taubaté, São
Paulo, amiga de viajar a cavalo. Quando veio o tempo de batizar o
pequeno, Luísa Guimarães convidou a amiga para madrinha dele. Era justamente o
que a outra queria; aceitou com alvoroço, o marido, com prazer, e o batizado se
fez como uma festa da família Aguiar.
A meninice de Tristão - era o nome do afilhado - foi dividida entre as
duas mães, entre as duas casas. Os anos vieram, o menino crescia, as esperanças
maternas de D. Carmo iam morrendo. Este era o filho abençoado que o acaso lhes
deparara, disse um dia o marido; e a mulher, católica também na linguagem,
emendou que a Providência,
e toda se entregou ao afilhado. A opinião que o desembargador achou em algumas
pessoas, e creio justa, é que D. Carmo parecia mais verdadeira mãe que a mãe de
verdade. O menino repartia-se bem com ambas, preferindo um pouco mais a mãe
postiça. A razão podiam ser os carinhos maiores, mais continuados, as vontades
mais satisfeitas e finalmente os doces, que também são motivos para o infante,
como para o adulto. Veio o tempo da escola, e ficando mais perto da casa
Aguiar, o menino ia jantar ali, e seguia depois para as Laranjeiras,
onde morava Guimarães. Algumas vezes a própria madrinha o levava.
Nas duas ou três moléstias que o pequeno teve, a aflição de D. Carmo foi
enorme. Uso o próprio adjetivo que ouvi ao Campos, conquanto me pareça
enfático, e eu não amo a ênfase. Confesso aqui uma cousa. D. Carmo é das poucas
pessoas a quem nunca ouvi dizer que são "doudas por morangos", nem
que "morrem por ouvir Mozart".
Nela a intensidade parece estar mais no sentimento que na expressão. Mas,
enfim, o desembargador assistiu à última das moléstias do menino, que foi em
casa da madrinha, e pôde ver a aflição de D. Carmo, os seus afagos e sustos,
alguns minutos de desespero e de lágrimas, e finalmente a alegria do
restabelecimento. A mãe era mãe, e sentiu decerto, e muito, mas diz ele que não
tanto; é que haverá ternuras atadas, ou ainda moderadas, que se não mostram
inteiramente a todos.
Doenças, alegrias, esperanças, todo o repertório daquela primeira quadra
da vida de Tristão foi visto, ouvido e sentido pelos dous padrinhos, e mais
pela madrinha, como se fora do seu próprio sangue. Era um filho que ali estava,
que fez dez anos, fez onze, fez doze, crescendo em altura e graça. Aos treze
anos, sabendo que o pai o destinava ao comércio, foi ter com a madrinha e
confiou-lhe que não tinha gosto para tal carreira.
- Por que, meu filho?
D. Carmo usava este modo de falar, que a idade e o parentesco espiritual
lhe permitiam, sem usurpação de ninguém. Tristão confessou-lhe que a sua
vocação era outra. Queria ser bacharel em direito. A madrinha defendeu a
intenção do pai, mas com ela Tristão era ainda mais voluntarioso que com ele e
a mãe, e teimou em estudar direito e ser doutor. Se não havia propriamente
vocação, era este título que o atraía.
- Quero ser doutor! Quero ser doutor!
A madrinha acabou achando que era bom, e foi defender a causa do
afilhado. O pai deste relutou muito. "Que havia no comércio que não fosse
honrado, além de lucrativo? Demais, ele não ia começar sem nada, como sucedia a
outros e sucedeu ao próprio pai, mas já amparado por este." Deu-lhe outras
mais razões, que D. Carmo ouviu sem negar, alegando sempre que o importante era
ter gosto, e se o rapaz não tinha gosto, melhor era ceder ao que lhe aprazia.
Ao cabo de alguns dias o pai de Tristão cedeu, e D. Carmo quis ser a primeira
que desse ao rapaz a boa nova. Ela própria sentia-se feliz.
Cinco ou seis meses depois, o pai de Tristão resolveu ir com a mulher
cumprir uma viagem marcada para o ano seguinte - visitar a família dele; a mãe
de Guimarães estava doente. Tristão, que se preparava para os estudos, tão
depressa viu apressar a viagem dos pais, quis ir com eles. Era o gosto da
novidade, a curiosidade da Europa,
algo diverso das ruas do Rio de
Janeiro, tão vistas e tão cansadas. Pai e mãe recusaram levá-lo; ele
insistiu. D. Carmo, a quem ele recorreu outra vez, recusou-se agora, porque
seria afastá-lo de si, ainda que temporariamente; juntou-se aos pais do mocinho
para conservá-lo aqui. Aguiar desta vez tomou parte ativa na luta; mas não
houve luta que valesse. Tristão queria à fina força embarcar para Lisboa.
- Papai volta daqui a seis meses; eu volto com ele. Que são seis meses?
- Mas os estudos? - dizia-lhe Aguiar -. Você vai perder um ano...
- Pois que se perca um ano. Que é um ano que não valha a pena
sacrificá-lo ao gosto de ir ver a Europa?
Aqui D. Carmo teve uma inspiração; prometeu-lhe que, tão depressa ele se
formasse, ela iria com ele viajar, não seis meses, mas um ano ou mais; ele
teria tempo de ver tudo, o velho e o novo, terras, mares, costumes... Estudasse
primeiro. Tristão não quis. A viagem se fez, a despeito das lágrimas que custou.
Não ponho aqui tais lágrimas, nem as promessas feitas, as lembranças
dadas, os retratos trocados entre o afilhado e os padrinhos. Tudo se afirmou de
parte a parte, mas nem tudo se cumpriu; e, se de lá vieram cartas, saudades e
notícias, quem não veio foi ele. Os pais foram ficando muito mais tempo que o
marcado, e Tristão começou o curso da Escola Médica
de Lisboa. Nem comércio nem jurisprudência.
Aguiar escondeu quanto pôde a notícia à mulher, a ver se tentava alguma
cousa que trocasse as mãos à sorte, e restituísse o rapaz ao Brasil; não
alcançou nada, e ele próprio não podia já disfarçar a tristeza. Deu a dura
novidade à mulher, sem lhe acrescentar remédio nem consolação; ela chorou
longamente. Tristão escreveu comunicando a mudança de carreira e prometendo vir
para o Brasil, apenas formado; mas daí a algum tempo eram as cartas que
escasseavam e acabaram inteiramente, elas e os retratos, e as lembranças;
provavelmente não ficaram lá saudades. Guimarães aqui veio, sozinho, com o
único fim de liquidar o negócio, e embarcou outra vez para nunca mais.
5 de fevereiro
Relendo o que escrevi ontem, descubro que podia ser ainda mais resumido,
e principalmente não lhe pôr tantas lágrimas. Não gosto delas, nem sei se as
verti algum dia, salvo por mama, em menino; mas lá vão. Pois vão também essas
que aí deixei, e mais a figura de Tristão, a que cuidei dar meia dúzia de
linhas e levou a maior parte delas. Nada há pior que gente vadia - ou
aposentada, que é a mesma cousa; o tempo cresce e sobra, e se a pessoa pega a
escrever, não há papel que baste.
Entretanto, não disse tudo. Verifico que me faltou um ponto da narração
do Campos. Não falei das ações do Banco do Sul,
nem das apólices, nem das casas que o Aguiar possui, além dos honorários de
gerente; terá uns duzentos e poucos contos. Tal foi a afirmação do Campos, à
beira do rio,
em Petrópolis.
Campos é homem interessante, posto que sem variedade de espírito; não importa,
uma vez que sabe despender o que tem. Verdade é que tal regra levaria a gente a
aceitar toda a casta de insípidos. Ele não é destes.
6 de fevereiro
Outra cousa que também não escrevi no dia 4, mas essa não entrou na
narração do Campos. Foi ao despedir-me dele, que lá ficou em Petrópolis três
ou quatro dias. Como eu lhe deixasse recomendações para a sobrinha, ouvi-lhe
que me respondeu:
- Está em casa da gente Aguiar; passou lá a tarde e a noite de ontem, e
conta ficar até que eu desça.
*****
6 de fevereiro, à noite
Diferença de vocações: o casal Aguiar morre por filhos, eu nunca pensei
neles, nem lhes sinto a falta, apesar de só. Alguns há que os quiseram, que os
tiveram e não souberam guardá-los.
10 de fevereiro
Ontem, indo jantar a Andaraí,
contei a mana Rita o que ouvi ao desembargador.
- Ele não disse nada da sobrinha?
- Todo o tempo foi pouco para falar da gente Aguiar.
- Pois eu soube o que me faltava de Fidélia; foi a própria D. Carmo que
me contou.
- Se a história é tão longa como a dela...
- Não, é muito mais curta; diz-se em cinco minutos.
Tirei o relógio para ver a hora exata, e marcar o tempo da narração.
Rita começou e acabou em dez minutos. Justamente o dobro. Mas o assunto era
curioso, trata-se do casamento, e a viúva interessa-me.
- Conheceram-se aqui na Corte -
disse Rita -; na roça nunca se viram. Fidélia passava uns tempos em casa do
desembargador (a tia ainda era viva), e o rapaz, Eduardo, estudava na Escola de
Medicina. A primeira vez que ele a viu foi das torrinhas do Teatro Lírico,
onde estava com outros estudantes; viu-a à frente de um camarote, ao pé da tia.
Tornou a vê-la, foi visto por ela, e acabaram namorados um do outro. Quando
souberam quem eram, já o mal estava feito, mas provavelmente o mal se faria,
ainda que o soubessem desde princípio, porque a paixão foi repentina. O pai de
Fidélia, vindo à Corte,
teve notícia do caso pelo próprio irmão, que cautelosamente lhe disse o que
desconfiava, e insinuou que era boa ocasião de fazerem as pazes as duas
famílias. O barão ficou furioso, pegou da moça e levou-a para a fazenda. Você
não imagina o que lá se passou.
- Imagino, imagino.
- Não imagina.
- Pô-la no tronco?
- Não - protestou Rita -; não fez mais que ameaçá-la com palavras, mas
palavras duras, dizendo-lhe que a poria fora de casa, se continuasse a pensar
em tal atrevimento. Fidélia jurou uma e muitas vezes que tinha um noivo no
coração e casaria com ele, custasse o que custasse. A mãe estava do lado do
marido, e opôs-se também. Fidélia resistiu e recolheu-se ao silêncio, passava
os dias no quarto, chorando. As mucamas viam as lágrimas e os sinais delas, e
desconfiavam de amores, até que adivinharam a pessoa, se não foi palavra que
ouviram aos próprios senhores. Enfim, a moça entrou a não querer comer. Vendo
isto, a mãe, com receio de algum acesso de moléstia, começou a pedir por ela,
mas o marido declarou que não lhe importava vê-la morta ou até douda; antes
isso que consentir na mistura do seu sangue com o da gente Noronha. A oposição
da gente Noronha não foi menor. Ao saber da paixão do filho pela filha do
fazendeiro, o pai de Eduardo mandou-lhe dizer que o deixaria na rua, se
teimasse em semelhante afronta.
- Como inimigos eram dignos um do outro - observei.
- Eram - concordou Rita -. O desembargador soube o que se passava e foi
à fazenda, onde viu tudo confirmado, e disse ao irmão que não valia opor-se,
porque a filha, chegada à maioridade, podia arrancar-se de casa. Ninguém
obrigava a humilhar-se diante da gente Noronha, nem a fazer as pazes com ela;
bastava que os filhos casassem e fossem para onde quisessem. O barão recusou a
pés juntos e o desembargador dispunha-se a voltar para a Corte,
sem continuar a comissão que se dera a si mesmo, quando Fidélia adoeceu
deveras. A doença foi grave, a cura, difícil pela recusa dos remédios e
alimentos... Que sorriso é esse? Não acredita?
- Acredito, acredito; acho romanesco. Em todo caso, essa moça
interessa-me. A cura, dizia você, foi difícil?
- Foi; a mãe resolveu pedir ao marido que cedesse, o marido concedeu
finalmente, impondo a condição de nunca mais receber a filha nem lhe falar; não
assistiria ao casamento, não queria saber dela. Restabelecida, Fidélia veio com
o tio, e no ano seguinte casou. O pai do noivo também declarou que os não
queria ver.
- Tanta luta para não serem felizes por muito tempo.
- É verdade. A felicidade foi grande, mas curta. Um dia resolveram ir à Europa,
e foram, até que se deu a morte inesperada do marido, em Lisboa,
donde Fidélia fez transportar o corpo para aqui. Você lá a viu ao pé da
sepultura; lá vai muitas vezes. Pois nem assim o pai, que também já é viúvo,
nem assim quis receber a filha. Quando veio à Corte a
primeira vez, Fidélia foi ter com ele, sozinha, depois com o tio; todas as
tentativas foram inúteis. Nunca mais a viu nem lhe falou. Eu, mais ou menos, já
contei isto a você; só não conhecia bem as particularidades da resistência na
fazenda, mas aí está. Agora diga se ela é viúva que se case.
- Com qualquer, não; pelo menos, é difícil; mas, um sujeito fresco -
continuei enfunando-me e rindo.
- Você ainda pensa...?
- Eu, mana? Eu penso no seu jantar, que há de estar delicioso. O que me
fica da história é que essa moça, além de bonita, é teimosa; mas a sua sopa
vale para mim todas as noções estéticas e morais deste mundo e do outro.
Ao jantar, contei a Rita o que me dissera o desembargador sobre haver
ido a sobrinha passar alguns dias ao Flamengo,
e perguntei-lhe se era assim a intimidade na casa.
- Certamente que é. Já uma vez Fidélia adoeceu no Flamengo e
lá se tratou. Tendo perdido a esperança do filho postiço, o Tristão, que os
esqueceu inteiramente, ficaram cada vez mais ligados à viúva. D. Carmo é toda
ternura para ela. Você lembra-se das bodas de prata, não? Aguiar não lhe chama
filha para não parecer que usurpa esse título ao pai verdadeiro; mas a mulher,
não tendo ela mãe, é o nome que lhe dá. Nem Fidélia parece querer outra mãe.
11 de fevereiro
Antigamente, quando eu era menino, ouvia dizer que às crianças só se
punham nomes de santos ou santas. Mas Fidélia...? Não conheço santa com tal
nome, ou sequer mulher pagã. Terá sido dado à filha do barão, como a forma
feminina de Fidélio, em
homenagem a Beethoven? Pode ser; mas eu não sei se ele teria dessas
inspirações e reminiscências artísticas. Verdade é que o nome da família, que
serve ao título nobiliário, Santa-Pia, também não o acho na lista dos
canonizados, e a única pessoa que conheço, assim chamada, é a de Dante: Ricorditi
di me, chi son la Pia.
Parece que já não queremos Anas nem Marias, Catarinas nem Joanas, e
vamos entrando em outra onomástica, para variar o aspeto às pessoas. Tudo serão
modas neste mundo, exceto as estrelas e eu, que sou o mesmo antigo sujeito,
salvo o trabalho das notas diplomáticas, agora nenhum.
18 de fevereiro
Campos disse-me hoje que o irmão lhe escrevera, em segredo, ter ouvido
na roça o boato de uma lei próxima de abolição. Ele, Campos, não crê que este
ministério a faça, e não se espera outro.
24 de fevereiro
A data de hoje (revolução de
1848) lembra-me a festa de rapazes que tivemos em São Paulo,
e um brinde que eu fiz ao grande Lamartine.
Ai, viçosos tempos! Eu estava no meu primeiro ano de direito. Como falasse
disso ao desembargador, disse-me este:
- Meu irmão crê que também aqui a revolução está próxima, e com ela a República.
2 de março
Venho da casa do Aguiar. Lá achei Fidélia, um primo desta, filho do
desembargador, aluno da Escola de
Marinha (16 anos) e um empregado do Banco do
Brasil. Passei uma boa hora ou mais. A velha esteve encantadora, a
moça também, e a conversação evitou tudo o que pudesse lembrar a ambas a
respetiva perda, uma do esposo, outra do filho postiço. Contavam-se histórias
de sociedade, que eu ouvi sorrindo, quando era preciso, ou consternado nas
ocasiões pertinentes. Também eu contei uma, de sociedade alheia e remota, mas o
receio de lembrar à viúva Noronha alguma terra por onde houvesse andado com o
marido me fez encurtar a narração e não começar segunda. Entretanto, ela
referiu duas ou três reminiscências de viagem, impressões do que vira em museus
da Itália e
daAlemanha.
Da nossa terra dissemos cousas agradáveis e sempre de acordo. A mesma torre da matriz da
Glória, que alguns defenderam como necessária, deixou-nos a nós, a
ela e a mim, concordes no desacordo, sem que, aliás, eu combatesse ninguém. O
casal Aguiar ouviu-nos sorrindo; o moço da Escola de
Marinha tentou, em vão, suscitar a questão
militar.
10 de março
Afinal houve sempre mudança de
gabinete. O conselheiro
João Alfredo organizou hoje outro. Daqui a três ou quatro dias
irei apresentar as minhas felicitações ao novo ministro
dos negócios estrangeiros.
20 de março
Ao desembargador Campos parece que alguma cousa se fará no sentido da
emancipação dos escravos - um passo adiante, ao menos. Aguiar, que estava
presente, disse que nada corre na praça nem lhe chegou ao Banco do Sul.
27 de março
Santa-Pia chegou da fazenda, e não foi para a casa do irmão; foi para o Hotel da
América. É claro que não quer ver a filha. Não há nada mais tenaz
que um bom ódio. Parece que ele veio por causa do boato que corre na Paraíba do
Sul acerca da emancipação dos escravos.
4 de abril
Ouvi que o barão caiu doente, e que o irmão conseguiu trazê-lo para
casa. Eis aqui como. Não lhe pediu logo que viesse; achou meio de lhe dizer que
Fidélia estava em casa da amiga, donde não viria tão cedo, e acabou
propondo-lhe tratar-se em casa dele. Santa-Pia recusou, depois aceitou. Tudo
isso foi planeado com ela. Fidélia está efetivamente no Flamengo com
a gente Aguiar. Deste modo a casa do Campos ficou livre ao pai irritado e
enfermo. A opinião do Campos e do Aguiar é que o fazendeiro, mais tarde ou mais
cedo, acabará perdoando a filha. Em todo caso, não se encontram agora, com
pesar dela.
Ora, pergunto eu, valia a pena ter brigado com o pai, em troca de um
marido que mal começou a lição do amor, logo se aposentou na morte? Certo que
não. Se eu propusesse concluir-lhe o curso, o pai faria as pazes com ela; ai,
era preciso não haver esquecido o que aprendi, mas esqueci - tudo ou quase
tudo. I can not60a
etc. (Shelley).22
7 de abril
A distração faz das suas. Hoje, vindo da cidade para casa, passei por
esta, e dei comigo no largo do
Machado, quando o bonde parou. Apeei-me, e antes de arrepiar
caminho, a pé, detive-me alguns instantes, e enfiei pelo jardim, em direção à matriz da
Glória, a olhar para a fachada do templo com a torre por cima. Fiz
isto porque me lembrou a conversação da outra noite no Flamengo.
A poucos passos, duas senhoras pareciam fazer a mesma cousa.
Voltaram-se, eram nada menos que Fidélia e D. Carmo; estavam sem chapéu, tinham
vindo a pé de casa. Viram-me, fui ter com elas. Pouco dissemos: notícias do
barão, que está melhor, e do Aguiar, que está bom, e despedimo-nos.
Vim para o lado do Catete,
elas continuaram para o da matriz.
A pequena distância, lembrou-me olhar para trás. Poderia fazer outra cousa? É aqui
que eu quisera possuir tudo o que a filosofia tem dito e redito do
livre-arbítrio, a fim de o negar ainda uma vez, antes de cair onde ele perde a
mesma aparência de realidade; acabaria esta página por outra maneira. Mas não
posso; digo só que não pude reter a cabeça nem os olhos, e vi as duas damas,
com os braços cingidos à cintura uma da outra, vagarosas e visivelmente
queridas.
8 de abril
Papel, amigo papel, não recolhas tudo o que escrever esta pena vadia.
Querendo servir-me, acabarás desservindo-me, porque se acontecer que eu me vá
desta vida, sem tempo de te reduzir a cinzas, os que me lerem depois da missa
de sétimo dia, ou antes, ou ainda antes do enterro, podem cuidar que te confio
cuidados de amor.
Não, papel. Quando sentires que insisto nessa nota, esquiva-te da minha
mesa, e foge. A janela aberta te mostrará um pouco de telhado, entre a rua e o
céu, e ali ou acolá acharás descanso. Comigo, o mais que podes achar é
esquecimento, que é muito, mas não é tudo; primeiro que ele chegue, virá a
troça dos malévolos ou simplesmente vadios.
Escuta, papel. O que naquela dama Fidélia me atrai é principalmente
certa feição de espírito, algo parecida com o sorriso fugitivo, que já lhe vi
algumas vezes. Quero estudá-la se tiver ocasião. Tempo sobra-me, mas tu sabes
que é ainda pouco para mim mesmo, para o meu criado José, e para ti, se tenho
vagar e quê - e pouco mais.
10 de abril
Grande novidade! O motivo da vinda do barão é consultar o desembargador
sobre a alforria coletiva e imediata dos escravos de Santa-Pia. Acabo de
sabê-lo, e mais isto, que a principal razão da consulta é apenas a redação do
ato. Não parecendo ao irmão que este seja acertado, perguntou-lhe o que é que o
impelia a isso, uma vez que condenava a ideia atribuída ao governo de decretar
a abolição, e obteve esta resposta, não sei se sutil, se profunda, se ambas as
cousas ou nada:
- Quero deixar provado que julgo o ato do governo uma espoliação, por
intervir no exercício de um direito que só pertence ao proprietário, e do qual
uso com perda minha, porque assim o quero e posso.
Será a certeza da abolição que impele Santa-Pia a praticar esse ato,
anterior de algumas semanas ou meses ao outro? A alguém que lhe fez tal
pergunta respondeu Campos que não. "Não" - disse ele - "meu
irmão crê na tentativa do governo, mas não no resultado, a não ser o desmantelo
que vai lançar às fazendas. O ato que ele resolveu fazer exprime apenas a
sinceridade das suas convicções e o seu gênio violento. Ele é capaz de propor a
todos os senhores a alforria dos escravos já, e no dia seguinte propor a queda
do governo que tentar fazê-lo por lei".
Campos teve uma ideia. Lembrou ao irmão que, com a alforria imediata,
ele prejudica a filha, herdeira sua. Santa-Pia franziu o sobrolho. Não era a
ideia de negar o direito eventual da filha aos escravos; podia ser o desgosto
de ver que, ainda em tal situação, e com todo o poder que tinha de dispor dos
seus bens, vinha Fidélia perturbar-lhe a ação. Depois de alguns instantes
respirou largo, e respondeu que, antes de morto, o que era seu era somente seu.
Não podendo dissuadi-lo, o desembargador cedeu ao pedido do irmão, e redigiram
ambos a carta de alforria.
Retendo o papel, Santa-Pia disse:
- Estou certo que poucos deles deixarão a fazenda; a maior parte ficará
comigo, ganhando o salário que lhes vou marcar, e alguns até sem nada - pelo
gosto de morrer onde nasceram.
11 de abril
Fidélia, quando soube do ato do pai, teve vontade de ir ter com ele, não
para invetivá-lo, mas para abraçá-lo; não lhe importam perdas futuras. O tio é
que a dissuadiu dizendo-lhe que o barão ainda está muito zangado com ela.
12 de abril
Santa-Pia não é feio velho, nem muito velho; terá menos idade que eu.
Arqueja um pouco, às vezes, mas pode ser da bronquite. É meio calvo, largo de
espáduas, as mãos ásperas, cheio de corpo.
Conhecemo-nos um ao outro, eu primeiro que ele, talvez porque a Europa me
haja mudado mais. Ele lembra-se do tempo em que eu, colega do irmão, jantei com
ele aqui na Corte.
Já o irmão lhe havia falado de mim, recordando as relações antigas. Disse-me
que daqui a três dias volta para a fazenda, onde me dará hospedagem, se quiser
honrá-lo com a minha pessoa. Agradeci e prometi, sem prazo nem ideia de lá ir.
Custa muito sair do Catete.
Já é demais Petrópolis.
Está claro que lhe não falei da filha, mas confesso que se pudesse diria
mal dela, com o fim secreto de acender mais o ódio - e tornar impossível a
reconciliação. Deste modo ela não iria daqui para a fazenda, e eu não perderia
o meu objeto de estudo. Isto, sim, papel amigo, isto podes aceitar, porque é a
verdade íntima e pura e ninguém nos lê. Se alguém lesse achar-me-ia mau, e não
se perde nada em parecer mau; ganha-se quase tanto como em sê-lo.
13 de abril
Ontem com o pai, hoje com a filha. Com esta tive vontade de dizer mal do
pai, tanto foi o bem que ela disse dele, a propósito da alforria dos escravos.
Vontade sem ação, veleidade pura; antes me vi obrigado a louvá-lo também, o que
lhe deu azo a estender o panegírico. Disse-me que ele é bom senhor, eles, bons
escravos, contou-me anedotas de seu tempo de menina e moça, com tal
desinteresse e calor que me deu vontade de lhe pegar na mão, e, em sinal de
aplauso, beijar-lha. Vontade sem ação. Tudo sem ação esta tarde.
19 de abril
Lá se foi o barão com a alforria dos escravos na mala. Talvez tenha
ouvido alguma cousa da resolução do governo; dizem que, abertas as câmaras,
aparecerá um projeto de lei. Venha, que é tempo. Ainda me lembra do que lia lá
fora, a nosso respeito, por ocasião da famosa
proclamação de Lincoln: "Eu, Abraão Lincoln, Presidente dos Estados Unidos
da América..." Mais de um jornal fez alusão nominal ao
Brasil, dizendo que restava agora que um povo cristão e último imitasse aquele
e acabasse também com os seus escravos. Espero que hoje nos louvem. Ainda que
tardiamente, é a liberdade, como queriam a sua os conjurados
de Tiradentes.
7 de maio
O ministério apresentou
hoje à Câmara o
projeto de abolição. É a abolição pura e simples. Dizem que em poucos dias será
lei.
13 de maio
Enfim, lei.
Nunca fui, nem o cargo me consentia ser propagandista da abolição, mas confesso
que senti grande prazer quando soube da votação final do Senadoe
da sanção da Regente.
Estava na rua do
Ouvidor, onde a agitação era grande e a alegria, geral.
Um conhecido meu, homem de imprensa, achando-me ali, ofereceu-me lugar
no seu carro, que estava na rua Nova,
e ia enfileirar no cortejo organizado para rodear o paço da
cidade, e fazer ovação à Regente.
Estive quase, quase a aceitar, tal era o meu atordoamento, mas os meus hábitos
quietos, os costumes diplomáticos, a própria índole e a idade me retiveram
melhor que as rédeas do cocheiro aos cavalos do carro, e recusei. Recusei com
pena. Deixei-os ir, a ele e aos outros, que se juntaram e partiram da rua Primeiro
de Março. Disseram-me depois que os manifestantes erguiam-se nos
carros, que iam abertos, e faziam grandes aclamações, em frente ao paço, onde
estavam também todos os ministros. Se eu lá fosse, provavelmente faria o mesmo
e ainda agora não me teria entendido... Não, não faria nada; meteria a cara
entre os joelhos.
Ainda bem que acabamos com isto. Era tempo. Embora queimemos todas as
leis, decretos e avisos, não poderemos acabar com os atos particulares,
escrituras e inventários, nem apagar a instituição da história, ou até da poesia.
A poesia falará dela, particularmente naqueles versos de Heine,
em que o nosso nome está perpétuo. Neles conta o
capitão do navio negreiro haver deixado trezentos negros no Rio de Janeiro,
onde "a Casa Gonçalves Pereira" lhe pagou cem ducados por peça.
Não importa que o poeta corrompa o nome do comprador e lhe chame Gonzales
Perreiro; foi a rima ou a sua má pronúncia que o levou a isso.
Também não temos ducados, mas aí foi o vendedor que trocou na sua língua o
dinheiro do comprador.
14 de maio, meia-noite
Não há alegria pública que valha uma boa alegria particular. Saí agora
do Flamengo,
fazendo esta reflexão, e vim escrevê-la, e mais o que lhe deu origem.
Era a primeira reunião do Aguiar; havia alguma gente e bastante
animação. Rita não foi; fica-lhe longe e não dá para isto, mandou-me dizer. A
alegria dos donos da casa era viva, a tal ponto que não a atribuí somente ao
fato dos amigos juntos, mas também ao grande acontecimento do dia. Assim o
disse por esta única palavra, que me pareceu expressiva, dita a brasileiros:
- Felicito-os.
- Já sabia? - perguntaram ambos.
Não entendi, não achei que responder. Que era que eu podia saber já,
para os felicitar, se não era o fato público? Chamei o melhor dos meus sorrisos
de acordo e complacência, ele veio, espraiou-se, e esperei. Velho e velha
disseram-me então rapidamente, dividindo as frases, que a carta viera dar-lhes
grande prazer. Não sabendo que carta era nem de que pessoa, limitei-me a
concordar:
- Naturalmente.
- Tristão está em Lisboa -
concluiu Aguiar -, tendo voltado há pouco da Itália;
está bem, muito bem.
Compreendi. Eis aí como, no meio do prazer geral, pode aparecer um
particular, e dominá-lo. Não me enfadei com isso; ao contrário, achei-lhes
razão, e gostei de os ver sinceros. Por fim, estimei que a carta do filho
postiço viesse após anos de silêncio pagar-lhes a tristeza que cá deixou. Era
devida a carta; como a liberdade dos escravos, ainda que tardia, chegava bem.
Novamente os felicitei, com ar de quem sabia tudo.
16 de maio
Fidélia voltou para casa, levando e deixando saudades. Os três estão muito
amigos, e os dous parecem pais de verdade; ela também parece filha verdadeira.
O desembargador, que me contou isto, referiu-me algumas palavras da sobrinha
acerca da gente Aguiar, principalmente da velha, e acrescentou:
- Não é dessas afeições chamadas fogo de palha; nela, como neles, tudo
tem sido lento e radicado. São capazes de me roubarem a sobrinha, e ela, de se
deixar roubar por eles. Também se não forem eles, será o pai. Creio que meu
irmão já vai amansando. A última vez que me escreveu, depois de falar muito mal
do imperador e
da princesa,
não lhe esqueceu dizer que "agradecia as lembranças mandadas".
Fidélia não lhe mandara lembranças, estava ainda no Flamengo;
eu é que as inventei na minha carta para ver o efeito que produziriam nele. Há
de amansar; isto de filhos, conselheiro, não imagina, é o diabo; eu, se
perdesse o meu Carlos, creio que me ia logo desta vida.
17 de maio
Vou ficar em casa uns quatro ou cinco dias, não para descansar, porque
eu não faço nada, mas para não ver nem ouvir ninguém, a não ser o meu criado
José. Este mesmo, se cumprir, mandá-lo-ei à Tijuca,
a ver se eu lá estou. Já acho mais quem me aborreça do que quem me agrade, e
creio que esta proporção não é obra dos outros, e só minha exclusivamente.
Velhice esfalfa.
18 de maio
Rita escreveu-me pedindo informações de um leiloeiro. Parece-me caçoada.
Que sei eu de leiloeiros nem de leilões? Quando eu morrer podem vender em
particular o pouco que deixo, com abatimento ou sem ele, e a minha pele com o
resto; não é nova, não é bela, não é fina, mas sempre dará para algum tambor ou
pandeiro rústico. Não é preciso chamar um leiloeiro.
Vou responder isto mesmo à mana Rita, acrescentando algumas notícias que
trouxe da rua - a carta do Tristão, por exemplo, os agradecimentos do barão à
filha, e esta grande peta: que a viúva resolveu casar comigo... Mas não; se lhe
digo isto, ela não me crê, ri, e vem cá logo. Justamente o que eu não desejo.
Preciso de me lavar da companhia dos outros, ainda mesmo dela, apesar de gostar
dela. Mando-lhe só dizer que o leiloeiro morreu; provavelmente ainda vive, mas
há de morrer algum dia.
21 de maio
Ontem escrevi à mana Rita anunciando-lhe a morte do homem, e hoje de
manhã abrindo os jornais, dei com a notícia de haver falecido ontem o leiloeiro
Fernandes. Chamava-se Fernandes. Sucumbiu a não sei que moléstia grega ou
latina. Parece que era bom chefe de família, honrado e laborioso, e excelente
cidadão; a Vida Nova chama-lhe
grande, mas talvez ele votasse com os liberais.
Mana Rita, já pela minha carta, já pelas notícias de hoje, correu a ter
comigo. Senhoras não deviam escrever cartas; raras dizem tudo e claro; muitas
têm a linguagem escassa ou escura. Rita pedira-me notícias do leiloeiro, por
lhe dizerem que ele morava no Catete,
e adoecera gravemente há dias. Como era meu vizinho, podia ser que eu soubesse
dele: foi o motivo da pergunta, mas esqueceu dizê-lo.
Hesitei entre confessar a minha invenção ou deixá-la encoberta pela
coincidência, mas foi só um minuto, nem isso, foi um instante. Rita é minha
irmã, não me ficaria querendo mal e acabaria rindo também. Ouviu a minha
verdade, sem zanga, mas também sem riso. A razão disto é um pormenor, que não
vale a pena dizer miudamente e só o bastante para explicar a carta e a
seriedade. Trata-se de contas entre ela e o finado, objetos que ela mandou
vender, e não sabe se ele vendeu ou não, nem como havê-los ou o dinheiro;
bastará ir ao armazém. Há de haver escrituração donde conste tudo; prometi
acompanhá-la amanhã. Ficou satisfeita, começou então a sorrir, depois disse-me
os objetos que eram, quadros velhos, romances lidos.
Jantou comigo. Antes de irmos para a mesa, vimos passar o enterro do
Fernandes. Teve a pachorra de contar os carros; ai de mim, também eu os contava
em pequeno; ela é que parece não haver perdido esse costume estatístico. O
Fernandes levava 37 ou 38 carros.
Deixo aqui esta página com o fim único de me lembrar que o acaso também
é corregedor de mentiras. Um homem que começa mentindo disfarçada ou
descaradamente acaba muita vez exato e sincero.
22 de maio
Em caminho, mana Rita contou-me o que já sabe da carta de Tristão e da
resposta que D. Carmo lhe mandou. Sabe mais que eu. D. Carmo leu-lhe as duas
cartas. Tristão pede mil desculpas do longo silêncio de anos e lança-o à conta
de tarefas e distrações. Ultimamente, já formado em medicina, foi em viagem a
várias terras, onde viu e estudou muito. Não podendo escrever as viagens, contar-lhas-á
um dia, se cá vier. Pede notícias dela e do padrinho, pede-lhes os retratos, e
manda-lhes pelo correio umas gravuras; assim também lembranças do pai e da mãe,
que estão em Lisboa.
A carta é longa, cheia de ternuras e saudades. A resposta, disse-me mana Rita
que é em tom verdadeiramente maternal. Não sabe mostrar-se magoada; é toda
perdão e carinho. Só lhe faz uma queixa; é que, pedindo os retratos dela e do
marido, não lhe mandasse logo o seu, o último dos seus, porque os antigos cá
estão. Diz muitas cousas longas, lembra os tempos de infância e de estudo, e no
fim insinua-lhe que venha contar-lhe as viagens. As gravuras são da casa Goupil.
Rita esteve com ela no dia 15, entre uma e duas horas da tarde, depois
que a viúva saiu de lá para a casa do tio desembargador. Apesar da separação
desta e suas saudades, sentia-se alegre com a afeição que cresce entre ambas, e
igualmente alegre com a ressurreição do afilhado. Chama-lhe ressurreição por
imaginar que o moço inteiramente os esquecera. Via agora que não, e parecia-lhe
a mesma alma daqui saída. Falando ou calando, tinha intervalos de melancolia,
e, de uma vez, acha mana Rita que lhe viu apontar uma lágrima, uma pequenina
lágrima de nada...
23 de maio
Les morts
vont vite. Tão depressa enterrei o leiloeiro como o esqueci. Assim foi que,
escrevendo o dia de ontem, deixei de dizer que no armazém do Fernandes achamos
todos os objetos de mana Rita notados e vendidos, e o dinheiro à espera da
dona. Pouco é; recebê-lo-á oportunamente. Talvez não houvesse necessidade de
escrever isto; fica servindo à reputação do finado.
Outra cousa que me ia esquecendo também, e mais principal, porque o
ofício dos leilões pode acabar algum dia, mas o de amar não cansa nem morre. A
culpa foi de mana Rita, que, em vez de começar por aí, só me deu a notícia no largo de São
Francisco, indo a entrar no bonde. Parece que Fidélia mordeu uma
pessoa; foram as próprias palavras dela.
- Mordeu? - perguntei sem entender logo.
- Sim, há alguém que anda mordido por ela.
- Isso há de haver muitos - retorqui.
Não teve tempo de me dizer nada, trepara ao bonde e o bonde ia sair;
apertou-me a mão sorrindo, e disse adeus com os dedos.
24 de maio
Esta manhã, como eu pensasse na pessoa que terá sido mordida pela viúva,
veio a própria viúva ter comigo, consultar-me se devia curá-la ou não. Achei-a
na sala com o seu vestido preto do costume e enfeites brancos, fi-la sentar no
canapé, sentei-me na cadeira ao lado e esperei que falasse.
- Conselheiro - disse ela entre graciosa e séria -, que acha que faça?
Que case ou fique viúva?
- Nem uma cousa nem outra.
- Não zombe, conselheiro.
- Não zombo, minha senhora. Viúva não lhe convém, assim tão verde;
casada, sim, mas com quem, a não ser comigo?
- Tinha justamente pensado no senhor.
Peguei-lhe nas mãos, e enfiamos os olhos um no outro, os meus a tal
ponto que lhe rasgaram a testa, a nuca, o dorso do canapé, a parede e foram
pousar no rosto do meu criado, única pessoa existente no quarto, onde eu estava
na cama. Na rua apregoava a voz de quase todas as manhãs: "Vai...
vassouras! Vai espanadores!"
Compreendi que era sonho e achei-lhe graça. Os pregões foram andando,
enquanto o meu José pedia desculpa de haver entrado, mas eram nove horas
passadas, perto de dez. Fui às minhas abluções, ao meu café, aos meus jornais.
Alguns destes celebram o aniversário
da batalha de Tuiuti. Isto me lembra que, em plena diplomacia,
quando lá chegou a notícia daquela vitória nossa, tive de dar esclarecimentos a
alguns jornalistas estrangeiros sequiosos de verdade. Vinte anos mais, não
estarei aqui para repetir esta lembrança; outros vinte, e não haverá
sobrevivente dos jornalistas nem dos diplomatas, ou raro, muito raro; ainda
vinte, e ninguém. E a Terra continuará a girar em volta do Sol com a mesma
fidelidade às leis que os regem, e a batalha de
Tuiuti, como a das
Termópilas, como a de Iena,
bradará do fundo do abismo aquela palavra da prece de
Renan: "Ó abismo! Tu és o deus único!''
Aí fica um desconcerto acabando em desconsolo - tudo para anotar pouco
mais que nada. Posso dizer com D. Francisco
Manuel: "Eu de meu natural sou miúdo e prolixo; o estar só e a melancolia,
que de si é cuidadosa"... Aí deixo uma página feita de duas,
ambas contrárias e filhas da mesma alma de sexagenário desenganado e guloso. Ao
cabo, nem tão guloso nem tão desenganado. Conversações do papel e para o papel.
26 de maio
Aqui ficam os sinais do sujeito mordido pela viúva Noronha. Vinte e oito
anos, solteiro, advogado do Banco do Sul,
donde lhe vieram as relações com o gerente Aguiar; boa feição, boas maneiras,
acaso tímido. É filho de um antigo lavrador do Norte, que reside agora no Recife.
Dizem que tem muito talento e grande futuro. Chama-se Osório.
Esteve no Flamengo,
na noite de 14, primeira reunião do Aguiar. Não vi nada que fizesse suspeitar a
inclinação que se lhe atribui, mas parece que já então lhe queria, e a paixão é
crescente. Continua a vê-la em casa do desembargador, onde a conheceu. Quem
sabe se não sai dali um noivo, e mana Rita perde a aposta que fez comigo?
Fidélia pode muito bem casar sem esquecer o primeiro marido, nem desmentir a
afeição que lhe teve.
29 de maio
Ontem, na reunião do Aguiar, pude verificar que o jovem advogado está
mordido pela viúva. Não têm outra explicação os olhos que lhe deita; são
daqueles que nunca mais acabam. Realmente, é tímido, mas de uma timidez que se
confunde com respeito e adoração. Se houvesse dança, ele apenas lhe pediria uma
quadrilha; duvido que a convidasse a valsar. Conversaram alguns minutos largos,
e por duas vezes, e ainda assim foi ela que principalmente falou. Osório gastou
o mais do tempo em mirá-la, e fazia bem, porque o gesto da dama era cheio de
graça, sem perder a tristeza do estado.
Também eu lhe falei o meu pouco, à janela. Ambos éramos de acordo que
não há baía no mundo que vença a do nosso
Rio de Janeiro.
- Não vi muitas - disse ela -, mas nenhuma achei que se aproxime desta.
Sobre isto dissemos cousas interessantes - ela, ao menos -, mas estou
que também eu. Quis perguntar-lhe se nos mares que percorreu viu algum peixe
semelhante àquele que anda agora em volta dela, mas não há intimidade para
tanto, e a cortesia opunha-se. Conversamos da cidade e suas diversões. Não vai
a teatro, qualquer que seja, nada sabe de dramas nem de óperas; não insisti no
assunto. Apenas me servi da segunda parte, a parte lírica, para lhe falar dos
seus talentos de pianista, que ouvira gabar muito.
- São impressões de amigos - respondeu sorrindo.
Depois confessou-me que há muito não toca, e provavelmente esquecerá o
que sabe. Talvez não fosse sincera nesta conjetura, mas tudo se há de perdoar
ao ofício da modéstia, e ela parece modesta. Guiei a conversação de modo que
mais ouvisse que falasse, e Fidélia não se recusou a essa distribuição de
papéis. Disse pouco de si e muito da gente Aguiar. Neste ponto falou com algum
calor; não me deu cousas novas, mas o que sentia dos dous foi expresso com
alma. Contou-me até que entre D. Carmo e a mãe dela achava semelhanças que lhe
faziam lembrar alguma vez a finada - ou seria simplesmente a afeição que aquela
lhe tem. Enfim, separamo-nos quase amigos.
Não repeti à gente Aguiar o que a seu respeito ouvi à viúva Noronha;
falei a D. Carmo nos talentos musicais da moça, e ela me confirmou que a viúva
está disposta a não tocar mais. Se não fosse isso, pedia-lhe que nos desse
alguma cousa. Ao que eu respondi:
- A própria arte a convidará um dia a tocar em casa, a sós consigo...
- Pode ser; em todo caso, não a convidarei a tocar aqui; o aplauso podia
avivar-lhe a saudade - ou, se a distraísse dela, viria diminuir-lhe o gosto de
sofrer pelo marido. Não lhe parece que ela é um anjo?
Achei que sim; acharia mais, se me fosse perguntado. D. Carmo crê na
reconciliação dela com o pai, e nem por isso receia perdê-la. Fidélia saberá
ser duas vezes filha, é o resumo do que lhe ouvi, sem entrar em pormenores nem
na espécie de afeição que lhe tem. Do que ela me disse acerca do "gosto de
sofrer pelo marido", concluo que a senhora do Aguiar é daquelas pessoas
para quem a dor é cousa divina.
Fim de maio
Acaba hoje o mês. Maio é também cantado na nossa poesia como o mês das
flores - e aliás todo o ano se pode dizer delas. A mim custou-me bastante
aceitar aquelas passagens de estação que achei em terras alheias.
A viúva Noronha, ao contrário, pelo que me disse na última noite do Flamengo,
achou deliciosa essa impressão lá fora, apesar de nascida aqui e criada na
roça. Há pessoas que parecem nascer errado, em clima diverso ou contrário ao de
que precisam; se lhes acontece sair de um para outro é como se fossem
restituídas ao próprio. Não serão comuns tais organismos, mas eu não escrevi
que Fidélia seja comum.
A descrição que ela me fez da impressão que teve lá fora com a entrada
da primavera foi animada e interessante, não menos que a do inverno com os seus
gelos. A mim mesmo perguntei se ela não estaria destinada a passar dos gelos às
flores pela ação daquele bacharel Osório... Ponho aqui a reticência que deixei
então no meu espírito.
9 de junho
Este mês é a primeira linha que escrevo aqui. Não tem sido falta de
matéria, ao contrário; falta de tempo também não; falta de disposição é
possível. Agora volta.
A matéria sobra. Antes de mais nada, Osório recebeu carta do pai,
pedindo-lhe que o fosse ver sem demora; está doente e mal. Osório preparou-se e
embarcou para o Recife.
Não o fez logo, logo; parece que a imagem de Fidélia o prendeu uns três dias,
ou porque se não pudesse separar dela, ou por temor de a perder às mãos de
terceiro; ambas as causas seriam.
Os pais fazem muito mal em adoecer, mormente se estão no Recife,
ou em qualquer cidade que não seja aquela onde os filhos namorados vivem perto
das suas damas. A vida é um direito, a mocidade, outro; perturbá-los é quase um
crime. Se eu tenho podido dizer isto ao Osório, talvez ele não partisse;
acharia na minha reflexão um eco do próprio sentimento, e escreveria ao pai uma
carta cheia de piedade; mas ninguém lhe disse nada.
Haveria também outro recurso, que conciliaria a piedade e o amor, era
escrever a Fidélia dizendo-lhe que embarcava e pedindo-lhe alguns minutos de
atenção. A carta, se levasse um ar petulante, aguçaria naturalmente a
curiosidade da viúva, e a entrevista se realizaria em presença ou na ausência
do desembargador; é indiferente. Talvez ele preferisse sair da sala.
- Titio pode ficar - diria ela ao receber o cartão de Osório.
- Não, é melhor sair. Provavelmente é algum caso de advocacia -
continuaria ele sorrindo -, e eu sou magistrado, não devo ouvir nada por ora;
mais tarde terei de ser juiz.
Osório entraria, e depois de alguns cumprimentos, pediria a mão da
viúva. Suponhamos que ela recusasse, fá-lo-ia com palavras polidas e quase
afetuosas, dizendo que sentia muito, mas resolvera não casar mais. Pausa longa;
o resto adivinha-se. Osório talvez lhe perguntasse ainda se a resolução era
definitiva, ao que ela, para evitar mais diálogo, responderia com a cabeça que
era, e ele iria embora. Fidélia correria a contar a novidade ao tio. Quero crer
que este defendesse a candidatura do advogado, e dissesse das boas qualidades
dele, da carreira próspera, da família distinta e o resto; Fidélia não se
arrependeria da recusa.
- Resolvi não casar - diria pela terceira vez naquela tarde.
Três vezes
negou Pedro a Cristo, antes de cantar o galo. Aqui não haveria galo
nem canto, mas jantar, e os dous iriam pouco depois para a mesa. Não diriam
nada durante os primeiros minutos, ele pensando que teria sido vantajoso à
sobrinha casar com o rapaz, ela remoendo a impressão do amor que este lhe tinha.
Por muito que se recuse deixa sempre algum gosto a paixão que a gente inspira.
Ouvi isto a uma senhora, não me lembra em que língua, mas o sentido era este. E
Fidélia deixaria a mesa sem chorar, como Pedro chorou
depois do galo.
Tudo imaginações minhas. A realidade única é que Osório embarcou e lá
vai, e a viúva cá fica sem perder as graças, que cada vez me parecem maiores.
Estive com ela hoje, e se não a arrebatei comigo não foi por falta de braços
nem de impulsos. Quis perguntar-lhe se não sonhara com o pretendente despedido,
mas a confiança que começo a merecer-lhe não permite tais inquirições, nem ela
contaria nada de si mesma. Contou-me, sim, que as pazes com o pai estarão
concluídas daqui a pouco, ainda que lhe seja preciso ir à fazenda. Naturalmente
aprovei este passo. Fidélia disse-me que o pai já na última carta ao irmão lhe
mandou lembranças, não nominalmente, mas por esta forma coletiva:
"lembranças a todos".
- Há de custar-lhe a dar o primeiro passo, mas a mim não me importa
fazê-lo - concluiu ela.
- Naturalmente.
- A separação que se deu entre nós, era impossível impedi-la.
Conselheiro, o senhor que viveu lá fora a maior parte da vida não calcula o que
são aqui esses ódios políticos locais. Papai é o melhor dos homens, mas não
perdoa a adversário. Hoje creio que está tudo acabado; a Abolição fê-lo
desgostoso da vida política. Já mandou dizer aos chefes conservadores daqui que
não contem mais com ele para nada. Foram os ódios locais que trouxeram a nossa
separação, mas pode crer que ele padeceu tanto como eu e meu marido.
Confiou-me, em prova do padecimento de ambos, várias reminiscências da
vida conjugal, que eu ouvi com grande interesse. Não as escrevo para não
acumular notícias, vá só uma.
Um ano depois do casamento, pouco mais, tiveram eles a ideia de propor
aos pais a reconciliação das famílias. Primeiro escreveria o marido ao pai dele;
se este aceitasse de boa feição, escreveria ela ao seu, e esperariam ambos a
segunda resposta. A carta do marido dizia as suas felicidades e esperanças, e
concluía pedindo a bênção, ou, quando menos, que lhe retirasse a maldição. Era
longa, terna e amiga.
- Meu marido nunca me mostrou a resposta do pai - concluiu Fidélia -, ao
contrário, disse-me que não recebera nenhuma. Eu é que a achei depois de viúva,
seis ou oito meses depois, entre papéis dele, e compreendi por que a escondera
de mim...
Parou aqui. Tive curiosidade de saber o que era, e, evocando a musa
diplomática, lembrou-me induzi-la à confissão ou retificação, dizendo à minha
recente amiga:
- Dissesse o que fosse a seu respeito ou de seu pai, era natural da
parte de um inimigo...
- Não, não - acudiu Fidélia -; não teve nenhuma palavra de ódio. Não
gosto de repetir o que foi, uma simples linha ou linha e meia, assim:
"Recebi a tua carta, mas não recebi o teu remédio para o meu
reumatismo". Só isto. Ele era reumático, e meu marido, como sabe, era médico.
Ri comigo. Não esperava tal remoque da Paraíba do
Sul, e compreendi também a reserva do marido. Não compreendi menos a
confidência da viúva; cedia, além do mais, à necessidade de contar alguma cousa
que distribuísse ao sogro parte grande na culpa que cabia ao pai. Não podia
tolher que falasse em si o sangue do fazendeiro. Tudo era Santa-Pia.
14 de junho
Más notícias de Santa-Pia. O barão teve uma congestão cerebral; Fidélia
e o tio vão para a fazenda amanhã. Não é fácil adivinhar o que vai sair daqui,
mas não seria difícil compor uma invenção, que não acontecesse. Enchia-se o
papel com ela, e consolava-se a gente com o imaginado. Melhor é dizer que a
reconciliação parece fazer-se mais depressa do que esperavam, e tristemente.
15 de junho
Há na vida simetrias inesperadas. A moléstia do pai de Osório chamou o
filho ao Recife,
a do pai de Fidélia chama a filha à Paraíba do
Sul. Se isto fosse novela algum crítico tacharia de inverossímil o
acordo de fatos, mas já lá dizia o poeta
que a verdade pode ser às vezes inverossímil. Vou hoje à casa do
Aguiar para ver se a filha postiça deixou saudades aos dous; deve tê-las
deixado.
16 de junho
Deixou, deixou saudades e grandes. Achei-os sós e conversamos da amiga.
Propriamente não estavam tristes da ausência dela, mas da tristeza que ela
levou consigo. Quero dizer que lhes doía a mágoa da outra; foi o que me
pareceu. A ausência, contam que não seja longa, e será temperada por visitas à
capital; em todo caso, a separação não é tamanha que eles não possam dar um
pulo à fazenda. Tais foram os sentimentos e as esperanças que lhes adivinhei.
Falaram-me do golpe recebido pela moça. D. Carmo disse-me que eu não podia
imaginar como a foi achar abatida.
- Ofereci-me para acompanhá-la à fazenda; recusou agradecida, e pela
primeira vez me deu um nome que o céu não quis que eu tivesse na terra:
"Obrigada, mãezinha", e beijou-me com grande ternura.
A minha ternura não é grande, nem acaso pequena, mas compreendi o
sentimento da boa senhora, e gostei de saber que, em tão grave instante,
Fidélia lhe tivesse dado aquela palavra cordial. Parecia contentá-la muito e ao
marido. Este, aliás, acompanhou a narração da mulher em silêncio, com os olhos
no teto; naturalmente não queria incorrer na pecha de fraco, mas a fraqueza, se
o era, começou nos gestos; ele ergueu-se, ele sentou-se, ele acendeu um
charuto, ele retificou a posição de um vaso... Eu, para espanar a melancolia da
sala, perguntei se os negócios do barão iam bem, e se os libertos... Aguiar
volveu a ser gerente de banco e expôs-me algumas cousas sobre o plantio do café
e os títulos de renda.
Nessa ocasião entrou um íntimo da casa e conversou também do fazendeiro.
Disse que os negócios dele, apesar do desfalque, não iam mal; deve ter uns
trezentos contos. Aguiar não sabe exatamente, mas aceitou o cálculo.
- Tem só aquela filha - concluiu a visita -, e é provável que ela case
outra vez.
Eu, para ser agradável aos donos da casa, quis dizer que me parecia que
não, mas este bom costume de calar me fez engolir a emenda, e agora me confesso
arrependido. Ao cabo eu já me vou conformando com a viuvez perpétua da bela
dama, se não é ciúme ou inveja de a ver casada com outro. Já me parece que
realmente Fidélia acaba sem casar. Não é só a piedade conjugal que lhe perdura,
é a tendência a cousas de ordem intelectual e artística, e pouco mais ou mais
nada. Fique isto confiado a ti somente, papel amigo, a quem digo tudo o que
penso e tudo o que não penso.
17 de junho
O Barão de Santa-Pia está mal, muito mal.
18 de junho
Viva a Fortuna,
que sabe às vezes consolar o mal agudo com algum bálsamo inesperado. A gente
Aguiar recebeu carta de Tristão, que lhes anuncia a vinda ao Brasil, talvez no
paquete próximo. Logo que entrei... Era dia de recepção deles, e soube depois
que tinham pensado em transferi-la por causa da tristeza de Fidélia, mas
consideraram que era modesta e resumida, que se não dançava, raro se cantava, e
apenas se conversava e tomava chá; podia ser mantida sem escândalo.
Logo que entrei deu-me Aguiar a notícia. Quando fui cumprimentar D.
Carmo, e a felicitei pela vinda do moço, ouviu-me com grande prazer. Meia hora
depois, tornamos a falar do assunto, ela e eu, e então foi ela que iniciou a
conversação, dizendo-me que estava em casa, longe de esperar tal cousa, e de
repente viu entrar no jardim um homem do banco com um bilhete do Aguiar,
dando-lhe a boa nova, e acompanhado da carta que Tristão mandava aos dous.
Contando-me estas particularidades, acaso dispensáveis, D. Carmo queria
naturalmente comunicar-me o próprio alvoroço. Conheço estas intenções
recônditas e manifestas a um tempo; é velho sestro de felizes.
A gente pouca e as relações estreitas deram azo a que no fim da noite
falássemos todos do hóspede vindouro. Aí vem o afilhado que eles tiveram por
esquecido, quase ingrato, esse outro meio filho que ajudaram a criar e a amar.
Aguiar e a mulher deram explicações pedidas, contaram episódios de infância,
histórias de graça, de esperteza, algumas de manha, mas a manha das crianças só
enfada em ação; recordada, deleita, como outras cousas idas. Uma das senhoras
presentes quis lembrar alguns atos de carinho e dedicação de D. Carmo acerca do
pequeno, mas a boa velha esquivou-se depressa, e apenas ouvimos um ou dous.
Noite de família; saí cedo, vim para casa tomar leite, escrever isto e dormir.
Até outro dia, papel.
20 de junho
Telegrama da Paraíba do
Sul: "O Barão de Santa-Pia faleceu hoje de manhã". Vou
mandar a notícia a mana Rita, e enviar cartões de pêsames. É caso de dar também
os pêsames à gente Aguiar? Pêsames não, mas uma visita discreta e afetuosa,
amanhã ou depois...
21 de junho
Aguiar vai à fazenda de Santa-Pia, em visita de pêsames a Fidélia; parte
amanhã. D. Carmo fica. Foi o que ele me disse na rua do
Ouvidor.
- Já lhe mandei os meus - disse-lhe -. Receba-os também, se a afeição
que os liga a D. Fidélia pode justificar esta participação de desgosto...
- Ambos nós sentimos a dor que aflige a nossa boa amiga. Carmo queria ir
comigo; eu é que lhe disse que não, que não vá; pode cansá-la muito a viagem
assim rápida.
Lá vai o Aguiar enfraquecer da alegria do filho com a mágoa da filha; cá
virá convalescer da tristeza da moça com a alegria do rapaz. Tudo se atenua
assim neste mundo, e ainda bem. O pior é não serem filhos de verdade, mas só de
afeição; é certo que, em falta de outros, consolam-se com estes, e muita vez os
de verdade são menos verdadeiros.
*****
21 de junho, à noite
Cá esteve hoje a minha boa mana; ia visitar a gente Aguiar, eu disse-lhe
que vá comigo amanhã, e aceitou.
23 de junho
A mana e eu estivemos ontem em casa da boa velha Aguiar. Saí de lá mais
cedo do que quisera; se pudesse, ficaria muito mais tempo.
Achamo-la entre alegre e triste, se esta expressão pode definir um
estado que se não descreve; eu, ao menos, não posso. Recebeu-nos como sempre;
ela sabe dar ao gesto e à palavra um afago sem intenção, verdadeiramente
delicioso. Quando lhe falamos de Fidélia, disse da tristeza da amiga com outra
tristeza correspondente, e referiu a partida do marido na manhã de ontem, sem
aludir às obrigações que ele teve de interromper. Não tardou, porém, que lhe
perguntássemos pelo afilhado e respondeu com satisfação grande. O resto da
visita dividiu-se entre ambos, mas ao rapaz coube a maior parte da conversação,
naturalmente por ser mais longa a ausência, maior, a distância e inesperada, a
volta.
D. Carmo continuou a narração da outra noite, agora mais íntima, éramos
três pessoas apenas. Não diria toda a primeira vida do pequeno, o tempo seria
pouco, ela mesma o confessou, mas muita cousa principal disse. Era frágil,
magrinho, quase nada, criaturinha de escasso fôlego. Não disse que se fez mãe;
esta senhora não conhece a língua do próprio louvor, mas eu já sabia, e
percebia-se do carinho da narração que devia ser assim mesmo. Rita arriscou esta
reflexão rindo:
- As crianças não sabem o cuidado que dão, e esquecem depressa o que
sabem.
- É preciso desculpar a Tristão o que é próprio de rapaz - acudiu D.
Carmo -. Ele não é mau; esqueceu-se um pouco de nós, mas a idade e a novidade
dos espetáculos explicam tudo. A prova é que aí vem ele ver-nos, e se lesse as
cartas dele... Aguiar não lhe mostrou a última?
- Não, minha senhora - respondi -; disse-me só o que continha.
- Talvez não dissesse tudo.
Cuido que quisesse mostrar-me as cartas do rapaz, uma só que fosse, ou
um trecho, uma linha, mas o temor de enfadar fez calar o desejo. Foi o que me
pareceu e deixo aqui escrito. Tornamos à viúva, depois voltamos a Tristão, e
ela só passou a terceiro assunto porque a cortesia o mandou; eu, porém, para ir
com a alma dela, guiei a conversa novamente aos filhos postiços. Era o meu modo
de ser cortês com a boa senhora. Custa-me dizer que saí de lá encantado, mas
saí, e mana Rita também. Rita disse-me na rua:
- Há poucas criaturas como aquela.
- Creio, creio, é excelente... sem desfazer em você.
- Eu não - replicou Rita prontamente -. Não me acho má, porém estou
longe de ser o que ela é. Você repare que tudo naquela senhora é bom, até a
opinião, que nem sempre é justa, porque ela perdoa e desculpa a todos. Eu não
sou assim; acho muita gente má, e se for preciso dizê-lo, digo. D. Carmo não é
capaz de criticar ninguém. Algum reparo que aceite é sempre explicando; quando
menos, calando.
24 de junho
Ontem conversei com a senhora do Aguiar acerca das antigas
noites de São João, Santo Antônio e São Pedro, e mais as suas sortes e
fogueiras. D. Carmo pegou do assunto para tratar ainda do filho
postiço. Leve o diabo tal filho. A filha postiça é que há de estar a esta hora
mui triste no casarão da fazenda, onde certamente passou as antigas
noites de São João de donzela esperançada e crédula. A deste
ano sem pai deve ser aborrecida, não tendo mãe que o continue, nem marido que
os supra. Um tio não basta para tanta cousa.
Também eu tirei sortes outrora. Com pouco se fingia de Destino -
um livro, um rimador de quadras e um par de dados. "Se há de desposar a
pessoa a quem ama", dizia o título da página, por exemplo; deitavam-se os
dados, os números eram cinco e dous, sete: ia-se à quadra sétima, e lia-se.
Suponhamos que se lia... Vá, risco a quadra que cheguei a escrever aqui.
Geralmente era engraçada, pelo menos, mas também troçava com a pessoa que
consultava o Destino.
Todos riam; alguns criam deveras; em todo caso passavam-se as horas até chegar
o sono. E ali vinha este velho camareiro da humanidade, que os pagãos chamaram Morfeu,
e que a pagãos e cristãos, e até a incréus fecha os olhos com os seus eternos
dedos de chumbo. Agora, meu sono amigo, só tu virás daqui a uma ou duas horas,
sem livros de sortes nem dados. Quando muito trarás sonhos, e já não serão os
mesmos de outro tempo.
27 de junho
Missa do barão de Santa-Pia em São Francisco
de Paula. O filho do desembargador representava a família; este e a
sobrinha ouviram missa na fazenda. Há de ter sido outra recordação antiga para
a viúva. A fazenda tem capela, onde um padre dizia missa aos domingos e
confessava pela Quaresma.
Também eu conheci esse costume em pequeno, e ainda me lembra que, na quaresma,
eu e outros rapazes íamos esconder-nos do confessor embaixo das camas ou nos
desvãos da casa. Já então confundíamos as práticas religiosas com as canseiras
da vida, e fugíamos delas. Entretanto, o padre que me confessou pela primeira
vez era meigo, atento, guiava-me a confissão indicando os pecados que devia
dizer, e até que ponto, e punha a absolvição na língua antes que os pecados lhe
entrassem pelo ouvido; assim me pareceu. Perdoe-me a sua memória, se não é
verdade. Tudo isso vai longe. A segunda confissão foi por ocasião de casar. Daí
em diante não fui mais que virtudes.
Bastante gente em São Francisco
de Paula. Na sacristia havia folhas de papel onde se inscreveram as
pessoas que lá foram, e uma ou outra que não foi mas encomendou o cuidado a um
terceiro. Vi magistrados, advogados, pessoas do comércio e do funcionalismo,
senhoras, algumas senhoras. Destas eram moças umas, amigas de Fidélia, outras
eram velhas do tempo da mãe. Uma destas era a que não faltaria, ainda que lá
não fosse ninguém, e só amiga da viúva, a boa Aguiar, naturalmente. Lá estava
também Rita, que veio almoçar comigo.
Se as missas pudessem ser ditas, segundo a ocasião, eu acharia que o
padre ajustou a sua à pouca presença do sangue do morto, tão breve foi, mas não
é assim; cada padre diz a missa à sua maneira de sempre, apressada ou vagarosa,
conforme usa ler ou falar.
30 de junho
Ora bem, a viúva Noronha mandou uma carta a D. Carmo, documento
psicológico, verdadeira página da alma. Como eles tiveram a bondade de
mostrar-ma, dispus-me a achá-la interessante, antes mesmo de a ler, mas a
leitura dispensou a intenção; achei-a interessante deveras, disse-o, reli
alguns trechos. Não tem frases feitas, nem frases rebuscadas; é simplesmente
simples, se tal advérbio vai com tal adjetivo; creio que vai, ao menos para
mim.
Quatro páginas apenas, não deste papel de cartas que empregamos, mas do
antigo papel chamado
de peso, marca Bath, que havia na fazenda, a uso do pai. Trata
longamente dele e das saudades que ela foi achar lá, das lembranças que lhe
acordaram as paredes dos quartos e das salas, as colunas da varanda, as pedras
da cisterna, as janelas antigas, a capela rústica. Mucamas e moleques deixados
pequenos e encontrados crescidos, livres com a mesma afeição de escravos, têm
algumas linhas naquelas memórias de passagem. Entre os fantasmas do passado, o
perfil da mãe, ao pé o do pai, e ao longe como ao perto, nas salas como no
fundo do coração, o perfil do marido, tão fixo que cheguei a vê-lo e me pareceu
eterno.
Vou reconhecendo que esta moça vale ainda mais do que me parecia a
princípio. Não é a questão de amar ou não o defunto marido; creio que o ame,
sem que essa fidelidade lhe aumente a pureza dos sentimentos. Pode ser obra
dele, ou dela, ou de ambos a um tempo. O maior valor dela está, além da
sensação viva e pura que lhe dão as cousas, na concepção e na análise que sabe
achar nelas. Pode ser que haja nisto, da minha parte, um aumento de realidade,
mas creio que não. Se fosse nos primeiros dias deste ano, eu poderia dizer que
era o pendor de um velho namorado gasto que se comprazia em derreter os olhos
através do papel e da solidão, mas não é isso; lá vão as últimas gabolices do
temperamento. Agora, quando muito, só me ficaram as tendências estéticas, e,
deste ponto de vista, é certo que a viúva ainda me leva os olhos, mas só diante
deles. Realmente, é um belo pedaço de gente, com uma dose rara de expressão. A
carta, porém, dá a tudo grande nota espiritual.
Acredito que D. Carmo sinta essa dama como eu a entendo, mas desta vez o
que lhe penetrou mais fundo foi o cumprimento final da carta, as três últimas
palavras, anteriores à derradeira de todas, que é o nome: "da sua filhinha
Fidélia". Percebi isto, vendo que ela desceu os olhos ao fim do papel três
ou quatro vezes, sem querer acabar de o dobrar e guardar.
1 de julho
Também há ventanias de felicidade, que levam tudo adiante de si. A gente
Aguiar recebeu ontem a carta de Fidélia, e hoje outra de Tristão, em que este
lhe anuncia que embarca no paquete inglês para cá; deve chegar a 23 ou 24. A
alegria com que eles leram esta notícia foi naturalmente grande; porquanto
Fidélia cá está e diz-se filha da boa velha; Tristão aí vem e anuncia que esta
carta é a última; a seguinte é ele próprio. Tudo isso a um tempo.
Preparam-lhe alojamento em casa. Aguiar anda tão satisfeito que, contra
os seus hábitos de discrição, já me disse ter em vista a mobília do quarto que
lhe destinam; é simples e elegante. Provavelmente a mulher começará já a obra
dos seus ornamentos de lã e de linho para as cadeiras e a mesa. Isto não foi
ele que me disse nem ninguém; eu é que o adivinho e escrevo aqui para mostrar a
mim mesmo o que é fácil de ver. Para a boa Carmo, bordar, coser, trabalhar, enfim,
é um modo de amar que ela tem. Tece com o coração.
É regra velha, creio eu, ou fica sendo nova, que só se faz bem o que se
faz com amor. Tem ar de velha, tão justa e vulgar parece. Daí a perfeição
daquelas suas obras domésticas. Será como dormir ou transpirar. Não lhe tiro
com isto o mérito; por maior que seja a necessidade, não é menor a virtude.
Também eu fiz a minha diplomacia com amor, e ouvi a ministros que bem, mas no
meu caso (distingamo-nos da velha Aguiar) não bastou amor nem necessidade; se não
fosse carreira é provável que eu acabasse juiz, banqueiro ou outra cousa.
2 de julho
O que ouvi dizer ontem a Aguiar foi no Banco do Sul,
aonde tinha ido depositar umas apólices. Esqueceu-me escrever que, à saída,
perto da igreja da
Candelária, encontrei o desembargador Campos; tinha chegado de
Santa-Pia anteontem, à noite, e ia ao Banco levar
recados da sobrinha para o Aguiar e para a mulher. Perguntei-lhe se Fidélia
ficava lá de vez; respondeu-me que não.
- Ficar de vez, não fica; demora-se algumas semanas, depois virá e
provavelmente transfere a fazenda; acho que não faz mal. Ficaria, segundo me
disse, se fosse útil, mas parece-lhe que a lavoura decai, e não se sente com
forças para sustê-la. Daí a ideia de vender tudo, e vir morar comigo. Se
ficasse tinha jeito. Ela mesma tomou contas a todos, e ordenou o serviço. Tem
ação, tem vontade, tem espírito de ordem. Os libertos estão bem no trabalho.
Conversamos um pouco dos efeitos da Abolição,
e despedimo-nos.
5 de julho
Obrigado pela palavra a ir passar a noite com o corretor Miranda, lá fui
hoje. Veio mais gordo da Europa,
onde só esteve alguns meses; é o mesmo impetuoso de sempre, mas bom sujeito e
excelente marido. Nada novo, a não ser um jogo, parece que inventado nos Estados
Unidos e que ele aprendeu a bordo. No meu tempo não se
conhecia. Chama-se poker; eu trouxe o whist,
que ainda jogo, e peguei no meu velho voltarete. Parece que o poker vai
derrubar tudo. Na casa do Miranda até a senhora deste jogou.
As filhas não jogaram, nem a cunhada, D. Cesária, que não acha recreação
nas cartas; confessou (rindo) que é muito melhor dizer mal da vida alheia, e
não o faz sem graça. Justamente o que falta ao marido, a quem sobra o resto.
Cuidei que os dous estivessem brigados com o corretor, não formalmente, porque
D. Cesária não briga nunca, arrufa-se apenas; cuidei que estivessem arrufados
com o corretor, quando este e a família embarcaram. Estivessem ou não, a volta
os reconciliou. É uma das prendas desta senhora. Talvez tivesse dito mal da
própria irmã ou do cunhado, mas tão habilmente se arranjou que os achei
unidíssimos. Não sei o que ela dirá de mim, eu acho-lhe interesse, e
preferi-lhe a língua ao poker;
com a língua não se perde dinheiro.
Como se falasse da morte do barão de Santa-Pia e da situação da filha,
D. Cesária perguntou se ela realmente não casava. Parece que duvida da viuvez
de Fidélia. Eu não lhe disse que já pensara o mesmo, nem lhe disse nada; não
quis trazer a outra à conversação e fiz bem. D. Cesária aceitou daí a pouco a
hipótese da viuvez perpétua, por não achar graça à viúva, nem vida, nem
maneiras, nada, cousa nenhuma; parece-lhe uma defunta. Eu sorri como devia, e
fui ouvir a explicação que me davam de um bluff.
No poker, bluff é
uma espécie de conto-do-vigário.
13 de julho
Sete dias sem uma nota, um fato, uma reflexão; posso dizer oito dias,
porque também hoje não tenho que apontar aqui. Escrevo isto só para não perder
longamente o costume. Não é mau este costume de escrever o que se pensa e o que
se vê, e dizer isso mesmo quando se não vê nem pensa nada.
18 de julho
Tristão chegou a Pernambuco;
esperam por ele a 23.
20 de julho
Chegou à Bahia o
afilhado dos Aguiares. Creio que eles lhe darão festa de recepção, ainda que
modesta. A última fotografia foi mandada encaixilhar e pendurar. É um belo
rapaz, e a atitude do retrato tem certo ar de petulância que lhe não fica mal,
ao contrário.
25 de julho
Já aqui chegou o Tristão. Não o vi ainda; também não tenho saído de casa
estes três dias. Entre outras cousas, estive a rasgar cartas velhas. As cartas
velhas são boas, mas estando eu velho também, e não tendo a quem deixar as que
me restam, o melhor é rasgá-las. Fiquei só com oito ou dez para reler algum dia
e dar-lhes o mesmo fim. Nenhuma delas vale uma só das de Plínio,
mas a todas posso aplicar o que ele escrevia a Apolinário:
"teremos ambos o mesmo gosto, tu em ler o que digo, e eu em dizê-lo".
Os meus Apolinários estão mortos ou velhos; as Apolinárias também.
27 de julho
Vi hoje o Tristão descendo a rua do
Ouvidor com o Aguiar; adivinhei-o por este e pelo retrato.
Trazia no vestuário alguma cousa que, apesar de não diferir da moda, cá e lá,
lhe põe certo jeito particular e próprio. Aguiar apresentou-nos. Tristão
falou-me polidamente, e com tal ou qual curiosidade, não ouso dizer interesse.
Naturalmente já ouviu falar de mim em casa deles. Cinco minutos de conversação
apenas - o bastante para me dizer que está encantado com o que tem visto. Creio
que seja assim, porque eu amo a minha terra, apesar das ruas estreitas e
velhas; mas também eu desembarquei em terras alheias, e usei igual estilo.
Entretanto, esta cidade é a dele, e, como eu lhe dissesse que não devera ter
esquecido o Rio de Janeiro,
donde saíra adolescente, respondeu que era assim mesmo, não esquecera nada. O
encanto vinha justamente da sensação de cousas vistas, uma ressurreição que era
continuidade, se assim resumo o que ele me disse em vocábulos mais simples que
estes. Cinco minutos e despedimo-nos.
É uma bonita figura. A palavra forte, sem ser áspera. Os olhos vivos e
lépidos, mas talvez a brevidade do encontro e da apresentação os obrigasse a
essa expressão única; possivelmente os terá de outra maneira alguma vez. É
antes alto que baixo, e não magro. A certa distância, ia eu a voltar a cabeça
para vê-lo ainda, mas recuei a tempo; seria indiscreto e apressado, e talvez
não valesse a pena. Irei uma destas noites ao Flamengo.
Há já três semanas que não apareço lá.
28 de julho
Não duvido que o Tristão visse com prazer o Rio de
Janeiro. Quaisquer que sejam os costumes novos e ligações de
família, e por maior que tenha sido a ausência, o lugar onde alguém passou os
primeiros anos há de dizer à memória e ao coração uma linguagem particular.
Creio que ele esteja realmente encantado, como me disse ontem. Demais, lá fora
ouvia a mesma língua daqui; a mãe é a mesma paulista que o gerou e levou
consigo, e está agora emLisboa,
com o pai, ambos velhos.
Eu nunca esqueci cousas que só vi em menino. Ainda agora vejo dous
sujeitos barbados que jogavam o Entrudo,
teria eu cinco anos; era com bacias de madeira ou de metal, ficaram
inteiramente molhados e foram pingando para as suas casas. Só não me acode onde
elas eram. Outra cousa que igualmente me lembra, apesar de tantos anos
passados, é o namoro de uma vizinha e de um rapaz. Ela morava defronte, era
magrinha e chamava-se Flor. Ele também era magro e não tinha nome conhecido; só
lhe sabia a cara e a figura. Vinha às tardes e passava três, quatro, cinco e
mais vezes de uma ponta à outra da rua. Uma noite ouvimos gritos. Na manhã
seguinte ouvi dizer que o pai da moça mandara dar por escravos uma sova de pau
no namorado. Dias depois foi este recrutado para o exército, dizem que por
empenho do pai da moça; alguns creram que a sova fora um simples desforço
eleitoral. Tudo é um; amor ou eleições, não falta matéria às discórdias
humanas.
Que valem tais ocorrências agora, neste ano de 1888? Que pode valer a
loja de um barbeiro que eu via por esse tempo, com sanguessugas à porta, dentro
de um grosso frasco de vidro com água e não sei que massa? Há muito que se não
deitam bichas a doentes; elas, porém, cá estão no meu cérebro, abaixo e acima,
como nos vidros. Era negócio dos barbeiros e dos farmacêuticos, creio; a
sangria é que era só dos barbeiros. Também já se não sangra pessoa nenhuma.
Costumes e instituições, tudo perece.
31 de julho
Tem agradado muito o Tristão, e para crer que o merece basta dizer que a
mim não me desagrada, ao contrário. É ameno, conversado, atento, sem afetação
nem presunção; fala ponderado e modesto, e explica-se bem. Ainda lhe não ouvi
grandes cousas, nem estas são precisas a quem chega de fora e vive em família;
as que lhe ouvi são interessantes.
No vestido e nas maneiras usa o tom da conversa; a mesma correção e
simplicidade. O encanto que outro dia me disse achar na cidade continua a achar
nela e na gente; reconhece ruas, casas, costumes e pessoas; pergunta por muitas
destas e interessa-se em ouvir as notícias que lhe dão. Algumas reconhece logo,
outras, com pouca explicação. Enfim, não é mau rapaz.
Para a gente Aguiar é mais que excelente. Essa está tanto ou mais
encantada que ele; nestes poucos dias já o levou a diferentes partes. O
desembargador Campos, que lá jantou ontem, disse-me que D. Carmo estava que era
uma criança; quase que não tirava os olhos de cima do afilhado. Tristão conhece
música, e à noite, a pedido dela, executou ao piano um pedaço de Wagner,
que ele achou muito bem. Além do Campos, jantou lá um padre Bessa, o que
batizou Tristão.
Não era habituado do Flamengo,
este padre; foi o próprio Tristão que o descobriu, de maneira que merece notar.
Perguntou por ele, e, ao cabo de dous dias, sabendo que residia na praia Formosa,
dispôs-se a lá ir, depois de recusar ao padrinho a companhia que este lhe
ofereceu.
- Quero ir eu só - replicou -, para lhe mostrar que não desaprendi a
minha cidade.
E lá foi, e lá andou, e lá descobriu o padre, dentro de uma casinha -
baixa. Bessa, que fora comensal dos pais dele, não o conheceu logo, mas às
primeiras notícias recompôs o passado e adivinhou o menino a quem dera batismo.
Aguiar fê-lo convidar e vir à casa dele, a ver o moço e visitá-lo, sempre que
quisesse. É uma boa figura de velho e de sacerdote, disse-me o desembargador,
calvo bastante, cara magra, e expressão plácida, apesar das misérias que terá
curtido; chega a ser alegre.
1 de agosto
O desembargador deu-me também notícia da sobrinha. Está boa e virá
brevemente da fazenda. Contou-lhe em carta um sonho que teve ultimamente, a
aparição do pai e do sogro, ao fundo de uma enseada
parecida com a do Rio de Janeiro. Vieram as duas figuras sobre a
água, de mãos dadas, até que pararam diante dela, na praia. A morte os
reconciliara para nunca mais se desunirem; reconheciam agora que toda a
hostilidade deste mundo não vale nada, nem a política nem outra qualquer.
Quis replicar ao desembargador que talvez a sobrinha tivesse ouvido mal.
A reconciliação eterna, entre dous adversários eleitorais, devia ser exatamente
um castigo infinito. Não conheço igual na Divina
Comédia. Deus,
quando quer ser Dante, é maior que Dante. Recuei a tempo e calei a
facécia; era rir da tristeza da moça. Pedi mais notícias dela, e ele deu-mas; a
principal é que está cada vez mais firme na ideia de vender Santa-Pia.
2 de agosto
Aguiar mostrou-me uma carta de Fidélia a D. Carmo. Letra rasgada e
firme, estilo correntio, linguagem terna; promete-lhes vir para a Corte logo
que possa, e será breve. Estou cansado de ouvir que ela vem, mas ainda me não
cansei de o escrever nestas páginas de vadiação. Chamo-lhes assim para divergir
de mim mesmo. Já chamei a este Memorial um bom costume. Ao
cabo, ambas as opiniões se podem defender, e, bem pensado, dão a mesma cousa.
Vadiação é bom costume.
A carta de Fidélia começa por estas três palavras: "Minha querida
mãezinha", que deixaram D. Carmo morta de ternura e de saudades; foi a
própria expressão do marido. Nem tudo se perde nos bancos; o mesmo dinheiro,
quando alguma vez se perde, muda apenas de dono.
3 de agosto
Hoje fazia anos o ministério
Ferraz, e quem já pensa nele nem nos homens que o compunham e lá
vão, uns na morte, outros na velhice ou na inação? Foi ele que me promoveu a
secretário de legação, sem que eu lho pedisse e até com espanto meu.
Dizendo isto ao Aguiar, ouvi-lhe anedotas políticas daquele tempo
(1859-1861), contadas com animação, mas saudade. Aguiar não tem costela de
homem público; todo ele é família, todo esposo, e agora também filhos, os dous
filhos postiços - Tristão mais que Fidélia, pela razão que penso haver já dito.
Confirmou-me as boas impressões do desembargador, e concluiu:
- Conselheiro, já falou ao nosso Tristão, já o ouviu, e creio
apreciá-lo, mas eu desejo que o conheça mais para apreciá-lo melhor. Ele fala
da sua pessoa com grande respeito e admiração. Diz que um dia o viu em Bruxelas,
e estava longe de crer que viria achá-lo e falar-lhe aqui.
- Já me disse isso mesmo. Acho que é um moço muito distinto.
- Não é? Também nós achamos, e outras pessoas também. Não lhe pedi que
me contasse a vida dele lá, mas conversei de maneira que ele me foi dizendo
muita cousa, os estudos, as viagens, as relações; pode ser que invente ou
exagere, mas creio que não; tudo o que nos disse é verossímil e combina com o
que vimos dele aqui, e também do compadre e da comadre. Se pudéssemos ficar com
ele de uma vez, ficávamos. Não podemos; Tristão veio apenas por quatro meses; a
nosso pedido vai ficar mais dous. Mas eu ainda verei se posso retê-lo oito ou
dez.
- Veio só para visitá-los?
- Diz que só. Talvez o pai aproveitasse a vinda para encarregá-lo de
algum negócio; apesar de liquidado, ainda tem interesses aqui; não lhe
perguntei por isso.
- Pois veja se o faz ficar mais tempo; ele acabará ficando de vez.
4 de agosto
Indo a entrar na barca de Niterói,
quem é que encontrei encostado à amurada? Tristão, ninguém menos, Tristão, que
olhava para o lado da barra,
como se estivesse com desejo de abrir por ela fora e sair para a Europa.
Foi o que eu lhe disse, gracejando, mas ele acudiu que não.
- Estou a admirar estas nossas belezas - explicou.
- Deste outro lado são maiores.
- São iguais - emendou -. Já as mirei todas, e do pouco que vi lá fora é
ainda o que acho mais magnífico no mundo.
O assunto era velho e bom para atar conversa; aproveitamo-lo e chegamos
ao desembarque, depois de trocadas muitas ideias e impressões. Confesso que as
minhas não eram mais novas que o assunto inicial, e eram curtas; as dele tinham
sobre elas a vantagem de evocações e narrativas. Não estou para escrever tudo o
que lhe ouvi acerca dos anos de infância e adolescência, nem dos de mocidade
passados na Europa.
Foi interessante, decerto, e parece que sincero e exato, mas foi longo, por
mais curta que fosse a viagem da barca. Enfim, chegamos à Praia Grande.
Quando eu lhe disse que preferia este nome popular ao nome oficial,
administrativo e político de Niterói,
dissentiu de mim. Repliquei que a razão do dissentimento vinha de ser eu velho
e ele, moço.
- Criei-me com a Praia Grande;
quando o senhor nasceu a crisma de Niterói110
pegara.
- Vou ao palácio da
presidência. Até à volta, se nos encontrarmos.
Uma hora depois, quando eu chegava à ponte, lá o achei. Imaginei que
esperasse por mim, mas nem me cabia perguntar-lho, nem talvez a ele, dizê-lo. A
barca vinha perto, chegou, atracou, entramos. Na viagem de regresso tive uma
notícia que não sabia; Tristão, alcunhado brasileiro em Lisboa,
como outros da própria terra, que voltam daqui, é português naturalizado.
- Aguiar sabe?
- Sabe. O que ele ainda não sabe, mas vai saber, é que nas vésperas de
partir aceitei a proposta de entrar na política, e vou ser
eleito deputado às cortes no ano que vem. Não fosse isso, e eu cá
ficava com ele; iria buscar meu pai e minha mãe. Sei que ele me há de querer
dissuadir do plano; meu padrinho não gosta de política, menos ainda de política
militante, mas eu estou obrigado pelo gosto que lhe tenho e pelo acordo a que
cheguei com os chefes do partido. Escrevi algum tempo num jornal de Lisboa,
e dizem que não inteiramente mal. Também falei em comícios.
- Eles querem-lhe muito.
- Sei, muito, como a um filho.
- Têm também uma filha de afeição.
- Também sei, uma viúva, filha de um fazendeiro que morreu há pouco. Já
me falaram dela. Vi-lhe o retrato encaixilhado pelas mãos da madrinha. Se
conhece bem a madrinha, há de saber o coração terno que tem. Toda ela é
maternidade. Aos próprios animais estende a simpatia. Nunca lhe falaram de um
terceiro filho que tiveram, e ela amava muito?
- Creio que não; não me lembra.
- Um cão, um pequeno cão de nada. Foi ainda no meu tempo. Um amigo do padrinho
levou-lho um dia, com poucos meses de existência, e ambos entraram a gostar
dele. Não lhe conto o que a madrinha fazia por ele, desde as sopinhas de leite
até aos capotinhos de lã, e o resto; ainda que me sobrasse tempo, não acharia
crédito em seus ouvidos. Não é que fosse extravagante nem excessivo; era
natural, mas tão igual sempre, tão verdadeiro e cuidadoso que era como se o
bicho fosse gente. O bicho viveu os seus dez ou onze anos da raça; a doença
achou enfermeira, e a morte teve lágrimas. Quando entrar no jardim, à esquerda,
ao pé do muro, olhe, foi aí que o enterraram; e já me não lembrava, a madrinha
é que mo apontou ontem.
Não me soube grandemente essa aliança de gerente de banco e pai de
cachorro. É verdade que o próprio Tristão dá a maior parte à madrinha, que é
mulher. Com a prática dos dias anteriores e estas duas viagens de barca,
sinto-me meio habilitado a possuir bem aquele moço. Só lhe ouvi meia dúzia de
palavras algo parecidas com louvor próprio, e ainda assim moderado. "Dizem
que não escrevo inteiramente mal" encobrirá a convicção de que escreve
bem, mas não o disse, e pode ser verdade.
7 de agosto
D. Carmo foi a Nova Friburgo34
com o afilhado para lhe mostrar novamente a cidade em que nasceu, creio que
também a rua, e parece que a própria casa. Tudo está velho e quieto, dizem-me.
Isto vai com os hábitos dela, que sabe e gosta de guardar os velhos retalhos e
lembranças antigas, como que lhe dando um ar perpétuo de mocidade. Tristão, não
tendo aliás o mesmo interesse, mostrou prazer em a acompanhar. Toda a gente
continua a gostar dele, Campos mais que outros, pois o conheceu menino. Mana
Rita é que apenas o viu; tem estado adoentada, levantou-se anteontem; só ontem
soube disso, e fui visitá-la. Contei-lhe o que havia daquela casa e da casa do
desembargador; dei-lhe vontade de vir também à gente Aguiar, quando os dous
voltarem de Nova Friburgo.34
10 de agosto
Meu velho Aires, trapalhão da minha alma, como é que tu comemoraste no
dia 3 o ministério
Ferraz, que é de 10? Hoje é que ele faria anos, meu velho Aires. Vês
que é bom ir apontando o que se passa; sem isso não te lembraria nada ou
trocarias tudo.
Fidélia chega da Paraíba do
Sul no dia 15 ou 16. Parece que os libertos vão ficar tristes;
sabendo que ela transfere a fazenda, pediram-lhe que não, que a não vendesse,
ou que os trouxesse a todos consigo. Eis aí o que é ser formosa e ter o dom de
cativar. Desse outro cativeiro não há cartas nem leis que libertem; são
vínculos perpétuos e divinos. Tinha graça vê-la chegar à Corte com
os libertos atrás de si, e para quê, e como sustentá-los? Custou-lhe muito
fazer entender aos pobres sujeitos que eles precisam trabalhar, e aqui não
teria onde os empregar logo. Prometeu-lhes, sim, não os esquecer, e, caso não
torne à roça, recomendá-los ao novo dono da propriedade.
11 de agosto
Recebi hoje um bilhete de Tristão, escrito de Nova Friburgo,
no qual me diz que está muito satisfeito com o que vê e o que ouve; reconheceu
a cidade, que é encantadora com a sua gente. A companheira de viagem ainda o é
mais que a gente e a cidade. Copio estas palavras do bilhete:
|
Não há nessa carta nada que não pudesse ser dito na volta, uma vez que
ele desce daqui a três dias. Creio que ele cedeu ao desejo de ser lido por mim
e de me ler também. Questão de simpatia, questão de arrastamento. Vou
responder-lhe com duas linhas...
... Lá vai a carta; respondi-lhe com trinta e tantas linhas, dizendo-lhe
cousas que busquei fazer alegres, e com certeza saíram quase amigas. Concordei
queNova Friburgo era
delicioso, e concluí por estas palavras: "Quando descer venha almoçar
comigo; falaremos de lá e de cá".
17 de agosto
Fidélia chegou, Tristão e a madrinha chegaram, tudo chegou; eu mesmo
cheguei a mim mesmo - por outras palavras, estou reconciliado com as minhas
cãs. Os olhos que pus na viúva Noronha foram de admiração pura, sem a mínima
intenção de outra espécie, como nos primeiros dias deste ano. Verdade é que já
então citava eu o verso de
Shelley, mas uma cousa é citar versos, outra é crer neles. Eu li há
pouco um soneto verdadeiramente pio de um rapaz sem religião, mas necessitado
de agradar a um tio religioso e abastado. Pois ainda que eu não desse então
toda a fé ao poeta inglês, dou-lhe agora, e aqui a dou de novo para mim. A
admiração basta.
19 de agosto
Tristão veio almoçar comigo. A primeira parte do almoço foi a glosa da
carta que ele me escreveu. Contou-me que já em criança tinha ido com a madrinha
aNova Friburgo algumas
vezes, parece-lhe que três; reconheceu a cidade agora e gostou muito dela. De
D. Carmo, fala entusiasmado; diz que a afeição, o carinho, a bondade, tudo faz
dela uma criatura particular e rara, por ser tudo de espécie também rara e
particular. Referiu-me anedotas antigas, dedicações grandes. Depois confessou
que as impressões da nossa terra fazem reviver os seus primeiros tempos, a
infância e a adolescência. O fim do almoço foi com o naturalizado e o político.
A política parece ser grande necessidade para este moço. Estendeu-se bastante
sobre a marcha das cousas públicas em Portugal e
naEspanha;
confiou-me as suas ideias e ambições de homem de Estado. Não disse formalmente
estas três palavras últimas, mas todas as que empregou vinham a dar nelas.
Enfim, ainda que pareça algo excessivo, não perde o interesse e fala com graça.
Antes de sair, tornou a dizer do Rio de
Janeiro, e também falou do Recife e
da Bahia;
mas o Rio foi
o principal assunto.
- A gente não esquece nunca a terra em que nasceu - concluiu ele com um
suspiro.
Talvez o intuito fosse compensar a naturalização que adotou - um modo de
se dizer ainda brasileiro. Eu fui ao diante dele, afirmando que a adoção de uma
nacionalidade é ato político, e muita vez pode ser dever humano, que não faz
perder o sentimento de origem, nem a memória do berço. Usei tais palavras que o
encantaram, se não foi talvez o tom que lhes dei, e um sorriso meu particular.
Ou foi tudo. A verdade é que o vi aprovar de cabeça repetidas vezes, e o aperto
de mão, à despedida, foi longo e fortíssimo.
Até aqui um pouco de fel. Agora um pouco de justiça.
A idade, a companhia dos pais, que lá vivem, a prática dos rapazes do
curso médico, a mesma língua, os mesmos costumes, tudo explica bem a adoção da
nova pátria. Acrescento-lhe a carreira política, a visão do poder, o clamor da
fama, as primeiras provas de uma página da história, lidas já de longe por ele,
e acho natural e fácil que Tristão trocasse uma terra por outra. Ponho-lhe,
enfim, um coração bom, e compreendo as saudades que a terra de cá lhe desperta,
sem quebra dos novos vínculos travados.
21 de agosto
Anteontem fui deixar um bilhete de visita a Fidélia; ontem, a convite do
tio, que me encontrou na rua, fui tomar chá com ambos.
Naturalmente conversamos do defunto. Fidélia narrou tudo o que viu e
sentiu nos últimos dias do pai, e foi muito. Não falou da separação trazida
pelo casamento, era assunto velho e acabado. A culpa, se houve então culpa, foi
de ambos, ela por amar a outro, ele por querer mal ao escolhido. Eu é que digo
isso, não ela, que em sua tristeza de filha conserva a de viúva, e se houvesse
de escolher outra vez entre o pai e o marido, iria para o marido. Também falou
da fazenda e dos libertos, mas vendo que o assunto era já demasiado pessoal,
mudou de conversa, e cuidamos da cidade e das ocorrências do dia.
Pouco depois chegaram D. Cesária e o marido, o doutor Faria, que vinham
também visitá-la. A expansão com que D. Cesária falou a Fidélia e lhe deu o
beijo da entrada compensou, a meu ver, o dente que lhe meteu há dias em casa do
corretor Miranda. Daquela vez, apesar da graça com que falou, não gostei de a
ver morder a viúva; agora tudo está pago. Repito o que lá digo atrás: esta
senhora é muito mais graciosa que o marido. Nem precisa muito; ele, o mal que
diz dos outros di-lo mal, ela é sempre interessante.
D. Cesária pagou tudo. Não é que as palavras que empregou ontem deem
muito de si, como louvor e amizade, mas a expressão dos olhos, o ar admirativo
e aprovador, um sorriso teimoso, quase constante, tudo isso valia por um
capital de afeto. Papel-moeda também é dinheiro. Com ele comprei esta tinta e
esta pena, o charuto que estou fumando e o almoço que começo a digerir. As duas
senhoras não sofrem comparação entre si e, para conversar, D. Cesária basta e
sobra. Eu conheci na vida algumas dessas pessoas capazes de dar interesse a um
tédio e movimento a um defunto; enchem tudo consigo. Fidélia parece ter-lhe
simpatia e ouvi-la com prazer. A noite foi boa.
Ia-me esquecendo uma cousa. Fidélia mandou encaixilhar juntas as
fotografias do pai e do marido, e pô-las na sala. Não o fez nunca em vida do barão
para respeitar os sentimentos deste; agora que a morte os reconciliou, quer
reconciliá-los em efígie. Foi ela mesma que me deu esta explicação, quando eu
olhava para eles. Não me admira a delicadeza de outrora, nem a resolução de
agora; tudo responde à mesma harmonia moral da pessoa.
Quando eu disse isto cá fora ao casal Faria (saímos juntos), o marido
torceu o nariz. Não lhe vi o gesto, mas ele proferiu uma palavra que implica o
gesto; foi esta: "Afetação!" Quis replicar-lhe que não podia havê-la
em ato tão íntimo e particular, mas a tempo encolhi a língua. D. Cesária não
aprovou nem reprovou o dito; ponderou apenas que o gás estava
muito escuro. Notei para mim que estava claríssimo, e que
provavelmente ela não achara mais pronto desvio à conversação. Faria aproveitou
o reparo da esposa para dizer o mal que pensa da companhia do gás e do governo,
e chamou ladrão ao fiscal. Eram onze horas.
*****
21 de agosto, 5 horas da tarde
Não quero acabar o dia de hoje sem escrever que tenho os olhos cansados,
acaso doentes, e não sei se continuarei este diário de fatos, impressões e
ideias. Talvez seja melhor parar. Velhice quer descanso. Bastam já as cartas
que escrevo em resposta e outras mais, e ainda há poucos dias um trabalho que
me encomendaram da Secretaria de
Estrangeiros - felizmente acabado.
24 de agosto
Qual! Não posso interromper o Memorial; aqui me tenho outra
vez com a pena na mão. Em verdade, dá certo gosto deitar ao papel cousas que
querem sair da cabeça, por via da memória ou da reflexão. Venhamos novamente à
notação dos dias.
Desta vez o que me põe a pena na mão é a sombra da
sombra de uma lágrima...
Creio tê-la visto anteontem (22) na pálpebra de Fidélia, referindo-me eu
à dissidência do pai e do marido. Não quisera agora lembrar-me dela, nem tê-la
visto ou sequer suspeitado. Não gosto de lágrimas, ainda em olhos de mulheres,
sejam ou não bonitas; são confissões de fraqueza, e eu nasci com tédio aos
fracos. Ao cabo, as mulheres são menos fracas que os homens - ou mais
pacientes, mais capazes de sofrer a dor e a adversidade... Aí está; tinha
resolvido não escrever mais, e lá vai uma página com a sombra da sombra de um
assunto.
Também, se foi verdadeiramente lágrima, foi tão passageira que, quando
dei por ela, já não existia. Tudo é fugaz
neste mundo. Se eu não tivesse os olhos adoentados dava-me a compor
outro Eclesiastes,
à moderna, posto nada deva haver moderno depois daquele livro. Já dizia ele que nada era novo
debaixo do sol, e se o não era então, não o foi nem será nunca mais.
Tudo é assim contraditório e vago também.
27 de agosto
A alegria do casal Aguiar é cousa manifesta. Marido e mulher andam a
inventar ocasiões e maneiras de viver com os dous e com alguns amigos, entre os
quais parece que me contam. Jantam, passeiam, e se não projetam bailes é porque
os não amam de si mesmos, mas se Fidélia e Tristão os quisessem, estou que eles
os dariam. A verdade, porém, é que os dous hóspedes não chegaram a tal ponto,
mormente Fidélia, que se contenta de conversar e sorrir; não vai a teatros, nem
a festas públicas.
Os passeios são recatados pela hora e pelos lugares. Ou vão as duas sós
ou, se eles vão também, trocam-se às vezes, dando Aguiar o braço a Fidélia, e
D. Carmo aceitando o de Tristão. Assim os encontrei há dias na rua de
Ipiranga, eram cinco horas da tarde. Os dous velhos pareciam ter
certo orgulho na felicidade. Ela dizia com os olhos e um riso bom que lhe fazia
luzir a pontinha dos dentes toda a glória daquele filho que o não era, aquele
filho morto e redivivo, e o rapaz era atenção e gosto também. Quanto ao velho
não ostentava menos a sua delícia. Fidélia é que não publicava nada; sorria, é
certo, mas pouco e cabisbaixa. E lá foram andando, sem darem por mim, que vinha
pela calçada oposta.
31 de agosto
Como eu ainda gosto de música! A noite passada, em casa do Aguiar,
éramos algumas pessoas... Treze! Só agora, ao contar de memória os presentes,
vejo que éramos treze; ninguém deu então por este número, nem na sala, nem à
mesa do chá de família. Conversamos de cousas várias, até que Tristão tocou um
pouco de Mozart,
ao piano, a pedido da madrinha.
A execução veio porque falamos também de música, assunto em que a viúva
acompanhou o recém-chegado com tal gosto e discrição, que ele acabou
pedindo-lhe que tocasse também. Fidélia recusou modestamente, ele insistiu, D.
Carmo reforçou o pedido do afilhado, e assim o marido; Fidélia acabou cedendo,
e tocou um pequeno trecho, uma reminiscência de Schumann.
Todos gostamos muito. Tristão voltou ainda uma vez ao piano, e pareceram
apreciar os talentos um do outro. Eu saí encantado de ambos. A música veio
comigo, não querendo que eu dormisse. Cheguei cedo a casa, onze horas, e só
perto de uma comecei a conciliar o sono; todo o tempo da rua, da casa e da cama
foi consumido em repetir trechos e trechos que ouvira na minha vida.
A música foi sempre uma das minhas inclinações, e, se não fosse temer o
poético e acaso o patético, diria que é hoje uma das saudades. Se a tivesse
aprendido, tocaria agora ou comporia, quem sabe? Não me quis dar a ela, por
causa do ofício diplomático, e foi um erro. A diplomacia que exerci em minha
vida era antes função decorativa que outra cousa; não fiz tratados de comércio
nem de limites, não celebrei alianças de guerra; podia acomodar-me às melodias
de sala ou de gabinete. Agora vivo do que ouço aos outros.
Há dous ou três meses ouvi dizer a Fidélia que nunca mais tocaria, tendo
desde muito suspendido o exercício da música. Repliquei-lhe então que um dia, a
sós consigo, tocaria para recordar, e a recordação traria o exercício outra
vez. Ontem bastaram as instâncias da gente Aguiar para mover uma vontade já disposta,
ao que parece. O exemplo de Tristão ajudou-a a sair do silêncio. Repito que saí
de lá encantado de ambos.
Quem sabe se a esta hora (dez e meia da manhã) não estará ela em casa,
com espanto da família e da vizinhança, diante do piano aberto, a começar
alguma cousa que não toca há muito?
- Não é possível!
- Nhanhã Fidélia!
- A viúva Noronha!
- Há de ser alguma amiga.
E as mãos dela irão falando, pensando, vivendo aquelas notas que a
memória humana guarda impressas. Provavelmente tocará como ontem, sem música,
de cor, na ponta dos dedos...
*****
Seis horas da tarde
Antes de ir para a mesa, escrevo a confirmação do que conjeturei de
manhã; Fidélia efetivamente acordou os ecos da casa e da rua. Contou-mo há
pouco o próprio desembargador Campos. A diferença é que não foi às dez horas e
meia, mas às sete. Campos estava ainda na cama, quando ouviu os primeiros
acordes de uma composição conhecida, parece que italiana. Não chegou a crer que
fosse ela, mas não podia ser outra pessoa. Um criado, chamado por ele, veio
dizer-lhe que sim, que era ela mesma. Tocou algum tempo. Quando ele entrou na
sala, tinha acabado, mas estava ainda ao piano, ante um folheto de músicas
aberto, a soletrar para si.
- Que é isto? - perguntou-lhe.
- Ouviu tocar? - disse ela fazendo rodar o banco.
- Ouvi.
- Creio que desaprendi alguma cousa; sinto os dedos um pouco tolhidos,
já os senti assim ontem; a composição é que me não esqueceu.
- Mas que ressurreição é esta?
- Cousas de defunta - respondeu ela querendo sorrir.
Posto não seja grande apreciador de música, o desembargador parece
satisfeito daquela ressurreição, como lhe chama. Tudo é viver com mais ou menos
barulho, disse ele. Confessou-me que a tristeza da sobrinha o aflige muita vez,
e a não levá-la a bailes ou teatros, contentava-se de a ver tocar em casa, e
até cantar se quisesse; Fidélia também sabe cantar, tem muita arte e linda voz.
Mas até agora não queria uma cousa nem outra.
Não é que não encha a casa consigo mesma, sem música; a música, porém,
era uma das suas ocupações de outrora, e a abstenção data da viuvez.
Quis ponderar ao desembargador que o exercício da música podia
conciliar-se muito bem com o estado, uma vez que a arte é também língua, mas
tudo isso me passou rápido pela cabeça. Era acaso poético para um magistrado,
sem contar que podia ser indiscreto também. Contentei-me de aceitar o convite
que ele me fez de ir ouvi-la, em casa dele, hoje, amanhã, depois, quando
queira.
- Uma destas noites - concordei.
Por enquanto, vou jantar. Creio que não saio mais hoje; mas que hei de
fazer com estes pobres olhos? Ler é piorá-los; ah! Se eu soubesse música!
Pegava do violino, trancava bem as portas para não ser ouvido pela vizinhança,
e deixava-me ir atrás do arco. Talvez saia a passeio...
2 de setembro
Aniversário da batalha de
Sedan. Talvez vá à casa do desembargador pedir a Fidélia que, em
comemoração da vitória prussiana, nos dê um pedaço de Wagner.
3 de setembro
Nem Wagner,
nem outro. Tristão estava lá e deu-nos um trecho de Tannhäuser,
mas a viúva Noronha recusou o pedido. Supondo que fosse luto pela lembrança da
derrota francesa, pedi-lhe um autor francês qualquer, antigo ou moderno, posto
que a arte - disse-lhe com alguma afetação - naturaliza a todos na mesma pátria
superior. Sorriu e não tocou; tinha um pouco de dor de cabeça. Aguiar e Carmo,
que lá estavam também, não me acompanharam no pedido, como "se lhes doesse
a cabeça da amiga". Outra preciosidade de estilo, esta renovada de Sévigné.
Emenda essa língua, velho diplomata.
A razão verdadeira da recusa pode não ser dor de cabeça nem de outra
qualquer parte. Quer-me parecer que Fidélia vai um tanto comigo, e tocaria para
si, caso estivesse só. Naquela outra noite, em casa do Aguiar, deixou-se
arrastar e tocar para as doze pessoas que lá estavam, levada do sobressalto, de
um acordar do gosto antigo; agora abana a cabeça, não quer divertir os outros.
Tocará para o tio, de manhã, e para si durante as horas de desembargo. Quando
muito satisfará os dous pais postiços, alguma vez. Sinal de que não tinha dor
de cabeça é que ouviu a Tristão com evidente prazer, e aplaudiu sorrindo. Não
digo que a música não tenha o dom de fazer esquecer um mal físico, mas desconfio
que não foi assim neste caso.
Os dous conversaram de Wagner e
de outros autores, com interesse, e provavelmente com acerto. Eu falei também o
meu pouco; depois atendi ao que me disse Aguiar, acerca de Tristão.
- Parece que vem liquidar também alguns negócios do pai; soube hoje por
ele mesmo. Deus queira que não acabe tão cedo.
- Deus também ama a chicana, quem sabe?
- Não são negócios do foro; e se algum chegar lá, provavelmente ele
deixa procurador aqui. Sabe já que ele vai entrar na Câmara?
- Sei; disse-me que aceitou de alguns chefes de Lisboa elegê-lo
deputado.
- Carmo, que queria prendê-lo por um ano ou mais, ficou aborrecida e
triste, e eu, com ela. Trocamos os nossos aborrecimentos, quero dizer que os
somamos, e ficamos com o dobro cada um...
Gostei desta palavra de Aguiar, e decorei-a bem para me não esquecer e
escrevê-la aqui. Aquele gerente de banco não perdeu o vício poético. É bom
homem; creio que já o escrevi alguma vez, mas lá vai ainda agora. Não perco
nada em repeti-lo.
Falávamos a um canto da sala, onde Campos e Tristão foram ter conosco,
deixando as duas damas entregues uma à outra. E eu cá de longe fiquei a
mirá-las, encantadoras naquela expressão de si mesmas. A harmonia dos cabelos
brancos de uma e dos cabelos pretos de outra, as vozes que trocavam baixo
sorrindo, com os olhos brandos e amigos, tudo isso me faria perguntar a mim
mesmo, por que não eram realmente mãe e filha, esta casada com algum rapaz que
a merecesse, e aquela casada ou viúva, não importa; consolar-se-ia do marido
perdido com a filha eterna. Toda filha moça é eterna para as mães envelhecidas.
Mas ainda uma vez notei que pareciam antes irmãs, tal a arte de D. Carmo em se
fazer moça com as moças. A matéria da conversação não sei qual fosse, nem vale
a pena cogitá-la; não daria mais interesse ao grupo. De uma vez, demorando-se
Fidélia em concertar a posição do broche, D. Carmo substituiu-lhe os dedos
pelos seus, e concertou-lha de todo.
4 de setembro
Relendo o dia de ontem fiz comigo uma reflexão que escrevo aqui para me
lembrar mais tarde. Quem sabe se aquela afeição de D. Carmo, tão meticulosa e
tão serviçal, não acabará fazendo dano à bela Fidélia? A carreira desta, apesar
de viúva, é o casamento; está na idade de casar, e pode aparecer alguém que
realmente a queira por esposa. Não falo de mim, Deus meu, que apenas tive
veleidades sexagenárias; digo alguém de verdade, pessoa que possa e deva amar
como a dona merece. Ela, entregue a si mesma, poderia acabar de receber o
noivo, e iriam ambos para o altar; mas entregue a D. Carmo, amigas uma da
outra, não dará pelo pretendente, e lá se vai embora um destino. Em vez de mãe
de família, ficará viúva solitária, porque a amiga velha há de morrer, e a
amiga moça acabará de morrer um dia, depois de muitos dias...
A reflexão é verdadeira, por mais que se lhe possa dizer em contrário.
Não afirmo que as cousas se passem exatamente assim, e que os três - os quatro,
contando o velho Aguiar -, os cinco e seis, juntando o tio e o primo - não
façam com o noivo adventício uma só família de afeição e de sangue; mas a
reflexão é verdadeira. A afeição, o costume, o feitiço crescente, e por fim o
tempo, cúmplice de atentados, negarão a bela viúva a qualquer namorado trazido
pela natureza e pela sociedade. Assim chegará ela aos trinta anos, depois aos
trinta e cinco e quarenta. Quando a esposa Aguiar morrer não se contentará de a
chorar, lembrar-se-á dela, e as saudades irão crescendo com o tempo. O
pretendente terá desaparecido ou passado a outras alegrias.
Reli também este dia de hoje, e temo haver-lhe posto (principalmente no
fim) alguma nota poética ou romanesca, mas não há disso; antes é tudo prosa,
como a realidade possível. Esqueceu-me trazer um elemento para a viuvez definitiva
da moça, a própria lembrança do marido. Daqui a cinco anos, ela mandará
transferir os ossos do pai para a cova do marido, e os conciliará na terra uma
vez que a eternidade os conciliou já. Aqui e ali toda a política se resume em
viverem uns com outros, no mesmo que eram, e será para nunca mais.
8 de setembro
Os dous filhos postiços do casal Aguiar não têm ciúmes um do outro, não
se sentem diminuídos pela afeição que recebem dos velhos. Ao contrário, parecem
achar que a porção de cada um cresce com a que o outro recebe também. Eis aí
uma boa divisão de amigos; há casos em que os filhos de verdade não se mostram
tão cordatos.
Mana Rita, a quem comuniquei esta impressão, acha também que é assim.
Acrescenta, porém, uma reflexão mais fina que essa, e não tenho dúvida em a
escrever aqui ao pé da minha, tanto mais que lhe repliquei com outra, não menos
fina que a sua. Vá este elogio a nós ambos. Sempre há de haver quem nos desgabe
um pouco, e aí fica já a compensação. Nem custa muito elogiar-se a gente a si
mesma. Eis o que me disse a mana:
- Esse sentimento há de custar pouco ao Tristão, estando aqui de
passagem.
Ao que eu repliquei:
- Também não lhe custará muito a Fidélia, sabendo que ele se vai embora
daqui a pouco.
Escritas as palavras de ambos nós, entro a duvidar da finura dela e
minha. Por mais rápida que fosse a passagem do rapaz, ele gostaria de se ver
exclusivamente querido, e ela também a si. Penso outra vez que a qualidade do
afeto filial é que os faz assim generosos e abertos. Repito o que lá disse
acima: casos há em que não vivem com tanto acordo filhos verdadeiros.
Rita deu-me outras notícias da casa Aguiar, onde não piso há mais de uma
semana, creio. Todas confirmam a comunhão de boa vontade da parte de moços e
velhos. Os quatro passam os dias em conversa, e ontem a viúva Noronha tocou
piano, um pouquinho, é verdade, mas tocou. Parece que já uma vez jogaram
cartas. Rita disse mais:
- Fidélia, que desde que saiu do colégio nunca mais fez trabalhos de
agulha, começa agora a imitar a amiga, e já ontem trabalharam juntas. Quando eu
lá cheguei às duas horas da tarde e dei com elas, defronte uma da outra,
movendo agulhas, você não imagina a alegria com que me receberam; D. Carmo
mostrava um pouco de orgulho também, ou cousa parecida. Faziam um par de
sapatinhos de criança. O trabalho de Fidélia não tinha a perfeição do da outra,
e não estava tão adiantado, mas também o de D. Carmo podia ir mais depressa;
talvez fosse intenção dela não deixar a moça muito atrás, e por isso iria
demorando os dedos. Quis rir, perguntando a qual delas destinavam tais sapatos,
mas não tive tempo; Fidélia disse-me que eram para o filho de uma criada de D.
Carmo que fora dar à luz em casa do marido. D. Carmo ia começar o crochet quando
Fidélia lhe apareceu, e quis acompanhá-la. Consentiu para não sair trabalho de
velha.
O mais que a mana me disse não vai aqui para não encher papel nem tempo,
mas era interessante. Vai só isto, que jantou lá e Fidélia também, a convite de
D. Carmo. O velho Aguiar e Tristão tinham saído a passeio, depois do almoço,
mas voltaram cedo, às quatro horas. Não viram a parada do dia
de ontem (sete), apenas viram passar um batalhão, que não deixou
impressão no moço. Todos os batalhões se parecem, disse ele. O hino nacional,
sim, é que acordou nele algumas saudades do tempo de criança e de rapaz; assim
o confessou, e daí nasceu a conversação musical que levou Fidélia ao piano. A
viúva não tocou mais de quatro ou cinco minutos, e fê-lo a pedido de Tristão,
que lhe citou um autor; Rita não se lembra que autor foi, mas achou bonita a
música. Também se falou em cousas da Europa,
e os dous ajustaram bem os modos de ver.
Ouvi tudo isso em Andaraí,
onde fui jantar hoje com Rita. Propus-lhe vir comigo e irmos ao Flamengo,
a mana recusou; estava com o sono atrasado, e queria dormir. Voltei só e fui à
casa Aguiar, onde os quatro e o desembargador conversaram de festas religiosas,
a propósito do dia santo de
hoje. Ainda uma vez os dous deram impressões europeias, e realmente
ajustaram as reminiscências. As minhas, quando as pediram, ficaram naquele
acordo de cabeça, que é útil, quando um assunto cansa ou aborrece, como este a
mim.
Quando o tio e a sobrinha se foram, eu fiquei ainda um quarto de hora
com a gente Aguiar. O resto amanhã; também eu estou com sono.
9 de setembro
O resto é a noticia de ter chegado Osório, o advogado do Banco do Sul,
que foi há tempos ao Recife,
onde o pai estava doente e morreu.
- Voltou triste, e o luto ainda o faz mais triste - disse Aguiar.
- Será só a morte do pai? - perguntei.
- Que mais pode ser?
- Não me disseram, ou eu adivinhei que ele andava meio apaixonado por D.
Fidélia...?
- Andava, sim, e talvez mais que meio - explicou Aguiar -, mas já lá vai
naturalmente.
- Em todo caso não se lhe declarou?
- Com o gesto, é possível; ela tacitamente recusou, e foi pena; ambos se
merecem.
Aguiar louvou as qualidades profissionais do moço, a educação e as
virtudes. Acreditei tudo, como era do meu dever, e aliás não tinha razão para
duvidar de nada. D. Carmo confirmou as palavras do marido, sem afirmar que era
pena não se terem casado. Calou esse ponto, e foi mais discreta que ele. Pode
ser que nele falasse também o gerente do banco. Tristão durante esse tempo
folheava um livro de gravuras.
Digo que eram gravuras, porque me fui despedir dele, que se levantou
logo, com grande cortesia; mas de longe pensei que fosse o álbum de retratos.
Não era; o álbum estava ao pé, aberto justamente na página em que figuram as
duas fotografias de Carmo e do marido. Tristão deixou também aberto o livro das
gravuras e veio comigo à porta, acompanhando Aguiar, e ali me despedi de ambos.
*****
9 de setembro, à tarde
Parece que a gente Aguiar me vai pegando o gosto de filhos, ou a saudade
deles, que é expressão mais engraçada. Vindo agora pela rua da Glória,
dei com sete crianças, meninos e meninas, de vário tamanho, que iam em linha,
presas pelas mãos. A idade, o riso e a viveza chamaram-me a atenção, e eu parei
na calçada, a fitá-las. Eram tão graciosas todas, e pareciam tão amigas que
entrei a rir de gosto. Nisto ficaria a narração, caso chegasse a escrevê-la, se
não fosse o dito de uma delas, uma menina, que me viu rir parado, e disse às
suas companheiras:
- Olha aquele moço que está rindo para nós.
Esta palavra me mostrou o que são olhos de crianças. A mim, com estes
bigodes brancos e cabelos grisalhos, chamaram-me moço! Provavelmente dão este
nome à estatura da pessoa, sem lhe pedir certidão de idade.
Deixei andar as crianças e vim fazendo comigo aquela reflexão. Elas
foram saltando, parando, puxando-se à direita e à esquerda, rompendo alguma vez
a linha e recosendo-a logo. Não sei onde se dispersaram; sei que daí a dez
minutos não vi nenhuma delas, mas outras, sós ou em grupos de duas. Algumas
destas carregavam trouxas ou cestas, que lhes pesavam à cabeça ou às costas,
começando a trabalhar, ao tempo em que as outras não acabavam ainda de rir.
Dar-se-á que a não ter carregado nada na meninice devo eu o aspecto de
"moço" que as primeiras me acharam agora? Não, não foi isso. A idade
dá o mesmo aspecto às cousas; a infância vê naturalmente verde. Também estas,
se eu risse, achariam que "aquele moço ria para elas", mas eu ia
sério, pensando, acaso doendo-me de as sentir cansadas; elas, não vendo que os
meus cabelos brancos deviam ter-lhes o aspecto de pretos, não diziam cousa
nenhuma, foram andando e eu também.
Ao chegar à porta de casa dei com o meu criado José, que disse estar ali
à minha espera.
- Para quê?
- Para nada; vim esperar V.Exª cá embaixo.
Era mentira; veio distrair as pernas à rua, ou ver passar criadas
vizinhas, também necessitadas de distração; mas, como ele é hábil, engenhoso,
cortês, grave, amigo de seu dever - todos os talentos e virtudes -, preferiu
mentir nobremente a confessar a verdade. Eu nobremente lho perdoei e fui dormir
antes de jantar.
Dormi pouco, uns vinte minutos, apenas o bastante para sonhar que todas
as crianças deste mundo, com carga ou sem ela, faziam um grande círculo em
volta de mim, e dançavam uma dança tão alegre que quase estourei de riso. Todas
falavam "deste moço que ria tanto". Acordei com fome, lavei-me,
vesti-me e vim primeiro escrever isto. Agora vou jantar. Depois, irei
provavelmente ao Flamengo.
*****
9 de setembro, à noite
Fui ao Flamengo.
A viúva não estava lá; estava o Osório, e não o achei triste, como Aguiar havia
dito, também não estava alegre; falava pouco. Tristão, que lhe fora apresentado
hoje, falava mais que ele, sem falar muito. Noite sem interesse. Voltei cedo e
vou dormir.
12 de setembro
Quando cheguei hoje à cidade,
eram duas horas, e ia a sair do bonde, chegou-se a ele a bela Fidélia, com o
seu gracioso e austero meio-luto de viúva. Vinha de compras, naturalmente.
Cumprimentamo-nos, dei-lhe a mão para subir. Perguntou-me pela mana, eu, pelo
tio, ambos, por nós, e ainda houve tempo de trocar esta meia dúzia de palavras.
Ela:
- Ainda agora?
- A minha preguiça de aposentado não me permitiu sair mais cedo - disse
eu rindo, e afastei-me.
O bonde partiu. Na esquina estava não menos que o Dr. Osório sem olhos,
porque ela os levava arrastados no bonde em que ia; foi o que concluí da
cegueira com que não me viu passar por ele... Ai, requinte de estilo!
Entrei nesta dúvida - se teriam estado juntos na rua ou na loja a que
ela veio, ou no banco, ou no inferno, que também é lugar de namorados, é certo
que de namorados viciosos, del mal
perverso. Achei que não, e compreendi que ele, se acaso a
cumprimentou na rua, não ousou falar-lhe, apenas a acompanhou de longe, até que
a viu meter-se no bonde e partir.
Também achei outra cousa; é que a paixão antiga e recusada não estava
morta nele, ou revivia com a vista nova da pessoa. Não era por ser agora a dona
rica, já antes era ela herdeira única, e vivia de si mesma. Não, ele é bom, e o
próprio Aguiar afirma que os dous se merecem.
Ia nessas conjeturas, em direção à Escola
Politécnica, e vi-o passar por mim, cabisbaixo, não sei se triste ou
alegre; não pude ver-lhe a cara. Mas parece que a tristeza é que é cabisbaixa,
a alegria distribui os olhos felizes à direita e à esquerda; alguma vez ao céu
também. É suposição minha, e pode não ser verdade. A verdade certa é que, às
duas horas da tarde, aquele advogado andava atrás das moças, em vez de estar no
foro; ou mau advogado, ou feliz namorado.
14 de setembro
Nem uma cousa nem outra. Refiro-me ao que escrevi anteontem do Osório,
que não é namorado feliz, pelo que me disse Aguiar hoje, nem mau advogado, pelo
que li nos jornais. Li que venceu uma demanda do Banco do Sul,
e Aguiar não lhe regateou louvores ao zelo com que a pleiteou antes do embarque
e depois do desembarque. Eis aí um homem que sabe casar o zelo e a tristeza, e
bem pode ser isto um símbolo, se ele é o zelo, e Fidélia, a tristeza. Talvez
acabem casando. Mas ainda depois da recusa? Tudo é
possível debaixo do sol - e a mesma cousa sucederá acima dele -, Deus sabe.
18 de setembro
Venho da gente Aguiar, e não me quero ir deitar sem escrever primeiro o
que lá se passou. Cheguei cedo, estavam sós os dous velhos e receberam-me
familiarmente.
- Venha o terceiro velho - disse Aguiar -, venha fazer companhia aos
dous que aqui ficaram abandonados.
Esta palavra, que podia ser de queixa, foi dita rindo, e percebi pelo
tom que era alegre. Foi-me dita quase à porta da sala, onde ele foi ter comigo,
ficando ela em uma das duas cadeiras de balanço, unidas e trocadas, em forma de
conversadeira, onde costumavam passar as horas solitárias. Respondi que trazia
a minha velhice para somar às duas e formar com elas uma só e verde mocidade,
das que já não há na terra. Sobre este tema gasto e vulgar disseram também algo
de riso, e tais foram os primeiros minutos.
- Talvez não nos encontrasse, se eu não estivesse doente de um joelho -
disse D. Carmo.
- Doente?
- Dói-me um pouco este joelho, e o lugar é melindroso para andar.
Tristão foi sozinho à casa do desembargador, aonde vão hoje alguns amigos do
foro. Aguiar também queria ir, mas Tristão disse-lhe que era melhor ficar; ele
se incumbiria de dar lá todas as desculpas, e foi sozinho.
- Quis que eu ficasse fazendo companhia à madrinha - explicou Aguiar -.
Se eu teimo em ir ele era capaz de ficar para a não deixar sozinha.
- Pode ser - disse D. Carmo com os olhos.
Só com os olhos. De boca disse logo depois que talvez ele fosse também,
à espera de ver lá moças. É provável que os velhos amigos levem as filhas.
- Mas então é alguma festa? - perguntei.
- Não, conselheiro - acudiu Aguiar -; os amigos são uns três ou quatro
que ontem ajustaram entre si lá ir hoje, e avisaram disso o desembargador. Foi
o que Fidélia nos contou ontem mesmo, aqui em casa.
E D. Carmo continuou o que ia dizendo antes:
- Alguns levarão as filhas, e é natural a um rapaz o desejo de ver
moças. Tristão acha que as suas patrícias são muito graciosas; mais de uma vez
o tem dito. Também se não houver lá nenhuma é provável que acabe a visita cedo
e torne para casa. Tristão é cada vez mais amigo nosso.
Conhecia este outro tema, e acenei de cabeça que sim. Aguiar disse a
mesma cousa. O que ele não disse, nem eu esperei, foi a nota melancólica que a
mulher trouxe à conversação, e que eu cuidei de atenuar, como pude.
- Os dias vão correndo - disse ela -, e os últimos correrão mais
depressa; brevemente o nosso Tristão volta para Lisboa e
nunca mais virá cá, ou só virá para ver as nossas covas.
- Ora, D. Carmo! Deixe-se de ideias tristes.
- Carmo tem razão - interveio o marido -; o tempo acabará depressa para
que ele se vá, e não ficará às nossas ordens para que fiquemos eternamente na
vida.
- Todos nós lá vamos - disse eu -. A morte é outro desembargador, conta
muitos amigos que lá passam as noites, e os que têm filhas levam as filhas.
Isto é certo, mas o melhor é não pensar nela.
- Não é nela, é nele - emendou D. Carmo -; falo do nosso Tristão, que se
irá brevemente.
Sorri e disse:
- Ele se irá, creio, mas ficará ela.
Acentuei bem os pronomes, e não seria preciso; Carmo entendeu-me logo e
bem. O ar de riso que se lhe espraiou do rosto mostrou que entendera a alusão à
bela Fidélia. Era uma consolação grande. Não obstante, a consolação só cabe ao
que dói, e a dor da perda de um já não seria menor que o prazer da conservação
da outra. Logo vi essas duas expressões no rosto da boa senhora, combinadas em
uma só e única, espécie de meio luto. Aguiar também sentiria como a mulher, mas
o ofício de banqueiro obriga e acostuma a dissimular. E talvez ainda não
falassem entre si do próximo regresso do Tristão; felicidade rima com
eternidade, e estes eram felizes.
Eram felizes, e foi o marido que primeiro arrolou as qualidades novas de
Tristão. A mulher deixou-se ir no mesmo serviço, e eu tive de os ouvir com
aquela complacência, que é uma qualidade minha, e não das novas. Quase que a
trouxe da escola, se não foi do berço. Contava minha mãe que eu raro chorava
por mama; apenas fazia uma cara feia e implorativa. Na escola não briguei com
ninguém, ouvia o mestre, ouvia os companheiros e, se alguma vez estes eram
extremados e discutiam, eu fazia da minha alma um compasso, que abria as pontas
aos dous extremos. Eles acabavam esmurrando-se e amando-me.
Não quero elogiar-me... Onde estava eu? Ah! No ponto em que os dous
velhos diziam das qualidades do moço. Não mentiam; quando muito, podiam
exagerar alguma, mas as que citavam deviam ser verdadeiras, bom, carinhoso,
atento, justo, puro de sentimentos, índole pacífica, maneiras educadas, capaz
de sacrifícios, se fosse necessário. Não o tinham achado mau nem falho, quando
ele chegou; agora, porém, as qualidades antigas estavam apuradas, e algumas
novas apareciam. Ainda que eu discordasse deles não diria nada para os não
aborrecer, mas que sabia eu que pudesse contrariar essa opinião de amigos?
Nada; concordei com ambos.
D. Carmo entendeu acaso que o assunto podia ser enfadonho a estranhos, e
trocou as mãos à conversa. Não totalmente, é verdade; falou da casa do
desembargador Campos e do que iria por lá. Eu (habilmente, confesso) querendo
saber o estado do coração de Osório, perguntei se ele não estaria lá também,
ele, que também é do foro. Aguiar disse logo que podia ser que sim; conforme.
Sobre isto falamos um pouco, e as qualidades do advogado foram ainda honradas,
mas não eram tantas, nem tamanhas como as de Tristão. Falavam com simpatia,
Aguiar mais que D. Carmo; eram relações propriamente do banco e do foro.
- Mas não haverá ainda nele alguma faísca antiga? - perguntei.
- Pode ser, e será mais uma razão para fugir - concluiu ele.
Não quis dizer o que vira na rua, e aliás a conclusão dele não era
errada. D. Carmo escutava agora sem falar, embora com interesse. A discrição
daquela senhora é das mais completas que tenho achado na vida. Não quis ela
entrar em tal assunto, e o marido não tardou muito que o deixasse. Eu não
retive a um nem a outro.
Assim é o destino dos namorados sem ventura; os próprios amigos, como
Aguiar parece que é de Osório, tratam logo de outra cousa. Eles que se fiquem
consigo. Nós passamos a tratar de algumas notícias de sociedade e das últimas
notícias novelescas de Paris. Neste capítulo D. Carmo sabe mais que
eu, e muito mais que o marido, que não sabe nada; mas Aguiar acompanhou a
conversação como se soubesse alguma cousa. Ele compra-lhe os livros, que ela lê
e resume para ele ouvir. Como a memória dele é grande, cita também as narrações
escritas, com a diferença que ela, tendo impressão direta, a análise que faz é
mais viva e interessante. Ouvi-lhe dizer de alguns nomes contemporâneos muita
cousa fina e própria. É claro que, se o marido escrevesse também, achá-lo-ia
melhor que ninguém, porque ela o ama deveras, tanto ou mais que no primeiro
dia; é a impressão que ainda hoje me deixou.
Eu, para lhes ser agradável - e um pouco a mim mesmo, porque os queria
gozar também -, voltei ao assunto principal para ambos, que não seria Fidélia
só, nem só Tristão, mas os dous juntos.
- Digam-me, se eles fossem irmãos e seus filhos, não seria melhor que
apenas amigos e estranhos um ao outro?
Era a primeira vez que lhes dizia uma cousa destas, e o interesse foi
tamanho que eles pegaram do assunto para dizer cousas interessantíssimas. Não
as escrevo por ser tarde, mas cá me ficam de memória. Digo só que, quando saí,
D. Carmo, apesar do joelho doente, e por mais que eu quisesse detê-la, veio
comigo à porta da sala. Aguiar acompanhou-me até à porta do jardim, enquanto
ela veio à janela, donde se despedia ainda uma vez.
- Olhe o sereno, boa noite - disse-lhe eu cá de baixo.
- Boa noite.
D. Carmo entrou. Aguiar e eu apertamos a mão um do outro. Indo a sair,
lembrou-me falar do cão ali sepultado. Não lhe falei logo, dei três ou quatro
investidas, mas tão rápidas que, se gastei um minuto, foi o mais; nem tanto.
Aguiar ouviu-me espantado e constrangido.
- Quem lhe contou isso?
- O Dr. Tristão.
Não lhe quis citar o Campos, que também me falou do animal. Aguiar
confessou calando, depois falando, mas não falou muito. Confirmou que tiveram
muita amizade ao bicho, e referiu-me os padecimentos que a doença e a morte
deste produziram na mulher. Não disse os seus, mas também os tivera; olhou uma
vez para o lado da parede e, depois de uma pausa:
- Tristão riu-se naturalmente do nosso carinho?
- Ao contrário, falou-me com muito louvor; tem bom coração aquele rapaz.
- Muito bom.
Apesar de não ser dado a melancolias, nem achar que o ofício de
banqueiro vá com tais lástimas, separei-me dele com simpatia. Vim pela rua da
Princesa, pensando nele e nela, sem me dar de um cão que, ouvindo os
meus passos na rua, latia de dentro de uma chácara. Não faltam cães atrás da
gente, uns feios, outros bonitos, e todos impertinentes. Perto da rua do Catete,
o latido ia diminuindo, e então pareceu-me que me mandava este recado:
"Meu amigo, não lhe importe saber o motivo que me inspira este discurso;
late-se como se morre, tudo é ofício de cães, e o cão do casal Aguiar latia
também outrora; agora esquece, que é ofício de defunto".
Pareceu-me este dizer tão sutil e tão espevitado que preferi atribuí-lo
a algum cão que latisse dentro do meu próprio cérebro. Quando eu era moço e
andava pela Europa ouvi
dizer de certa cantora que era um elefante que engolira um rouxinol. Creio que
falavam da Alboni,
grande e grossa de corpo, e voz deliciosa. Pois eu terei engolido um cão
filósofo, e o mérito do discurso será todo dele. Quem sabe lá o que me haverá
dado algum dia o meu cozinheiro? Nem era novo para mim este comparar de vozes
vivas com vozes defuntas.
20 de setembro
Aquele dia 18 de setembro (anteontem) há de ficar-me na memória, mais
fixo e mais claro que outros, por causa da noite que passamos os três velhos.
Talvez não escrevesse tudo nem tão bem; mas bastou-me relê-lo ontem e hoje para
sentir que o escrito me acordou lembranças vivas e interessantes, a boa velha,
o bom velho, a lembrança dos dous filhos postiços... Continuo a dar-lhes este
nome, por não achar melhor... Principalmente aquela felicidade média ou turva
de pessoas que vão perder um de dous bens do céu, essa expressão que vi em D.
Carmo mais forte ainda que no Aguiar...
21 de setembro
Ao sair hoje de casa, vi passar na rua, do lado oposto, a irmã do
corretor Miranda, D. Cesária, tão risonha que parecia falar mal de mim, mas não
falava, ia só - ou falava de mim consigo; mas só consigo não teria tanto
prazer. Cumprimentamo-nos e seguimos.
22 de setembro
... encantadora Fidélia! Não escrevo isto porque a deseje, mas porque é
assim mesmo: encantadora! Pois não é que esta criatura de Deus, encontrando-se
comigo de manhã, veio agradecer-me a companhia que fiz aos seus amigos do Flamengo,
na noite de 18?
- Não tive merecimento nisso; fui lá, achei-os sós, passei a noite.
- Isso mesmo. D. Carmo disse-me que, se não foi uma noite cheia, foi só
por lhe faltarmos o Dr. Tristão e eu, mas que, ainda assim, o senhor teve o dom
de nos fazer esquecer.
Sorri incredulamente, depois expliquei o caso, dizendo que, se os fiz
esquecer, foi por serem eles o próprio assunto da conversação...
- Isso é que ela não me disse - interrompeu Fidélia espantada.
- Nem dirá; nem lho pergunte. O melhor é crer que eu, com os meus
cabelos brancos, ajudei a encher o tempo. A senhora não sabe o que podem dizer
três velhos juntos, se alguma vez sentiram e pensaram alguma cousa.
- Sei, sei, já tenho visto e ouvido os três.
- Mas nessas ocasiões a senhora dá outra nota recente e viva à
conversação.
Era verdade e era cumprimento; Fidélia sorriu agradecida e despediu-se.
Eu - aqui o digo ante Deus e o
Diabo, se também este senhor me vê a encher o meu caderno de
lembranças -, eu deixei-me ir atrás dela. Não era curiosidade, menos ainda
outra cousa, era puro gosto estético. Tinha graça andando; era o que lá disse
acima: encantadora. Não fazia crer que o sabia, mas devia sabê-lo. Ainda não
encontrei encantadora que o não soubesse. A simples suposição de o ser tenta
persuadir que o é.
No largo de São
Francisco estava um carro dela, perto da igreja.
Íamos da rua do
Ouvidor, a dez passos de distância ou pouco mais. Parei na esquina,
vi-a caminhar, parar, falar ao cocheiro, entrar no carro, que partiu logo pela travessa,
naturalmente para os lados de Botafogo.
Quando ia a voltar dei com o moço Tristão, que ainda olhava para o carro, no
meio do largo,
como se a tivesse visto entrar. Ele vinha agora para a rua do
Ouvidor, e também me viu; detive-me à espera. Tristão trazia os
olhos deslumbrados, e esta palavra na boca:
- Grande talento!
Percebi que se referia ao talento musical, e nem por isso fiquei menos
espantado; quase me esqueceu concordar com ele. Concordei de gesto e de
palavra, sem entender nada. Também eu gosto de música, e sinto não tocar alguma
cousa para me aliviar da solidão; entretanto, se fosse ele, e apesar de todos
osSchumanns e
seus êmulos, ao vê-la parar no largo de São
Francisco e entrar no carro, não soltaria a mesma exclamação,
antes outra, igualmente estética, é verdade, mas de uma estética visual, não
auditiva. Não entendi logo.
Depois, quando nos separamos na esquina da rua da
Quitanda, entrei a cogitar se ele, ao dar comigo, compôs aquela
palavra para o fim de mostrar que, mais que tudo, admira nela a arte musical.
Pode ser isto; há nele muita compostura e alguma dissimulação. Não quis parecer
admirador de pés bonitos; referiu-se aos dedos hábeis. Tudo vinha a dar na
mesma pessoa.
30 de setembro
Se eu estivesse a escrever uma novela, riscaria as páginas do dia 12 e
do dia 22 deste mês. Uma novela não permitiria aquela paridade de sucessos. Em
ambos esses dias - que então chamaria capítulos - encontrei na rua a viúva
Noronha, trocamos algumas palavras, vi-a entrar no bonde ou no carro, e partir;
logo dei com dous sujeitos que pareciam admirá-la. Riscaria os dous capítulos,
ou os faria muito diversos um de outro; em todo caso diminuiria a verdade
exata, que aqui me parece mais útil que na obra de imaginação.
Já lá vão muitas páginas falei das simetrias que há na vida, citando os
casos de Osório e de Fidélia, ambos com os pais doentes fora daqui, e daqui
saindo para eles, cada um por sua parte. Tudo isso repugna às composições
imaginadas, que pedem variedade e até contradição nos termos. A vida,
entretanto, é assim mesmo, uma repetição de atos e meneios, como nas recepções,
comidas, visitas e outros folgares; nos trabalhos é a mesma cousa. Os sucessos,
por mais que o acaso os teça e devolva, saem muita vez iguais no tempo e nas
circunstâncias; assim a história, assim o resto.
Dou estas satisfações a mim mesmo, a fim de mencionar o meu joelho
doente, tal qual o de D. Carmo. Outra paridade de situações... Há duas
diferenças. A primeira é que nela o mal é puro e confessado reumatismo. Em mim
também, mas o meu criado José chama-lhe nevralgia, ou por mais elegante ou por
menos doloroso; é um dos seus modos de amar o patrão. A segunda diferença...
A segunda diferença - ai, Deus! A segunda diferença é que, ainda que lhe
doa muito o joelho, D. Carmo lá tem o marido e os dous filhos postiços. Eu
tenho a mulher embaixo do chão de Viena e
nenhum dos meus filhos saiu do berço do Nada. Estou só, totalmente só. Os
rumores de fora, carros, bestas, gentes, campainhas e assobios, nada disto vive
para mim. Quando muito o meu relógio de parede, batendo as horas, parece falar
alguma cousa - mas fala tardo, pouco e fúnebre. Eu mesmo, relendo estas últimas
linhas, pareço-me um coveiro.
Mana Rita não me veio visitar, porque não sabe nada, e provavelmente não
tem saído; sei que está boa. O meu mal começou há sete dias. Durmo bem às
noites, mas não me faz bem andar, dói-me. Amanhã, se não acordar pior, saio.
2 de outubro
Estou melhor, mas choveu e não saí.
3 de outubro
- Foi um duelo entre mim e a velhice, que me disparou esta bala no
joelho; uma dor reumática. Já sei que vem jantar comigo?
O desembargador respondeu que não; disseram-lhe que eu estava doente e
vinha saber o que era. D. Carmo também está melhor do joelho, disse-me. Já sai,
mas pouco, pela praia do
Flamengo, até à do Russel.
- Sempre com a amiguinha, não?
- Nem sempre; lá tem o seu Tristão que a acompanha de manhã. Fidélia
manda-lhe visitas, e pode ser que Aguiar venha cá hoje; souberam ontem, à
noite, como eu.
Logo depois contou-me Campos que a sobrinha queria ir passar algum tempo
à fazenda.
- Os libertos, apesar da amizade que lhe têm ou dizem ter, começaram a
deixar o trabalho, e ela quer ver como está aquilo antes de concluir a venda de
tudo.
Não entendi bem, mas não me cabia pedir explicação. Campos incumbiu-se
de me dizer que também ele não entendia bem a ideia da sobrinha, e acrescentou
que, por gosto, ela partiria já. A doença de D. Carmo é que a fez aceitar o que
lhe propôs o tio, a saber, que adiassem a viagem para as férias.
- Iremos pelas férias - concluiu ele -; provavelmente já o trabalho
estará parado de todo; o administrador, que não tem tido força para deter a
saída dos libertos até hoje, não a terá até então. Fidélia cuida que a presença
dela bastará para suspender o abandono.
- Logo, se for mais depressa... - aventurei eu, querendo sorrir.
- Foi o argumento dela; eu creio que não será tanto assim, e, como tenho
de a acompanhar, prefiro dezembro a outubro. Quer-me parecer que ela teme menos
a fuga dos libertos que outra cousa...
Não acabou; levantou-se para concertar um laço da cortina, e voltou
coçando o queixo e olhando para o teto. Sentou-se e cruzou as pernas. Eu, para
me não deixar ir a perguntas, peguei do gesto do desembargador, dizendo-lhe que
ele acabava de fazer com as pernas o que ainda me custaria um pouco; mas foi
como se falasse à cortina, ao laço ou à palhinha do chão. Campos não me
respondeu nem provavelmente me ouviu. Ergueu-se, disse que estimava as minhas
melhoras e despediu-se até breve. Teimei que jantasse.
- Não posso; tenho gente de fora; o Tristão janta comigo.
Para lhe mostrar que convalescia, fui ao patamar pisando rijo.
Agradeci-lhe o obséquio da visita, e tornei à sala, com a viúva diante dos
olhos, caminho da fazenda. Mas que terá que a faça ir meter-se na fazenda, com
meia dúzia de libertos, se ainda achar alguns? Pouco depois, outra visita, o
Aguiar, que me trazia lembranças da mulher. Estimou ver-me de pé, no meio da
sala.
- Não valia a pena - disse-lhe -; foi uma cousa de nada, estou quase
bom, e hoje mesmo, se a chuva parar, como está querendo, lá vou levá-lo à casa,
depois do jantar. Janta comigo?
- Não posso; tenho gente de fora. Uma das pessoas não me impediria, é a
Fidélia, que lá janta conosco, e é quase da família. Mas vai também um colega
do banco.
- Pois irei tomar chá.
- Vá, se quer, mas não faça isso, é o meu conselho. Ainda que não chova,
sempre haverá umidade, e para reumatismo...
- Mas D. Carmo tem saído, creio.
- Tem, e pode-se dizer que está boa. Apesar disso, já hoje não saiu, por
causa do tempo. Vá, se quer; eu no seu caso não saía.
Aguiar não disse mais nada, e despediu-se. Pareceu-me (ou foi ilusão)
que ele queria acrescentar alguma cousa e não acabou de querer. Não sei que
seria. Não sentisse eu mesmo algum medo da umidade e iria vê-los à noite, mas a
umidade é certa, e creio que a chuva também. Fico em casa. Se aparecer algum
enxadrista, jogarei xadrez; se apenas jogar cartas, cartas. Se não vier
ninguém, atiro-me a compor um poema de cabeça.
6 de outubro
Mana Rita, mana Rita
Foi a última visita,
Foi a última visita,
e o resto do poema em prosa, que a minha musa não dá para mais. Foi
assim que o compus, não na outra noite, a de 3, mas na de hoje, 6, depois de
levar a mana a Andaraí.
Apareceu-me aqui de manhã. Já outros, amigos e até indiferentes, me tinham
visitado, como aquele Dr. Faria, que me deixou lembranças da mulher, e o
corretor Miranda, que também mas trouxe da sua. Tristão esteve cá anteontem, e
eu saí à tarde e ontem de manhã. Estou bom, nem por isso deixei de lhe chamar
ingrata. Rita confessou-me que há mais de três semanas não sai de casa para ver
se tinha um irmão que se lembrasse dela.
- Tinha e tem - retorqui-lhe -, mas um irmão que só agora convalesceu de
todo.
Contei-lhe a dor e a reclusão. Rita, que a princípio não queria crer e
ria, acabou convencida e contristada. Censurou-me naturalmente; eu disse-lhe
que continuava a guardá-la para a doença mortal e última. Assim trocamos muitas
palavras amigas e doces, algumas alegres. Como lhe perguntasse se estivera com
a gente Aguiar ou com a família Campos, respondeu-me que não. Se fosse a uma
daquelas casas teria sabido do meu incômodo, e não receberia a notícia aqui,
acrescentou.
- Então você não sabe nada do projeto de ir à fazenda? - perguntei-lhe.
- Projeto de quem?
- Da viúva Noronha.
- Ir à fazenda?
- Sim, ir a Santa-Pia, para ver como andam lá as cousas; parece que os
libertos estão abandonando a roça. Foi o que me disse o tio da viúva.
- Não ouvi dizer nada. Há perto de um mês que não saio de casa. Mas o
tio por que não vai?
- O tio vai, mas é com ela; a sobrinha quer a companhia dele, mas só a
companhia, parece, não quererá também a colaboração. Vão pelas férias. Eu não
compreendo esta necessidade de ir ela mesma, quando era melhor um homem.
Rita quis ir saber da própria Fidélia. Ponderei-lhe que era indiscreto,
e faria crer da nossa parte alguma curiosidade. Saiu a voltas, e tornou.
Confesso uma cousa; depois que a vi sair imaginei se teria ido saber da viúva
ou dos amigos a verdadeira causa da viagem, e disse-lho ao jantar. Ela ficou
séria e abanou a cabeça. Se me tem jurado que não, é provável que me enterrasse
o espinho da dúvida, mas falou com simplicidade, e nomeou as visitas que fez.
Uma delas foi a D. Carmo.
- Carmo está sã como um pero - disse-me -; recebeu-me rindo como só ela
sabe rir, um rir de dentro, tão simples, tão franco... Falamos de Fidélia,
falamos de Tristão, ela com a ternura e amizade que você já lhe tem visto.
- Ainda não sabe da viagem à fazenda?
- Sabe, e parece que nem esperam as férias; é daqui a dias. Sabe da
viagem e do motivo, e aprova; diz que a viúva tem muito prestígio entre os
libertos. Se pudesse iria também, mas Aguiar não ficaria só, e ele não pode
deixar agora o banco.
- Mas ele não ficaria só; o Tristão aí está.
- Não, por duas razões; a primeira é que Tristão nem ninguém supre a boa
Carmo. A viagem que ela fez este ano a Nova Friburgo custou
muito ao marido. Não foi ela que me disse isto; eu é que soube, e percebe-se,
todos sabem; Aguiar sem Carmo é nada. A segunda razão é que o próprio Tristão
está com vontade de acompanhar o desembargador e Fidélia; nunca viu uma
fazenda, e tem vontade, antes de voltar para Lisboa...
- E a nossa amiga, diante desse eclipse dos dous, não está aborrecida?
- Foi o que lhe perguntei; disse-me que é por poucos dias, e espera; em
todo caso, se houver demora dos outros, Tristão virá embora. Quer passar com
ela e o marido o mais tempo que puder.
Mana Rita (percebe-se) está com vontade de achar algum defeito grande no
afilhado do Aguiar, mas não acha nenhum, grande ou pequeno, e pesa-lho. O bem
que diz dele é repetição confessada do que ouviu. Eu não penso mal, antes bem,
creio que já o escrevi em algumas destas páginas; mas não disse se bem nem mal.
Deixei-me ficar a condenar o meu pobre jantar, que foi ruim, só o frango
prestou e a fruta, menos as peras...
Ao café, mana Rita contou-me algumas anedotas de Andaraí,
aonde a fui levar, seriam dez horas, e donde voltei para escrever isto, acabar
e repetir como principiei:
Mana Rita, mana Rita
Foi a última visita,
Foi a última visita,
10 de outubro
Entendam lá mulheres! Tanta necessidade de ir à fazenda e já. Campos
alcança uma licença de alguns dias, Tristão apronta a mala, e, tudo feito,
cessa a necessidade de partir. Foram só o Campos e o Tristão. Tal a notícia que
me deram as duas (Carmo e Fidélia) hoje, à tarde, quando eu ia a entrar no
jardim da casa do Flamengo.
As duas vinham chegando ao portão.
- Não fui - confirmou Fidélia as primeiras palavras de D. Carmo -. Um
homem basta e sobra, e acaba depressa todas as dúvidas. Também as notícias
agora são melhores.
- Lucram os seus amigos - retorqui.
D. Carmo disse o mesmo que eu, mas sem palavras, com os olhos apenas.
Como iam a passeio, dispus-me a acompanhá-las, depois de algumas notícias que
trocamos, D. Carmo e eu, sobre os nossos reumatismos; estamos bons. As duas iam
de braço, eu ao lado, entre elas e o mar, que não batia com força. A
conversação não foi constante, porque a viúva levava os olhos no chão. A amiga
falava-me, mas olhava de quando em quando para ela, e eu também. Fidélia falava
pouco, e só então olhava para a outra.
O passeio foi curto; tornei com elas ao jardim, aonde pouco depois
chegou Aguiar trazendo cartas de Lisboa para
Tristão, três ou quatro. Conhecia a letra de uma, era do pai, e provavelmente
havia dentro outra da mãe, tão volumosa era. A ideia de as mandar para
Santa-Pia passara-lhe pela cabeça, mas recuou por não saber se o rapaz voltará
amanhã ou depois, ou se ficará mais tempo. Se voltar já, espera; se ficar,
manda-lhas. Queria consultar a mulher.
D. Carmo achou mais prático escrever-lhe um bilhete perguntando quando
conta vir, para lhe mandar ou não a correspondência. Fidélia não sabia nada da
volta do tio. Acha provável que fique alguns dias mais para dar as últimas providências
e coligir as notas necessárias à venda da casa e das terras; ia vendê-las, por
intermédio do Banco do Sul,
mas nem ela nem Aguiar sabiam nada positivamente.
Eu, convidado a opinar, disse que o rapaz, sabendo de correspondência
numerosa e presumindo alguma dela política, pediria logo a remessa, se não
viesse abri-la em pessoa. A segunda hipótese não foi mal acolhida pela
madrinha; pareceu-lhe certa. Ao cabo, que faria ele lá depois de ver a fazenda?
A fazenda naturalmente via-se depressa, não tendo ele nenhuma cousa de
recordação pessoal, ou costume velho que reviver. Assim disse eu, ou por outras
palavras, e os dous concordaram comigo. Como perguntasse a Fidélia se não
sentiria saudades da casa em que nasceu e se criou, respondeu-me que sim, mas
já não terá gosto em lá viver.
- Aquilo agora é para mãos de homem - concluiu.
Estas palavras foram ouvidas por D. Carmo, com vivo prazer. Aguiar
provavelmente teria a mesma sensação, mas saíra à calçada para falar a um
vizinho, e não as ouviu. Quando voltou, achou que me despedia das duas
senhoras, e nem por isso deixou de me pedir que ficasse e jantasse. Recusei, e
saí. Andando, ouvi que ele dizia à mulher e à amiga:
- Quem sabe o que trarão estas cartas?
Em caminho, arrependi-me de não ter ficado para jantar. Ouviria o grande
talento que arrancou a voz exclamativa ao Tristão. Não seria novo para
mim, mas seria mais uma vez, conquanto pareça que ela anda a recusar-se agora
ao piano. É verdade que talvez os dous a vão levar à noite a Botafogo.
Também pode ser que ela durma ali hoje, em casa dos pais postiços.
12 de outubro
Aguiar e D. Carmo foram ontem levar a amiga a Botafogo,
e voltaram cedo. Assim o soube hoje por ele, à porta do Banco, onde me achava a
conversar com o corretor Miranda. Nenhuma notícia de Tristão, mas o bilhete do
padrinho já está no correio, e segue hoje mesmo para Santa-Pia.
Que as asas postais o levem, digo eu aqui neste cantinho de papel, sem
advertir no rebuscado da imagem. Advirto agora, e não a risco nem substituo;
asas postais servem, uma vez que vão ter à fazenda e não percam o bilhete em
caminho. Quer-me parecer que também eu estou curioso de saber o que trazem as
tais cartas de Lisboa,
curioso apenas, e aliás não admira que desta vez são numerosas e bastas;
escrevem-se geralmente pouco. Seja o que for, os dous velhos estão ansiosos de
saber se o mandam voltar de cá. Não o dizem, mas vê-se.
Miranda continuou a dizer das saudades que a mulher, a cunhada Cesária,
o cunhado Faria, toda a casa dele tem de mim; - cousas que ouvi agradecido,
prometendo ir devolvê-las em pessoa um dia destes. Em suma, o corretor não é
mau homem, e já me serviu uma vez em negócio do seu ofício. Usa a nota alegre,
sem juvenilidade, e acha grande interesse em cousas que
nenhum têm.
13 de outubro
Campos escreveu à sobrinha, referindo-lhe o estado da fazenda, e
contando os passeios que deu por ela com o moço Tristão. Este é curioso e
discreto no exame das cousas que vê e nas notícias que pede. Lá está o capelão,
e mais o juiz municipal. A carta é anterior ao bilhete do Aguiar, não fala
nele, mas diz que Tristão não se demorará muito; conta vir daqui a dias.
D. Carmo espera que os dias serão abreviados logo que ele receba o
bilhete do marido. Não mo disse a mim, quando lá estive ontem, à noite, nem o
ouvi a ninguém; eu é que pensei haver-lho lido no rosto. A carta do
desembargador foi-lhe levada pela própria Fidélia, que lá estava ontem, e desta
vez tocou piano, não sei se tão bem como Tristão, mas bem; os dous podiam tocar
juntos. Éramos apenas cinco; o estudante primo de Fidélia viera trazê-la e
tornou com ela para Botafogo,
às dez horas.
17 de outubro
Chegou Tristão. Ignoro o que terá lido nas cartas de Lisboa,
não falei a nenhuma das pessoas que poderiam sabê-lo. Irei ao Flamengo um
dia destes, amanhã.
Hoje conto não sair de casa, que faço anos. Chego aos meus sessenta e...
Não escrevas todo o algarismo, querido velho; basta que o saiba teu coração e
vá sendo contado pelo Tempo no
livro de lucros e perdas. Não escrevas tudo, querido amigo.
Não saio de casa. Se a mana Rita vier jantar, como fez o ano passado,
irei levá-la à noite a Andaraí.
Se não vier, deixo-me ficar sozinho.
Vou ocupar o tempo em reler uns papéis velhos que o meu criado José
achou dentro de uma velha mala e me trouxe agora. A cara dele tinha a expressão
de prazer que dá o serviço inesperado; aquele gosto de descobrir papéis que
podem ser importantes fazia-o risonho, olhos escancarados, quase comovido.
- V. Ex.a talvez os procure há muito tempo.
Eram cartas, apontamentos, minutas, contas, um inferno de lembranças que
era melhor não se terem achado. Que perdia eu sem elas? Já não curava delas;
provavelmente não me fariam falta. Agora estou entre estes dous extremos, ou
lê-las primeiro, ou queimá-las já. Inclino-me ao segundo. Ante mim continuava o
meu José com a mesma expressão de gosto que lhe deu o achado. Naturalmente
agradecia à sua boa Fortuna que
lho deparou; contará que é mais um elo que nos prenda. Talvez a ideia que o
levou à mala fosse a esperança de algum valor extraviado, uma joia, por
exemplo, ou ainda menos, uma camisa, um colete, um lenço, e sendo assim o
silêncio era muito possível. Achou papéis velhos, veio fielmente entregar-mos.
Não lhe quero mal por isso. Não lho quis no dia em que descobri que ele
me levava dos coletes, ao escová-los, dous ou três tostões por dia. Foi há dous
meses, e possivelmente já o faria antes, desde que entrou cá em casa. Não me
zanguei com ele; tratei de acautelar os níqueis, isso sim; mas, para que não se
creia descoberto, lá deixo alguns, uma vez ou outra, que ele pontualmente
diminui; não me vendo zangar é provável que me chame nomes feios, descuidado,
tonto, papalvo que seja... Não lhe quero mal do furto nem dos nomes. Ele serve
bem e gosta de mim; podia levar mais e chamar-me pior.
Resolvo mandar queimar os papéis, ainda que dê grande mágoa ao José, que
imaginou haver achado recordações grandes e saudades. Poderia dizer-lhe que a
gente traz na cabeça outros papéis velhos que não ardem nunca nem se perdem por
malas antigas; não me entenderia.
*****
17 de outubro, duas horas
Começo a receber cartões de visita pelo dia de hoje, entre eles os do
casal Aguiar e do Tristão, e um de Fidélia. A viúva escreveu estas palavras: cumprimentos
de boa amizade. Agora me lembra que no dia 12, quando a encontrei no Flamengo,
em casa do Aguiar, usei desta expressão "boa amizade", como a mais
doce que podia desejar dela; foi um modo de concluir o elogio discreto que lhe
fazia, apoiando a outro que D. Carmo lhe fazia também. Daí este cumprimento de
hoje. O bilhete de Tristão traz a fórmula admirativa, os dos Aguiares, afeto e
apreço. Rita não me escreveu; certamente virá jantar.
*****
Meia-noite
Veio, veio, Rita veio jantar com a alegria do costume, e examinou todas
as cartas e cartões de cumprimentos. Explicou-me que estivera ontem no Flamengo,
onde dera notícia do meu aniversário; daí as cortesias de hoje.
Ouvindo isto, não me pude ter que lhe não falasse das cartas que
aguardavam o Tristão. Disse-me que sabia delas; eram dos pais e de amigos
políticos. Entre as primeiras vinha uma para D. Carmo, com um postscriptum para
o marido. Depois de alguma hesitação, perguntei-lhe se instavam pela volta
dele.
- Os pais, não - respondeu-me Rita -; os amigos, não sei, apenas ouvi de
D. Carmo que eles falam muito da política de lá. E dizia-me isto um pouco
aborrecida, como receosa, e ela teme já a separação; entretanto, é a cousa mais
natural do mundo.
- Tristão não disse nada?
- Que eu ouvisse, nada. Passei lá uma boa meia hora de conversa, e o
principal assunto foi a visita de Tristão a Santa-Pia, que ele achou
interessante como documento de costumes. Gostou de ver a varanda, a senzala antiga,
a cisterna, a plantação, o sino. Chegou a desenhar algumas cousas. Fidélia
ouvia tudo com muito interesse, e perguntava também, e ele lhe respondia.
- Ela vai sempre vender a fazenda?
- Não ouvi falar disso.
- Vai, vai vendê-la. Ao menos, era plano há tempos, e o desembargador lá
ficou para cuidar de apontamentos. Ele quando vem?
- Ouvi dizer que daqui a oito ou sete dias; duas semanas, quando muito.
- Fidélia jantou com eles, naturalmente?
- Não. Quando eu saí às quatro horas, Carmo pediu-me que ficasse. Tendo
de fazer outra visita, recusei. Fidélia disse então que aproveitava a minha
companhia. A outra instou com ela que jantasse, mas a amiga alegou que era
esperada em casa e não podia; voltaria hoje ou amanhã. Carmo e Tristão
acompanharam-nos à porta do jardim. Eu e Fidélia viemos andando, e, ao chegar à
esquina da rua da
Princesa, não me lembrou logo voltar a cabeça. Fidélia lembrou-se,
eu imitei-a, e os dous parados na calçada diziam-nos adeus com a mão.
Rita contou-me que foi até Botafogo com
a viúva Noronha. De caminho falaram pouco, ou antes Fidélia é que não falou
muito; ia preocupada. Apesar disso, mostrou-se o que sempre foi, afável, quase
meiga; pareceu interessar-se pela vida de Rita, confessou saudades, sentia que
se não vissem mais vezes, e pediu desculpa de não ir, há muito, a Andaraí.
Se as palavras eram poucas, não eram secas, ao contrário.
Naturalmente falaram de D. Carmo e de Aguiar; também disseram alguma
cousa de Tristão, concordaram que parecia amigo dos padrinhos.
Perto da casa do tio, Fidélia entrou em uma fábrica de flores para
encomendar as que levará no dia 2 de
novembro à sepultura do marido. Rita, que aliás não pensara
ainda nisso, deixou de encomendar as suas; fá-lo-á quando o dia dos
mortos estiver mais próximo, e trá-las-á consigo da cidade.
Referiu-me as encomendas da viúva, a escolha, as exigências, o número de
grinaldas, três, e a composição das cores que teriam; não quis deixar nada ao
fabricante.
Ouvi todas essas minúcias e ainda outras com interesse. Sempre me
sucedeu apreciar a maneira por que os caracteres se exprimem e se compõem, e
muita vez não me desgosta o arranjo dos próprios fatos. Gosto de ver e antever,
e também de concluir. Esta Fidélia foge a alguma cousa, se não foge a si mesma.
Querendo dizer isto a Rita, usei do conselho antigo, dei sete voltas à língua,
primeiro que falasse, e não falei nada; a mana podia entornar o
caldo. Também pode ser que me engane.
Não escrevo o resto. Quando ela acabou e contou o regresso,
perguntei-lhe por que não viera ontem jantar comigo. Respondeu-me que, tendo de
vir hoje, não queria ser convidada de véspera. Ri-me e fomos para a mesa, que
estava posta. Ao centro um ramo de flores, ideia dela, que o mandou trazer às
escondidas, e, como eu lhe perguntasse se eram das que Fidélia encomendara,
riu-se também. Agradeci-lhe a lembrança, exprimindo-lhe todo o meu afeto,
comemos alegremente, recordando anedotas da infância e da família.
18 de outubro
Ao levantar da cama, a primeira ideia que me acudiu foi aquela que
escrevi ontem, à meia-noite: "Esta moça (Fidélia) foge a alguma cousa, se
não foge a si mesma".
22 de outubro
Fidélia não voltou ao Flamengo,
apesar da promessa que D. Carmo lhe fez fazer. D. Carmo fora achá-la a pintar;
Fidélia lembrara-se de haver pintado em menina, e começara um trecho do jardim
da própria casa. Prometeu voltar ao Flamengo no
dia seguinte, e não foi.
Tristão, ao saber do motivo da ausência, advertiu que a viúva Noronha
podia ter em pintura talento igual ao da música, e não sei se lho chamou
grande; não mo disse. Que ele mesmo é que me referiu o que aí fica, e mais o
que vou incluir nesta página antes que me esqueça. Tinha vindo almoçar comigo.
- Venho almoçar, conselheiro; voltando agora do meu passeio, lembrou-me
subir e perguntar por V. Ex.a. O seu criado disse-me que ia almoçar; ouso
pedir-lhe um lugar à mesa.
- Um, dous, três, doutor - acudi eu -, quantos a sua amizade pedir para
o seu apetite.
Deu-me notícias da gente Aguiar; estão bons; falou-me dos seus e das
cartas políticas de Lisboa.
Já as leu ao padrinho e à madrinha. Uma só delas alude ao desejo de o ver
tornar breve: "esperamos que não se demorará muito no Rio de
Janeiro".
- E demora-se muito? - perguntei-lhe.
- Não sei, mas é natural que pouco; a política chama-me.
Ao almoço é que Tristão me contou a história da tela que a viúva está
pintando, da promessa que fez à amiga e não cumpriu. E disse-me depois:
- Se ela sabe pintar pareceu-me que, melhor quadro que o seu jardim, é
um trecho marinho do Flamengo,
por exemplo, com a serra ao
longe, a entrada da barra, alguma das ilhas, uma lancha, etc. A
madrinha concordou logo, e foi propor à amiga a troca do quadro. Agradou-lhe
este outro, prometeu vir ao Flamengodesenhá-lo,
e não veio.
- É que está namorada do seu jardim. Geralmente os artistas sentem
melhor as próprias imaginações. Ela ainda saberá pintar, como diz que pintou em
menina?
- A madrinha viu-lhe apenas algumas linhas de desenho, e pareceram-lhe
boas.
Concordamos que deviam ser boas. Uma cousa traz outra, falamos das
graças da viúva, da compostura, da discrição, da memória das viagens, do gosto,
dos gestos e creio que dos olhos também. Eu, com certeza, falei dos olhos, e
agora me lembra que ele disse serem juntamente lindos e graves. Opinião ou
diversão, acrescentou que os olhos das suas antigas patrícias eram em geral
belos, e falou compridamente de outras damas; assim não parecia louvar somente
a viúva Noronha. Achei isto bem, como equidade e como estética. No meio da
conversação tive uma ideia; disse-lhe que D. Carmo, que lhes queria tanto, em
vez de propor à amiga a simples tela da praia, devia propor-lha com alguma
figura humana. A dele ficaria bem para lhe lembrar, quando ele partisse, a
pessoa do filho pintada pela filha. Tristão ouviu sorrindo isto que lhe disse;
depois repetiu, como quem pensava:
- A pessoa do filho pintada pela filha...
Não ponho aqui o sorriso porque foi uma mistura de desejo, de esperança
e de saudade, e eu não sei descrever nem pintar. Mas foi, foi isso mesmo que aí
digo, se as três palavras podem dar ideia da mistura, ou se a mistura não era
ainda maior. Daí saltamos às galerias de arte da Europa,
e falamos do que sabíamos. Quando demos por nós, tínhamos acabado de almoçar.
Ofereci-lhe charutos e o meu coração. Quero dizer que lhe pedi viesse muitas
vezes dar-me aquela hora deliciosa. Retorquiu-me que dá-la não, mas tomá-la
para si. Era a volta do cumprimento, e com graça.
Despediu-se e saiu. Quis sair logo, mas vim primeiro escrever isto, para
que me não esqueça, como lá digo atrás. E agora que o escrevi confirmo a
impressão que me deixou o rapaz, e foi boa, como a princípio. Talvez ele tenha
alguma dissimulação, além de outros defeitos de sociedade, mas neste mundo a
imperfeição é cousa precisa. Pronto; vou sair, e amanhã ou depois irei saber da
paisagem ou da marinha da bela Fidélia.
28 de outubro
Nem marinha nem paisagem, não soube de nada. Fidélia não tem aparecido
no Flamengo,
e escreveu hoje à velha amiga um bilhete de desculpas; está tomando as contas
ao tio, que voltou ontem da fazenda. Não me lembra se já escrevi que o Banco do Sul é
que fará a transferência de Santa-Pia.
D. Carmo, a pretexto do estilo, deu-me o bilhete a ler. Tem graça,
decerto, mas o verdadeiro motivo é a ternura que ela sente em ler a amiga e
fazê-la ler aos outros. Depois que lho restituí, leu-o outra vez para si. Já
devia trazê-lo de cor. Em meio disto achou modo de aprovar a minha ideia do
filho pintado pela filha, ouvida ao Tristão.
- Hei de dizê-la a Fidélia.
Tristão não estava presente; fora jantar com um ministro. Francamente,
era mais fácil à moça prometer que pintar a marinha. O que a boa Carmo disse
que faria penso que o não fará; não irá propor à viúva que venha copiar a
figura do afilhado na marinha do Flamengo.
A familiaridade que haja porventura entre eles não se ajustará muito a esta
ação de arte, incômoda ou não sei que diga...
Suspendo aqui a pena para ir dormir, e escreverei amanhã o resto da
noite.
29 de outubro
O resto da noite foi passado em casa do Faria. Eram anos dele e estive
lá mais tempo do que contava. Havia gente e alegria, algum canto e piano, e
também conversa.
Faria, apesar do dia e da festa, ria mal, ria sério, ria aborrecido, não
acho forma de dizer que exprima com exação a verdade. É um desses homens
nascidos para enfadar, todo arestas, todo secura. A mulher, D. Cesária, estava
alegre e tinha a pilhéria do costume. Não disse mal de ninguém por falta de
tempo, não de matéria, creio; tudo é matéria a línguas agudas. A maneira por
que aprovava alguma cousa era quase sarcástica, e difícil de entender a quem
não tivesse a prática e o gosto destas criaturas, como eu, velho maldizente que
sou também. Ou serei o contrário, quem sabe? No primeiro dia de chuva
implicante hei de fazer a análise de mim mesmo.
Quando saí de lá, Faria agradeceu-me, com o seu prazer nasal e surdo -
assim defino as palavras que lhe ouvi, acompanhadas de um fugaz sorriso de
cárcere.
1 de novembro
Este é o dia de todos
os santos; amanhã é o de todos os mortos. A Igreja andou bem marcando uma data
para comemorar os que se foram. No tumulto da vida e suas seduções,
fique um dia para eles... A reticência que aí deixo exprime o esforço que fiz
para acabar esta página em melancolia; não posso, nunca pude. Tristezas não são
comigo. Entretanto, em rapaz - quando fiz versos, nunca os fiz senão
tristíssimos. As lágrimas que verti então - pretas, porque a tinta era preta -
podiam encher este mundo, vale delas.
2 de novembro
Mana Rita foi hoje ao cemitério levar
flores aos nossos.
- Você não imagina; acordei às cinco e meia para me vestir e estar cedo
em São João
Batista. Cheguei às oito e pouco; achei muita gente, não tanta,
porém, como há de ser logo, à tarde. Não vim buscar você, porque sei que não
iria.
- Pois eu fui à missa da Glória.
- A igreja é perto.
- Talvez fosse ao cemitério.
Muitas sepulturas bonitas?
- Bastantes; entre elas, a do marido de Fidélia. As coroas e flores que
ela encomendou há dias lá estavam bem dispostas e faziam grande efeito; parece
que o desembargador mandou também o seu ramo; estava escrito numa fita.
- Vocês falaram-se?
- Não; ela já tinha saído.
- Como sabe você que ela é que foi levar as flores e coroas?
- Adivinha-se pela disposição.
- Sim?
- Decerto, mano. A disposição, o arranjo, a combinação, tudo era de
mulher. Há dessas cousas que mão de homem não faz; mão de homem é pesada ou
trapalhona, e mais se é de desembargador, como ele. Por exemplo, o nome do
marido, o nome próprio só, não todo, estava cercado de perpétuas; isto é cousa
que só uma senhora inventa e faz. As outras flores, rosas e papoulas,
distribuíam-se com tal simetria que pediu tempo e gosto. Um homem chegava ali,
pegava das flores e espalhava-as à toa.
- Admira que você a não visse.
- É que foi muito cedo.
- Mas num dia como o de hoje, tendo tanta cousa que arranjar. Daquela
vez que a encontramos era mais tarde.
- Era, mas o dia era outro; hoje havia muita gente, não quis que a
vissem, é o que foi.
Mana Rita desenvolveu esta ideia, que achei aceitável; depois falou de
outros jazigos. Como dos jazigos passamos ao ministério e
a D. Cesária não me lembra, mas falamos dele e dela com interesse, e a mana,
com graça. Tinham estado juntas as duas, ontem à tarde; Rita desculpara-se de
não ter lá ido no dia 28. Contou-me parte do que lhe ouviu acerca de duas
pessoas que lá estiveram...
- Que lá estiveram?
- Parece que sim.
E entrou a repetir uma série de anedotas e ditos, que ouvi durante uns
dez minutos, com atenção. A maledicência não é tão mau costume como parece. Um
espírito vadio ou vazio, ou ambas estas cousas, acha nela útil emprego. E
depois, a intenção de mostrar que outros não prestam para nada, se nem sempre é
fundada, muita vez o é, e basta que o seja alguma vez para justificar as
outras. Disse isto a Rita por palavras graciosas, que ela reprovou e deitou à
conta da minha perversidade.
9 de novembro
A marinha interrompeu a paisagem, ou de todo a pôs de lado. Fidélia
consentiu em ir pintar um trecho da praia do
Flamengo, não sei se com Tristão ou sem ele. Aguiar, que me deu a
notícia, limitou-se a dizer que ela já começou a tela com muito gosto.
- Vá lá amanhã, conselheiro, entre uma e duas horas.
11 de novembro
Não fui ontem, fui hoje ver a marinha. Achei Fidélia no jardim, junto da
casa, com o pincel e a palheta nas mãos, os olhos no mar e na tela, em pé. Ao
lado, sentada, estava D. Carmo, com o seu riso bom e maternal. Viu-me à porta
do jardim, e fez um gesto convidando-me a entrar; entrei.
- Venha - disse ela -, ande ver a minha artista.
Fidélia pareceu vexada com estas palavras, e estendeu-me a mão, já livre
do pincel, dizendo:
- Não olhe, não olhe que não presta.
Olhei, prestava. Está ainda em começo, e não será obra-prima; a polidez
obrigava-me a achá-la excelente, e disse-lho, com um gesto de admiração; mas,
em verdade, presta. O fundo, serra e
céu, faz bom efeito; a água creio que terá movimento e boa cor. Faltava
Tristão; não vi nem sombra do "filho pintado pela filha". Posto não
estranhasse a ausência, lembrou-me insinuá-la. Disse-lhe que podia pôr na praia
a figura da boa amiga, que ali estava a acompanhá-la com os seus dous olhos
amigos. Esta ia a dizer alguma cousa, mas Fidélia replicou:
- Não me atrevi, por não conhecer bem a arte de figura; no colégio
pintava flores e paisagens, algum pedaço de mar ou de céu. Se não fosse isso,
tirava o retrato de D. Carmo.
D. Carmo confirmou:
- Eu pedi-lhe que pintasse Tristão neste quadro e ela respondeu-me a
mesma cousa.
Aceitei a razão, aceitei uma cadeira vaga que ali estava, e pedi à viúva
que continuasse a obra. Queria vê-la pintar. Na Europa tinha
assistido ao trabalho de alguns artistas homens; era a primeira vez que uma
senhora pintava diante de mim. Fidélia dispôs-se e continuou. Após alguns
minutos os três falávamos de várias cousas. A viúva estava em toda a graça do
costume, sem nenhum ar petulante que porventura pudesse tirar do exercício;
pintava modestamente. Alguma vez interrompia o trabalho, ou para ouvir melhor,
ou para dizer mais longo - e logo tornava ao pincel e à tela.
Ao cabo de alguns minutos cuidava eu de sair, quando vi aparecer à porta
da casa nada menos que Tristão. A porta é larga, dá para um saguão, donde se
comunica para cima por dous pequenos lanços de degraus, teto baixo. Tristão
vinha de concluir a correspondência que vai mandar para o correio, segundo
soube logo depois, e tornava ao lugar em que estivera, ao pé das duas. Mandou
vir cadeira; a que eu ocupava era a que ele ocupava antes, e não havia outra.
Talvez estes pormenores não tenham valor, mas cabem aqui para o fim de acentuar
bem que Tristão estava com elas antes da minha chegada, e para lembrar que
antes de vir a cadeira me consultou acerca da pintura; respondi o que cumpria.
- Não é? - disse ele contente do meu apoio.
E acrescentou algumas palavras de louvor, cálidas, sinceras decerto, que
a viúva apreciou consigo naturalmente; não as contestou, também não sorriu como
sucede quando a gente aprova interiormente uma cousa que lhe vai bem com a
alma. Ouviu pintando, recuando ou chegando, e deitando os olhos para longe.
Quando os encaminhou para ele (já então sentado) não esperou que Tristão
afastasse os seus; encontrou-os e deixou-os ficar onde estavam, indo continuar
a marinha com tanta atenção que era como se nós outros não falássemos de nada,
e nós falávamos de muita cousa, ele acaso menos, para ver melhor a pintura.
Aquele silêncio de Fidélia, em contraste com a palestra de pouco antes,
pareceu-me indicar que ela considerava a obra em atraso. Também podia ser que o
amor da arte a retivesse agora mais que a princípio, e a convidasse a pintar
exclusivamente. A causa secreta de um ato escapa muita vez a olhos agudos, e
muito mais aos meus, que perderam com a idade a natural agudeza; mas creio que
seria uma daquelas, e não há razão para descrer que fossem ambas
sucessivamente.
Quem parecia contente de tudo, palavras e silêncios, era a dona da casa.
Posto me desse a principal atenção, não o fazia em maneira que esquecesse a
tela e os filhos. Mirava a tela e falava aos filhos com a ternura velha que já
estou cansado de notar, e talvez a ternura fosse agora maior que de outras
vezes; pelo menos, trazia certo alvoroço como de alma que soletra uma
felicidade nova ou inesperada; não digo tudo para me não arriscar a engano.
A verdade é que eu, que pensara em sair, fui ficando, ficando, até que a
viúva Noronha suspendeu o trabalho; tinha passado quase uma hora. Confessou que
estava cansada, e cuidou de recolher os pincéis e cobrir a pintura, ajudada
nisso pelo moço Tristão, que o fazia com a mesma graça que ela, e um desejo de
bem servir, que é a alma da polidez. Eu, além de velho, não podia deixar a boa
Carmo, que só os ajudou com os olhos, e ajudou-os bem; iam de um para outro,
não só alegres, mais ainda interrogativos. Eles acabaram tudo e vieram
sentar-se diante de nós, um cheio de riso, outra não cheia, mas tocada apenas do
seu, que era igualmente agradecido e bom.
A minha presença era já longa e, apesar das relações que há entre nós,
começaria a parecer indiscreta. Era tempo de sair; quis sair e ficar a um
tempo, cousa impossível; vivi assim alguns instantes de impulsos contrários.
Tristão podia resolver esta minha luta interior cantando alguma cousa que me
obrigasse a ouvi-lo, mas estava então ocupado em dizer finezas à artista, à
viúva, à irmã, a todas aquelas três pessoas consubstanciadas na mesma dama
encantadora. Fidélia sorria com recato e atenção, e respondia também.
Despedi-me, e achei (se não foi engano) que D. Carmo estimou a minha saída para
se dar inteiramente aos dous filhos. Certo é, porém, que os três me falaram com
apreço e cortesia. Vim por aí fora pensando neles.
12 de novembro
Fiz mal em não pôr aqui ontem o que trouxe de lá comigo. Creio que
Tristão anda namorado de Fidélia. No meu tempo de rapaz dizia-se mordido;
era mais enérgico, mas menos gracioso, e não tinha a espiritualidade da outra
expressão, que é clássica. Namoro é banal, dá ideia de uma ocupação de vadios
ou sensuais, mas namorado é bonito. "Ala de
namorados" era a daqueles cavaleiros antigos que se bateram por
amor das damas... Ó tempos!
A minha impressão é que ele anda ou começa a andar namorado da viúva.
Outra impressão que também não escrevi é que a madrinha parece perceber o mesmo,
e tira daí certo alvoroço. Quando lá for agora hei de abrir todas as velas à
minha sagacidade, a ver se confirmo ou desminto estas duas impressões. Pode ser
engano, mas pode ser verdade.
Hoje, que não saio, vou glosar este mote. Acudo assim à necessidade de
falar comigo, já que o não posso fazer com outros; é o meu mal. A índole e a
vida me deram o gosto e o costume de conversar. A diplomacia me ensinou a
aturar com paciência uma infinidade de sujeitos intoleráveis que este mundo
nutre para os seus propósitos secretos. A aposentação me restituiu a mim mesmo;
mas lá vem dia em que, não saindo de casa e cansado de ler, sou obrigado a
falar, e, não podendo falar só, escrevo.
13 de novembro
Aguiar veio a mim, e disse:
- Já sei que gostou da marinha.
- Gostei muito. Está adiantada?
- Está.
- A artista não tem parado?
- Não; vai lá todos os dias e pinta com amor.
- Com amor? Essa é a corda principal dela. Não sei se já lhe disse que o
que me encanta na afeição que ela tem aos senhores, e particularmente a D.
Carmo, é o toque de subordinação graciosa, que lhe dá totalmente um ar de
filha. É isso, é a obediência discreta e pontual com que ela acode aos desejos
dos seus pais de coração.
- Diz bem, conselheiro.
Estávamos no Tesouro,
aonde fomos por negócios, e saímos dali a pé, caminho do Rossio,
a pegar um bonde, mas não pegamos nada. A conversação foi o melhor veículo; é
desses que têm as rodas surdas e rápidas, e fazem andar sem solavancos. Viemos
descendo, a continuar o assunto, e a dizer cousas interessantes; eu, pelo
menos, porque ele vivia mais nos olhos e nos ouvidos que na boca. Ouvia com
atenção, e alguma vez com desatenção; no segundo caso, era todo olhos, mas tão
alongados, que esqueciam a rua e o companheiro.
Uma das confidências que me fez merece ser posta aqui. Para me dar razão
no que lhe disse da subordinação graciosa da viúva, referiu-me que as duas
costumavam ir à missa, ao domingo, na matriz da
Glória; a viúva vinha sempre acompanhar D. Carmo ao Flamengo,
donde tornava logo para Botafogo,
se não almoçava com eles.
- Carmo, para a não obrigar a vir tão longe, ia algum domingo ouvir a
missa a Botafogo,
mas Fidélia vinha quase sempre à Glória.
- E agora já não vem?
- Agora Carmo é que não vai a uma nem a outra parte, ou só raro. A minha
pobre mulher anda cansada; lá tem o seu livro, com as suas rezas marcadas. Ao
domingo, à mesma hora, antes de catar notícias nas gazetas, pega em si e no
livro, e acompanha a missa toda. Eu, que já sei a hora, não a perturbo nunca;
se me acontece por acaso entrar no gabinete onde ela tem o seu altarzinho e o
seu Cristo,
recuo a tempo, mas não lhe arranco os olhos da página; é como se não entrasse
ninguém. Acaba, beija a imagem e torna ao mundo. Não sai de casa sem a beijar
primeiro, como um pedido de proteção, nem volta sem fazer o mesmo, ainda
vestida e de chapéu, como a dar graças. O mesmo ao deitar e ao levantar.
Como esses, referiu Aguiar outros hábitos caseiros da consorte, que ouvi
com agrado. Não seriam grandemente interessantes, mas eu tenho a alma feita em
maneira que dou apreço ao mínimo, uma vez que seja sincero. Não diria isto a
ninguém cara a cara, mas a ti, papel, a ti que me recebes com paciência, e
alguma vez com satisfação, a ti, amigo velho, a ti digo e direi, ainda que me
custe, e não me custa nada. Creio que outras damas leiam também a missa em
casa, ou por fadiga, ou por doença, ou por estar chovendo, e há sempre que
louvar em pessoa que respeita os seus elos espirituais. Só me aborrece a que os
enfia ao modo de colar para dar melhor vista ao pescoço. Tal não é aquela boa
senhora do Flamengo.
A piedade dessa estende-se à memória da mãe e do pai, à saudade das amigas, e
(ainda que me canse repeti-lo) à amizade dos seus dous filhos de empréstimo.
20 de novembro
Já lá voltei três vezes. Achei sempre D. Carmo, Fidélia e Tristão. Da
terceira vez Aguiar chegou mais cedo, e assistiu às últimas pinceladas.
Creio que sim; creio que o moço admira menos a tela que a pintora, ou
mais a pintora que a tela, à escolha. Uma ou outra hipótese, é já certo que
está namorado. Chegou ao ponto de esquecer-nos e ficar preso dela, embebido
nela, levado por ela. Eu, com a arte que o Diabo me
deu, divido a atenção entre a mãe e os dous filhos para concertar a cortesia e
a curiosidade, e ambas saem satisfeitas do meu gesto.
Quando escrevi há dias (duas ou três vezes) que "a moça Fidélia
foge a alguma cousa, se não foge a si mesma", tinha em mira o afastamento
em que ela vinha estando da casa da amiga. Ei-la que continua a lá ir, e a se
deixar ver do irmão que a amiga lhe deu. Ou não lhe quer fugir - ou (cousa mais
grave) não quer fugir a si mesma. Mas ainda não vi nada claro; parece antes
perdoar.
30 de novembro
Tristão convidou-me a subir às Paineiras,
amanhã; aceitei e vou.
Há dez dias não escrevo nada. Não é doença ou achaque de qualquer
espécie, nem preguiça. Também não é falta de matéria, ao contrário. Nestes dez
dias soube que novas cartas chamam Tristão à Europa,
agora formalmente, ainda que sem instância; há eleições próximas. Tristão
resolveu não ir já, antes do princípio do ano, mas não pode deixar de ir. Tais
foram as novidades que me deram no Flamengo e
fora dali. Fora ouvi-as da boca da graciosa Cesária, que me disse com
melancolia:
- Ele gosta da Fidélia, mas é claro que lhe prefere a política.
Era a melancolia do prazer recôndito, ou como se deva dizer para
explicar um achado gostoso que a gente precisa disfarçar em tristeza. Havia
naquela palavra tal ou qual condenação do moço, mas só aparente; o sentido
verdadeiro era o gosto de ver a dama preterida. Para encobri-lo bem, D. Cesária
disse todo o mal que pensa do rapaz, e não é pouco. A graça foi a mesma de seu
uso, as lembranças, agudas, as maneiras, elegantes. Ri-me naturalmente, negando
ou calando. Dentro de mim achei que a opinião era injusta, mas talvez este meu
conceito seja filho da afeição que vou tendo ao moço. Ela cresce-me, com a
vista e a prática dos seus dotes, e naturalmente com a afeição e a confiança
que me tem, ou parece ter. Seja o que for, a verdade é que não o defendi de todo,
mas só em parte, e a graciosa dama apelou para o meu gosto, o equilíbrio do meu
espírito, o longo conhecimento que tenho dos homens... Todas as grandes
qualidades deste mundo.
1 de dezembro
Volto espantado das Paineiras.
Lá fui hoje com Tristão. No fim do almoço, acima da cidade e do mar, ouvi-lhe
nem mais nem menos que a confissão do amor que dedica à formosa Fidélia. Uso os
seus próprios termos: dedica à formosa Fidélia. O verbo não é vivo, mas pode
ser elegante e, em todo caso, exprime a unidade do destino. As teses escolares
dedicam-se a pais, a parentes, a amigos; o amor é tese para uma só pessoa.
Novidade não era, a confissão é que me espantou, e provavelmente ele leu
esse efeito em mim. Não lhe respondi logo, salvo por um gesto de aquiescência,
preciso em tais casos, não se devendo duvidar nunca da boa escolha, ao
contrário.
- Não disse isto a ninguém, conselheiro, nem à madrinha nem ao padrinho.
Se lho faço aqui é que não ouso fazê-lo àqueles dous, e não tenho terceira
pessoa a quem o diga. Di-lo-ia a sua irmã, se me atrevesse a tanto; mas apesar
do bom trato, não lhe acho franqueza igual à sua. Parece-lhe que o meu coração
escolhe bem?
- Pergunta ociosa, doutor; basta amar para escolher bem. Ao Diabo que
fosse era sempre boa escolha.
- Essa é a regra, sei; mas no caso particular daquela senhora não acha
que é admirável?
- Acho.
- Também assim penso; independentemente da cegueira que me daria a
paixão, vejo claro que a escolha é perfeita. Já tivemos ocasião de falar nela,
e combinamos no parecer. Digo-lhe até que foi esse o motivo que me levou a
confessar-me hoje. Lembra-se que há algum tempo, em sua casa, almoçando...?
Concordamos em achar-lhe todas as prendas morais e físicas. Compreendi que me
aprovaria, e resolvi falar-lhe acerca deste sentimento e seus efeitos.
- A resposta estava dada, como diz; não há consulta nova.
- Há; ainda lhe não disse tudo.
- Pois diga o resto. Disponho-me a ouvi-lo, como se eu mesmo fosse
rapaz. Gosta dela há muito tempo?
- Logo que cheguei comecei a gostar dela.
- Não reparei.
- Nem ela, nem eu também. Senti que lhe achava alguma cousa, mas a
austeridade de viúva e a minha próxima volta não deixavam entender bem o que
era. Poderia ser dessas preferências que se dão a mulheres, não havendo plano
nem possibilidade de as receber na vida. Além dessa cousa, gostava
de a ouvir falar, de lhe comunicar ideias e observações, e todas as nossas
conversas eram interessantes. Os seus modos, aquele gesto de acordo manso e
calado, tudo me prendia. Um dia entrei a pensar nela com tal insistência que
desconfiei. Recorda-se quando resolvi ir à fazenda de Santa-Pia com ela e o
tio?
- Recordo-me.
- Era já a dificuldade de ficar aqui sem ela, não sabia por quanto
tempo; e depois contava que na roça, mais a sós, chegaria a fazer-lhe sentir
tudo o que me pesava e dispô-la a ouvir-me. Resolução perdida; ela não foi e eu
tive de acompanhar o desembargador sozinho; pouco depois voltei...
- Lembra-me.
Tristão deteve-se naquele ponto e estendeu os olhos abaixo e ao longo.
Um criado veio servir-nos café, enquanto dous grandes pássaros negros cortavam
o ar, um atrás do outro. Podia ser um casal, ele que a perseguia, ela que
negava. Então eu, para sorrir da confidência, sugeri a ideia de que a bela
Fidélia estivesse a fazer o mesmo gesto da ave fugitiva; talvez já gostasse
dele. Não me retrucou sim, nem não, mas a expressão do rosto era negativa, e
eu, para não perder o resto, perguntei-lhe:
- Quem lhe diz que não, doutor?
A curiosidade ia-me fazendo deslizar da discrição, e acaso da
compostura; nem só a curiosidade, um pouco de temperamento também. Tem-se visto
muito rapaz falar de damas amadas, e muita viúva sair da viuvez ou ficar nela.
Naquele caso os dous personagens davam interesse especial à aventura. Cá me
acordava a afirmação de mana Rita. Que Fidélia não casa. Que não casará nunca.
A situação de ambos, a vida que chama Tristão para fora daqui, a morte que
prende a viúva à terra e às suas saudades, tudo somava o interesse da aventura,
não contando que a esses motivos de separação, eu próprio ia-me a outros de
união possível dos dous.
Tristão não se deixou rogar muito; desfiou vários dos seus enganos e
desenganos. Custou-lhe a princípio, mas, dito um caso, vieram outros, e com
pouco sabia eu que aparências iludiram as suas esperanças, e que desilusões as
mataram. Agora crê deveras o pior.
Não lhe dei as minhas razões contrárias; podiam não ser mais que
aparências. Também não aludi às suspeitas que atribuo à madrinha e ao padrinho;
eles podem enganar-se como eu. Ao demais - e é o principal - isso viria dando
ao meu papel aspeto menos grave do que convinha. Basta que já aquela
conversação lhe fosse deitando as manguinhas de fora - e a mim também; no fim
dos charutos, estávamos quase como dous estudantes do primeiro ano e do
primeiro namoro, ainda que com outro estilo.
Creio que, ao descer, vinha arrependido ou vexado da confissão; trocou
de assunto, conversamos de cousas alheias, do trem e da estrada, do mato e do
morro, e cá embaixo um pouco da política de ambos os países.
2 de dezembro
Uma observação. Como é que Tristão foi tão franco ontem nas Paineiras,
e tão cauteloso naquele dia do largo de São
Francisco, onde dei com ele embebido a ver entrar a moça no carro?
"Grande talento!" exclamou então, o talento de pianista, que ela não
levava nas saias. E já então gostava dela, pelo que lhe ouvi ontem, visto que
começou a querer-lhe pouco depois de chegado. A razão é que só agora a paixão
subiu tão alto; isso, e a confiança que lhe inspiro. Não se pôde conter, é o
que foi.
3 de dezembro
Aires amigo, confessa que, ouvindo ao moço Tristão a dor de não ser
amado, sentiste tal ou qual prazer, que aliás não foi longo nem se repetiu. Tu
não a queres para ti, mas terias algum desgosto em a saber apaixonada dele;
explica-te se podes; não podes. Logo depois entraste em ti mesmo, e viste que
nenhuma lei divina impede a felicidade de ambos, se ambos a quiserem ter
juntos. A questão é querê-lo, e ela parece que o não quer.
5 de dezembro
A marinha está quase pronta. Mana Rita veio encantada da tela, da autora
e da dona, porque Fidélia destina a obra a D. Carmo. Esteve só com as duas
amigas; não achou lá Tristão nem Aguiar, e conversaram as três longamente, até
que a viúva se despediu e tornou para Botafogo,
apesar de instada para jantar noFlamengo;
não podia e partiu antes de cair a tarde.
Rita ficou e ainda bem que ficou, porque ouviu a D. Carmo a notícia do
amor de Tristão, com um acréscimo que aqui vai para ligar ao que escrevi nestes
últimos dias. Esse acréscimo é nada menos que o desejo de D. Carmo é de os ver
casados.
- Digo isto só à senhora e peço-lhe que não conte a ninguém - acabou D.
Carmo -, eu gostaria de os ver casados, não só porque se merecem, como pela
amizade que lhes tenho e que eles me pagam do mesmo modo.
Rita achou que D. Carmo dizia verdade, e achou mais que, casando-os,
teria assim um meio de prender o filho aqui. A mana é dessas pessoas que não
podem reter o que pensam, e confiou logo o achado à amiga. D. Carmo sorriu com
expressão de acordo; e foi o que pensou e me disse a própria Rita. Também assim
me pareceu, mas eu quis deitar a minha gota de fel do costume, e disse:
- Talvez a terceira razão seja a principal, se não foi única.
Rita acudiu que não. Única não era, não podia ser. Eu, por maldade e
riso, teimei que sim, mas dentro de mim acabei concordando com ela. As três
razões podiam combinar-se bem naquela senhora. A última, quando muito, daria
maior alma às duas primeiras: era natural. Não tardaria a perder o filho
postiço, que se vai embora, e a filha de empréstimo pode vir a amar outro e
casar, e ainda que não saia daqui, seguirá outra família. Unidos os dous aqui,
amados aqui, tê-los-ia ela abraçados ao próprio peito, e eles a ajudariam a
morrer. Resumo assim o que pensei e agora confirmo, acrescentando que o confiei
também à mana.
- O que eu disse há pouco foi por gracejo; acho que você tem razão. E
parece-lhe que ela alcance o que deseja?
- Não afirmo nem nego, mas já me parece difícil; aqui está por quê.
Tristão e Aguiar chegaram pouco antes da hora de jantar, e jantamos. Aguiar
indagou da pintura, D. Carmo respondeu-lhe, ele ouviu com interesse, e creio
que ele e ela olharam alguma vez para o afilhado; Tristão não dizia nada;
parecia até não atender ao que eles diziam.
- Talvez fingisse.
- No fim do jantar, antes do café, Tristão declarou aos padrinhos que
talvez parta antes do fim do ano...
- Antes?
- Antes.
- E eles não sabiam?
- Parece que não, porque ficaram desconsolados, e o jantar acabou
triste.
- Mas como é que ele não dissera isso ao padrinho, vindo com ele de
fora?
- Não vieram juntos; Tristão chegou depois do Aguiar. Pensávamos até que
jantasse fora de casa. Foi assim; no fim deu notícia da partida. Contou que uma
carta atrasada... mas não mostrou a carta; terá mostrado depois que saí de lá.
Pensei comigo, e expliquei:
- Mana, pode ser até que não haja carta nenhuma; ele foge-lhe, não tem
esperanças, quer ir quanto antes. Já isso de chegar tarde a casa prova que não
quer encontrar a viúva; é o que é. Os dous velhos não procuraram dissuadi-lo da
resolução?
- A princípio não disseram nada; ficaram acabrunhados. Depois o Aguiar
entrou a dizer alguma cousa, que D. Carmo ouviu e apoiou apenas com os olhos;
estava triste, e para me não deixar só, falava comigo; eu respondia
apertando-lhe os dedos com piedade sincera. Olhe, mano, até eu cuidei de pedir
ao rapaz que se demorasse mais tempo. Ele agradeceu a minha intervenção com um
sorriso também triste, mas declarou que não podia; pedem-lhe muito que volte.
- Bem - disse eu rindo -, você mostrou aí que se compadeceu da amiga D.
Carmo, mas você esquece agora neste mês de dezembro a aposta que fez comigo no
princípio de janeiro. Não se lembra do que me disse no cemitério? Não apostou
que a viúva Noronha não tornaria a casar? Como é que pediu hoje ao Tristão que
ficasse - com o pensamento íntimo de o ver casar com ela?
Concluí pegando-lhe no queixo e levantando-lhe o rosto para mim, que
estava de pé. A mana confessou a contradição e explicou-a. Antes de tudo, o seu
pensamento era poupar a tristeza da amiga; seriam alguns dias ou semanas mais
que passariam juntos, eles e o afilhado. Mas bem podia ser também que Fidélia,
aconselhada por eles, acabasse desposando Tristão; as circunstâncias seriam
outras.
- Logo, eu tinha razão naquele dia?
- Inteiramente não; mas tudo pode acontecer neste mundo.
- Neste mundo e no outro.
Quis acabar a conversação notando-lhe que, a despeito do pedido de D.
Carmo, quando lhe confiou a intenção recôndita e lhe recomendou segredo, ela
acabava de me revelar tudo; mas o coração tolheu-me o remoque, por mais
fraternal e inocente que me saísse. Podia ressentir-se, e ela não o merece; ela
é boa.
Em resumo, pode ser que Rita tivesse razão no cemitério. Se a viúva
Noronha, como lá escrevi há dias, foge a si mesma, é que tem medo de cair e
prefere a viuvez ao outro estado.
10 de dezembro
Fidélia sabe já que Tristão resolveu partir no dia 24. Foi ele mesmo que
lho disse em casa dela.
15 de dezembro
Se eu estivesse certo de poder casar os dous, casava-os, por mais que me
custe confessá-lo a mim mesmo, e, a rigor, não custa muito. Estou só, entre
quatro paredes, e os meus sessenta e três anos não rejeitam a ideia do ofício
eclesiástico. Ego conjugo
vos...
A razão de tal sentimento é a tristeza que vejo nos padrinhos, à medida
que se aproxima o dia 24. D. Carmo perguntou a Tristão implorativamente por que
é que não adiava para 9 de janeiro a viagem; eram mais quinze dias que lhe
dava. Ele respondeu que não pode. Eu, algo incrédulo, perguntei-lhe se já
comprara bilhete; disse-nos que vai comprá-lo amanhã. A minha ideia é que ele
espera achar todas as passagens tomadas, e adiar a viagem por força maior. Não
lho disse, mas tudo se deve esperar dos homens, e particularmente dos
namorados.
Foi ontem que falamos disso os três; Aguiar estava presente e não
opinou. Pouco depois chegou o desembargador com a sobrinha; tinham saído em visita
ao presidente do tribunal, mas, apenas na rua, Fidélia propôs ao tio virem
passar a noite no Flamengo,
e vieram; eram nove horas.
Tudo o que se passou até às dez e meia teria aqui três ou quatro
páginas, se eu não sentisse algum cansaço nos dedos. Páginas de conjeturas,
porque os dous apenas se falaram, mas conjeturas firmadas na comoção visível de
um e de outro, nos silêncios da Fidélia, embora orlados da atenção que dava à
amiga. Os quatro homens pouco a pouco nos ligamos. Campos chegou a propor
cartas, nenhum de nós três aceitou a ideia. Aguiar ia aceitando, ainda que a
meia voz, mas Tristão alegou dor de cabeça ou dor nas costas, e era verdade;
tinha passado toda a manhã curvado, a arranjar cousas velhas. O mesmo cansaço
dos dedos agora é resto da fadiga de ontem; ficamos a conversar, até que as
duas visitas saíram, e eu com elas.
20 de dezembro
Sucedeu como eu cuidava. Tristão achou todas as passagens de 24 vendidas.
Vai no dia 9. O pior é que, sendo natural comprar bilhete desde logo, para lhe
não acontecer o mesmo, não comprou cousa nenhuma. Sei disto por ele, a quem
perguntei se se não aparelhava já; respondeu que não, que há tempo. Agora
imagino que, se houver tempo e achar bilhete, ele pode converter a necessidade
de amar a moça no desejo de ceder aos velhos, e ficará mais duas ou três
semanas. Os velhos não serão a causa verdadeira, mas não há só filhos de
empréstimo, há também causas de empréstimo.
22 de dezembro
A verdadeira causa - ou uma delas - estava hoje no Flamengo,
acabando a marinha. Tristão lá estava também, e ambos faziam a estética um do
outro. Ele admirava menos a tela que a pintora, ela, menos o espetáculo que o
admirador, e eu via-os com estes olhos que a terra fria há de comer.
D. Carmo dava-me a parte de atenção a que a cortesia a obrigava, mas
tão-somente essa. Olhava para os dous a miúdo, a espreitá-los, e, se fosse
preciso, a animá-los. Mas já não era preciso. Um e outro esqueciam-se de nós e
deixavam-se ir ao som daquela música interior, que não é nova para ela.
Observando a moça e os seus gestos, pensei no que me disseram há uma
semana, a ideia que ela teve de ir passar o verão em Santa-Pia, que ainda não
vendeu. Não lhe importaria lá ficar com os seus libertos; faltou-lhe pessoa que
a acompanhasse. Ultimamente pensou em ir para Petrópolis,
mas aí é provável que fosse também Tristão, e a intenção dela era fugir-lhe,
creio eu. Creio também que ela foi sincera em ambos os projetos. Fidélia ouviu
à porta do coração aquele outro coração que lhe bate, e sentiu tais ou quais veleidades
de trancar o seu. Digo veleidades, que não obrigam nem arrastam a pessoa. A
pessoa quer cousa diversa e oposta, e o sentimento, se não é já dominante, para
lá caminha.
Uma impressão que trago do Flamengo é
que D. Carmo despediu-se de mim, quando me levantei, com o mesmo prazer que lhe
dei há dias, para ficar a sós com eles. Não lhes terá dito nada com palavras,
mas, até onde pode ir a alma sem elas, foi decerto. Só a compostura da boa
senhora terá impedido que os abrace e lhes diga: Amem-se, meus filhos!
28 de dezembro
Estive hoje com Tristão, e não lhe ouvi nada a não ser que recebeu
cartas de Lisboa,
cartas políticas; também as recebeu do pai e da mãe. A mãe, se ele se demorar
muito, diz que virá ver a sua terra. Deu-me notícias dos seus outros pais de
cá, mas não falou da moça.
1889
2 de janeiro
Enfim, amam-se. A viúva fugiu-lhe e fugiu a si mesma, enquanto pôde, mas
já não pode. Agora parece dele, ri com ele, e no dia nove chorará por ele,
naturalmente, se ele lhe não estancar a fonte das lágrimas com um gesto. As
visitas são agora diárias, os jantares, frequentes; D. Carmo acompanha algumas
vezes o afilhado a Botafogo,
e Aguiar vai buscá-los.
Se já estão formalmente declarados é o que não sei; terá faltado ocasião
ou ânimo a ele para confiar à outra o que ela sabe pelos olhos, mas não tardará
muito. O que aí digo é o que sei por observações e conjeturas, e principalmente
pela felicidade que há no rosto do casal Aguiar. A mana não tem saído de casa;
no dia de ano-bom fui jantar com ela, mas não falamos disso.
7 de janeiro
Tristão já não vai a nove, por uma razão que me não deu, nem lha pedi.
Só me disse que não vai; escreveu para Lisboa e
ia levar as cartas ao correio.
9 de janeiro
Segundo aniversário da minha volta definitiva ao Rio.
Não ouvi hoje os pregões do ano passado e do outro. Desta vez lembrou-me a data
sem nenhum som exterior; veio de si mesma. Esperei ver a mana entrar-me em casa
e convidar-me a ir com ela ao cemitério. Não veio (são quatro horas da tarde)
ou porque se não lembrou, ou por lhe não parecer necessário todos os anos.
Quem sabe se não iríamos dar com a viúva Noronha ao pé da sepultura do
marido, as mãos cruzadas, rezando, como há um ano? Se eu tivesse ainda agora a
impressão que me levou a apostar com Rita o casamento da moça, poderia crer que
tal presença e tal atitude me dariam gosto. Acharia nelas o sinal de que não
ama a Tristão, e, não podendo eu desposá-la, preferia que amasse o defunto. Mas
não, não é isso; é o que vou dizer.
Se eu a visse no mesmo lugar e postura, não duvidaria ainda assim do
amor que Tristão lhe inspira. Tudo poderia existir na mesma pessoa, sem
hipocrisia da viúva nem infidelidade da próxima esposa. Era o acordo ou o
contraste do indivíduo e da espécie. A recordação do finado vive nela, sem
embargo da ação do pretendente; vive com todas as doçuras e melancolias
antigas, com o segredo das estreias de um coração que aprendeu na escola do
morto. Mas o gênio da espécie faz reviver o extinto em outra forma, e aqui lho
dá, aqui lho entrega e recomenda. Enquanto pôde fugir, fugiu-lhe, como escrevi
há dias, e agora o repito, para me não esquecer nunca.
12 de janeiro
Amanhã (13) faz anos a bela Fidélia. Tal a razão que levou Tristão a
transferir a viagem de nove para outro dia que ainda não fixou. Assim o disse
aos padrinhos, que o aprovaram naturalmente e alegremente; esta mesma razão me
foi confessada por ele hoje, quando o encontrei a buscar uma lembrança para
deixar à viúva. Tais foram as suas palavras, mas não traziam alma de convicção.
A razão da ficada é outra.
13 de janeiro
Antes de me despir quero escrever o que ouvi agora há pouco (meia-noite)
à picante Cesária. Vim com ela e o marido da casa do desembargador, onde fomos
tomar chá com a graciosa viúva. Os amigos desta lá estiveram, menos Rita, que
mandou cartão de cumprimentos; parece que está adoentada.
Não escrevo porque seja verdade o que D. Cesária me disse, mas por ser
maligno. Esta senhora se não tivesse fel talvez não prestasse; eu nunca a vejo
sem ele, e é uma delícia. Ou já sabia da afeição da viúva ao Tristão, ou
reparou nela esta noite. Fosse como fosse, disse-me que Tristão não voltará tão
cedo aLisboa.
- Sim - concordei -, parece que lhe custa muito deixar os padrinhos.
- Os padrinhos? - redarguiu Cesária rindo -. Ora, conselheiro!
Certamente chama assim aos dous olhos da viúva, que são bem ruins padrinhos.
Mas lá tem consigo a água benta para o batizado.
Não entendendo, perguntei-lhe que água benta era, e que batizado. O
marido, com a sua rabugem do costume, respondeu que a água benta era o
dinheiro, e esfregou o polegar e o índice; ela riu apoiando, e eu compreendi
que atribuíam ao moço uma afeição de interesse.
Quis ponderar à dama que isto que me dizia agora estava em contradição
com o que uma vez lhe ouvi. Ouvi-lhe então (e creio que o escrevi neste Memorial)
que Tristão preferia a política à viúva, e por isso a deixava. Não lho lembrei
por duas razões, a primeira é que seria inútil, e até prejudicial às nossas
relações; a segunda é que ofenderia a própria natureza. D. Cesária pensa
realmente o mal que diz. A contradição é aparente; está toda no ódio que ela
tem a Fidélia, e este sentimento é a causa íntima e única das duas opiniões
opostas. Preterida pela política ou preferida pelo dinheiro, tudo é diminuir a
outra dama. A essas duas razões para ouvi-la calado acresceu a forma. Tudo lhe
sai com palavras relativamente doces e honestas, ficando o veneno ou a intenção
no fundo. Há ocasiões em que a graça de D. Cesária é tanta que a gente tem pena
de que não seja verdade o que ela diz, e facilmente lho perdoa.
Tudo isto considerado, e mais a hora, a viagem curta, e a presença do
marido, que diabo ganhava eu em desfazer o que ela dizia? Comigo, sim, logo que
eles me deixaram, vim pensando no Tristão, que é também rico, que ama deveras a
viúva, é amado por ela, e acabará casando. Vim recordando a noite e os seus
episódios, que não escrevo por ser tarde, mas foram interessantes. O
desembargador parece que já descobriu a inclinação da sobrinha, e não a
desaprova. O casal Aguiar estava feliz; ainda lá ficou para vir com o afilhado.
23 de janeiro
Agora me lembra que amanhã faz um ano das bodas de prata do casal
Aguiar. Lá estive naquela festa íntima, que me deu prazer grande. Também lá
esteve Fidélia, e fez o seu brinde de filha à boa Carmo, tudo correu na melhor
harmonia. Ainda cá não chegara Tristão, nem era esperado. Oxalá me não esqueça
de lhes mandar cedo o meu bilhete de felicitações, e pode ser que lá vá de
noite. Vou, vou.
... Rita escreveu-me agora (seis da tarde) pedindo que a espere amanhã,
à noite, para irmos juntos ao Flamengo.
Vou; há seis dias que lá não piso.
25 de janeiro
Não havia muita gente no Flamengo.
Os quatro - casal Aguiar, Tristão e Fidélia (não conto o desembargador, que
estava jogando) -, os quatro pareciam viver de uma novidade recente e desejada.
Quem sabe se a mão da viúva não foi já pedida e concedida por ela? Comuniquei
esta suposição a Rita, que me disse suspeitá-lo também.
29 de janeiro
Tínhamos razão na noite de 24. Os namorados estão declarados. A mão da
viúva foi pedida naquele mesmo dia, justamente por ser o 26º aniversário do
casamento dos padrinhos de Tristão; foi pedida em Botafogo,
na casa do tio, e em presença deste, concedida pela dona, com assentimento do
desembargador, que aliás nada tinha que opor a dous corações que se amam. Mas
tudo neste negócio devia sair assim, de acordo uns com outros, e todos consigo.
D. Carmo e Aguiar, que haviam abraçado a Tristão com grande ternura
antes e depois do pedido, estavam naquela noite em plena aurora de
bem-aventurança. Valha-me Deus, pareciam ainda mais felizes que os dous. A
viúva punha certa moderação na ventura, necessária à contiguidade dos dous
estados, mas esquecia-se algumas vezes, e totalmente no fim. Nada se sabia
então da novidade, e agora mesmo creio que só eu a sei (assim mo disse hoje o
noivo); alguns poderiam supô-la, como a mana Rita, que já sabia metade dela; os
menos sagazes terão dito consigo, ao vê-los, que é bom que Fidélia vá aliviando
o luto do coração.
Referindo-me o que se passou há cinco dias, Tristão explicou esta
comunicação nova: sentia-se obrigado a contar-me o final de um idílio, cujo
princípio me confiara em forma elegíaca. Usou dessas mesmas expressões, e quase
me citou Teócrito.
Eu apertei-lhe a mão com sincero gosto, e prometi calar.
Em verdade, estimo vê-los unidos. Já escrevi que era um modo de acudir à
tristeza do casal Aguiar. Agora acrescento (se já o não disse também) que eles
se merecem, são moços, belos, amam-se, têm o direito natural e legítimo de se
possuírem.
- Não publicamos oficialmente o nosso casamento próximo - concluiu
Tristão - porque eu escrevi a meus pais, e só nos casaremos depois que me
chegar a resposta. A resposta é sabida, e se pudesse ser contrária, nem por
isso deixaríamos de casar-nos; todavia, não quero publicar já o acordo, é uma
forma de respeito aos velhos.
Em seguida começou a desfiar as excelentes qualidades da moça. Já lhe
ouvira algumas e conhecia-as todas, mas quando se trata com esta espécie de
gente é preciso ter a maior indulgência do mundo. Tristão falava com tal
sinceridade e gosto que seria duro não lhe dar ouvidos complacentes e palavras
de aprovação; dei-lhos; ele acabou pedindo-me o primeiro abraço de pessoa
estranha; dei-lho apertado.
2 de fevereiro
O abraço que lá contei atrás fez-me bem; foi sincero. Podia ser afetado
ou apenas de cortesia, mas não foi; gostei de ver feliz aquele rapaz, e com ele
a dama, e com eles os dous velhos de cá e os de lá.
Talvez seja engano meu, mas acho a viúva agora mais bonita. A causa
disto pode ser a mudança próxima do estado. A melancolia de antes era
verdadeira, mas estranha ou hóspede, não sei como diga para significar uma
espécie de visita de pêsames, poucos minutos e poucas palavras. Já lá escrevi,
há três semanas, a 9 do mês passado, alguma cousa que de certo modo explica e
ata os dous estados.
6 de fevereiro
Não há como um grande segredo para ser divulgado depressa. Além de mim,
que sei, e de Rita, que desconfia, há já quem afirme que os dous se casam; ou porque
o sabem ou porque desconfiam somente, mas afirmam. Osório, que ouviu falar
disso, recebeu a notícia como um grande golpe novo e inesperado. Nem faltarão
outros que gostem dela ou morram por ela, e façam figas ao Tristão.
Verdade é que Osório estava já desenganado, mas foi isto mesmo que lhe
reabriu a ferida. O desengano da parte dela era a fidelidade ao morto; desde
que ela vai para outro, podia ir para ele, e é isto que o irrita, como sucede
ao parceiro do gamão que dá com o copo no tabuleiro se lhe sai o pior número de
dados.
10 de fevereiro
A felicidade é palreira. D. Carmo ainda me não disse que os dous estão
para casar, mas já hoje me confiou que escreveu à comadre, mãe de Tristão, a
quem não escreve há muito. Justamente pelo mesmo paquete que levou a carta do
afilhado. Naturalmente reforçou o pedido e analisou as graças físicas e morais
de Fidélia, e se lhe não pediu que os deixe cá, e venha ela também, acabará por
aí. Nessa ocasião me dirá o resto, ou antes.
12 de fevereiro
Estava com desejo de ir passar um mês em Petrópolis,
mas o gosto de acompanhar aqueles dous namorados me fez hesitar um pouco, e
acabará por me prender aqui. Rita tem o mesmo gosto, e j á agora os frequenta
mais. Ontem disse-me que o casamento é certo.
- Mas quem disse a você que eles se casam?
- Ninguém me disse; eu é que adivinhei. D. Carmo, a quem falei nisto,
ficou um pouco embaraçada; não queria confessar e tinha vergonha de negar, é o
que é; mas eu desconversei e falei de outra cousa. Só se eles não lhe disseram
ainda nada...
Não sei que escrúpulo me deteve a língua; não lhe contei o que sabia da
parte do próprio Tristão, mas não me custou nada; apenas retruquei disfarçando:
- Bem, a viúva não casa comigo, casa com outro, segundo lhe parece: mas
então você confessa que perdeu a aposta.
- Não digo que não. Tudo está nas mãos de Deus.
- Lembra-se daquele dia no cemitério?
- Lembra-me; há um ano.
Repito, não me custou ser discreto; é virtude em que não tenho merecimento.
Algum dia, quando sentir que vou morrer, hei de ler esta página a mana Rita; e
se eu morrer de repente, ela que me leia e me desculpe; não foi por duvidar
dela que lhe não contei o que já escrevi atrás.
Leia, e leia também esta outra confissão que faço das suas qualidades de
senhora e de parenta. Talvez eu, se vivêssemos juntos, lhe descobrisse algum
pequenino defeito, ou ela em mim, mas assim separados é um gosto particular
ver-nos. Quando eu lia clássicos lembra-me que achei em João de
Barros certa resposta de um rei africano aos navegadores portugueses que
o convidaram a dar-lhes ali um pedaço de terra para um pouso de amigos.
Respondeu-lhes o rei que era melhor ficarem amigos de longe; amigos ao pé
seriam como aquele penedo contíguo ao mar, que batia nele com violência. A
imagem era viva e, se não foi a própria ouvida ao rei de África,
era contudo verdadeira.
*****
12 de fevereiro, onze horas da noite
Antes de me deitar, reli o que escrevi hoje ao meio-dia, e achei o final
demasiado céptico. A mana que me perdoe.
Chego do Flamengo,
onde achei Aguiar meio adoentado, na sala, numa cadeira de extensão, as portas
fechadas, grande silêncio, os dous sós. Tristão saíra para Botafogo,
não que não quisesse ficar, mas padrinho e madrinha disseram-lhe que fosse, que
Fidélia podia ficar assustada se ele não aparecesse, que lhe desse lembranças.
Tristão cedeu e foi. Eu cederia também, sem teimar muito, como provavelmente
este não teimou nada.
Não me disseram as cousas naqueles termos instantes, mas os que
empregaram vinham a dar neles. Continuam a calar o negócio do casamento.
A doença do Aguiar parece que é um resfriado, e desaparecerá com um
suadouro; nem por isso ele me despediu mais cedo. D. Carmo teimava em fazê-lo
recolher, e eu, em sair, mas o homem temia que eu viesse meter-me em casa
sozinho e aborrecido; foi o que ele mesmo me disse, e reteve-me enquanto pôde.
Não saí muito tarde, mas tive tempo de ver a dona da casa ir de um para outro
cabo do espírito, entre os cuidados de um e as alegrias de outro. Interrogativa
e inquieta, apalpava a testa e o pulso ao marido; logo depois aceitava a ponta
da conversação que ele lhe dava, acerca da Fidélia ou do Tristão, e a noite
passou assim alternada, entre o bater do mar e do relógio.
13 de fevereiro
Mandei saber do Aguiar; amanheceu bom; não sai para se não arriscar, mas
está bom. Escreveu-me que vá jantar com eles. Respondi-lhe que a doença foi um
pretexto para passar o dia de hoje ao pé da esposa, e por isso mesmo não me é
possível ir contemplar de perto esse quadro de Teócrito.
Realmente, não posso, tenho de ir jantar com o encarregado de negócios
da Bélgica.
Confesso que preferia os Aguiares, não que o diplomata seja aborrecido, ao
contrário; mas os dous velhos vão com a minha velhice, e acho neles um pouco da
perdida mocidade. O belga é moço, mas é belga. Quero dizer que, cansado de
ouvir e de falar a língua francesa, achei vida nova e original na minha língua,
e já agora quero morrer com ela na boca e nas orelhas. Todos os meus dias vão
contados, não há recobrar sombra do que se perder.
"Quadro de Teócrito",
escreveu-me Aguiar em resposta à minha recusa, "quer dizer alguma cousa
mais particular do que parece. Venha explicar-mo amanhã, entre a sopa e o café,
e contar-me-á então os planos secretos da Bélgica.
Tristão diz-me que jantará também, se V. Exa vier. Veja a que ponto chegou este
ingrato, que só janta conosco, se houver visitas; se não, some-se. Virá,
conselheiro?"
Respondi que sim, e vou. A frase final do bilhete traz uma afetação de
mágoa, algo parecido com prazer que se encobre; por outras palavras, sabe-lhes
aquela ausência do rapaz, uma vez que tudo é amarem-se duas criaturas que os
amam, e a quem eles amam também. Hei de ver que, acabado o jantar, os primeiros
que o remetem para Botafogo são
eles mesmos.
15 de fevereiro
Não, não remeteram Tristão para Botafogo.
Creio que o desejassem e o fizessem, mas não tiveram tempo. Tão depressa
acabamos de jantar, apareceram Fidélia e o tio. Concluí que os dous namorados
houvessem concertado isto mesmo.
Noite boa para todos. Eu próprio achei prazer em observar os dous. Não é
que eles não buscassem disfarçar, ela principalmente, mas não há disfarce que
baste em tais lances. A agitação interior transtornava os cálculos, e os olhos
contavam os segredos. Quando falavam pouco ou nada, o silêncio dizia mais que
palavras, e eles davam por si pendentes um do outro, e ambos, do céu. Foi o que
me pareceu. Não me pareceu menos que o céu os animava e que eles nos mandavam a
todos os diabos, a mim e aos três velhos, e aos pais de Tristão, aos paquetes,
às malas, às cartas que esperavam, a tudo que não fosse um padre e latim -
latim breve e padre brevíssimo, que os aliviasse do celibato e da viuvez. E
desta maneira diziam tudo o que sabiam de si.
Sabiam tudo. Parece incrível como duas pessoas que se não viram nunca,
ou só alguma vez de passagem e sem maior interesse, parece incrível como agora
se conhecem textualmente e de cor. Conheciam-se integralmente. Se alguma célula
ou desvão lhes faltava descobrir, eles iam logo e pronto, e penetravam um no
outro, com uma luz viva que ninguém acendeu. Isto que digo pode ser obscuro,
mas não é fantasia; foi o que vi com estes olhos. E tive-lhes inveja. Não
emendo esta frase, tive inveja aos dous, porque naquela transfusão desapareciam
os sexos diferentes para só ficar um estado único.
16 de fevereiro
Esqueceu-me notar ontem uma cousa que se passou anteontem, no começo do
jantar do Flamengo.
Aqui vai ela; talvez me seja precisa amanhã ou depois.
As primeiras colheres de sopa foram tanto ou quanto caladas e atadas.
Tinham chegado cartas da Europa (duas)
e Tristão as leu à janela, rapidamente, parecendo não haver gostado do assunto.
Comeu sem atenção nem prazer, a princípio. Naturalmente os padrinhos
desconfiaram alguma cousa, mas não se atreveram a perguntar-lhe nada. Olharam
para ele, à socapa; eu, para lhes não perturbar o espírito, não trazia assunto
estranho, e comia comigo. Depressa acabou o constrangimento, e o resto do
jantar foi alegre. Já lá deixei notado o que foi o resto da noite.
Se eu quisesse saber o que diziam as cartas bastaria ser indiscreto ou
descortês; era perguntar-lho em particular. Tristão me confiaria, creio, visto
que entro cada vez mais no coração daquele moço. Ouve-me, fala-me, busca-me,
quer os meus conselhos e opiniões. Mas a impressão má foi tão breve que
provavelmente não foi grande, e ele acabaria referindo tudo aos padrinhos
quando ficaram sós, e mais certamente à noiva, ontem. Devem estar já no período
dos segredos comuns.
18 de fevereiro
Telegrama dos pais de Tristão, dizendo-lhe que sim, que aprovam, que os
abençoam. O estilo telegráfico é mais conciso, mas foi assim que Tristão mo
traduziu de cor; contentamento traz derramamento. Apertei-lhe a mão com prazer;
ele quis um abraço. Foi aqui em casa, quando eu ia a sair, duas horas da tarde.
Saímos juntos, e tive de ouvir três panegíricos, um dos pais, outro dos
padrinhos, e o terceiro (aliás vigésimo) da própria dama dos seus pensamentos.
- D. Fidélia ficou contentíssima; diz que nunca duvidou da resposta, mas
a declaração telegráfica mostra que os velhos não se puderam guardar para o correio,
e responderam logo. Agora esperamos cartas, mas a publicação do casamento
faz-se já.
Ao sair do bonde ouvi um quarto panegírico, o dos seus chefes políticos,
que estão ansiosos por vê-lo na Câmara dos
Deputados e escreveram-lhe. Um deles chegou a confessar-lhe que
abandonaria a política, se ele a deixasse também.
- É exagero - concluiu Tristão sorrindo -, mas isto prova que me querem.
Também pode ter sido um meio de me chamar depressa; o outro limitou-se a dizer
que a minha eleição é certa, e a candidatura vai ser apresentada.
- Sim? Felicito-o.
- Não já, nem publicamente. Não disse nada disto aos padrinhos; a D. Fidélia,
sim, contei-lho em particular, e agora a V. Ex.a, pedindo-lhe a maior reserva.
Provavelmente eram as duas cartas do outro dia. Mas, de fato, partirá
ele, ou ainda está incerto se cederá ou não à esposa, caso ela pense em ficar?
A reserva que me pediu explicará uma e outra solução...
22 de fevereiro
Está publicado o casamento de Tristão e de Fidélia, não nos jornais, e
antes fosse neles também; está só publicado entre as relações das duas
famílias...
Eu gosto de ver impressas as notícias particulares, é bom uso, faz da
vida de cada um ocupação de todos. Já as tenho visto assim, e não só impressas,
mas até gravadas. Tempo há de vir em que a fotografia entrará no quarto dos
moribundos para lhes fixar os últimos instantes; e se ocorrer maior intimidade
entrará também.
25 de fevereiro
Quando mana Rita veio trazer-me a notícia oficial do casamento
mostrei-lhe a minha carta de participação, e fiz um gesto de triunfo,
perguntando-lhe quem tinha razão no cemitério,
há um ano. Ainda uma vez concordou que era eu, mas emendou em parte, dizendo
que a nossa aposta é que ela casaria comigo, e citou a aposta
entre Deus e o Diabo a propósito de Fausto, que eu lhe li aqui em casa no texto
de Goethe.
- Não, trapalhona, você é que me incitou a tentá-lo, e desculpou a minha
idade, com palavras bonitas, lembra-se?
Lembrava-se, sorrimos, e entramos a falar dos noivos. Eu disse bem de
ambos, ela não disse mal de nenhum, mas falou sem calor. Talvez não gostasse de
ver casar a viúva, como se fosse cousa condenável ou nova. Não tendo casado
outra vez, pareceu-lhe que ninguém deve passar a segundas núpcias. Ou então
(releve-me a doce mana, se algum dia ler este papel), ou então padeceu agora
tais ou quais remorsos de não havê-lo feito também... Mas, não, seria suspeitar
demais de pessoa tão excelente.
Aí fica, mal resumida, a nossa conversação. Não falamos da data do
casamento, nem da partida do casal, se partisse. Rita era pouca para referir
anedotas, repetir ditos e boatos, nenhum malévolo nem feio, todos
interessantes, ouvidos à gente Aguiar.
*****
Seis horas da tarde
Vim agora da rua, onde me confirmaram que o corretor Miranda teve hoje
de manhã uma congestão cerebral. Rita só me falou disso ao sair daqui, e
esqueceu-me escrevê-lo. Estávamos no patamar da escada quando ela me contou que
ouvira a notícia, no bonde, a dous desconhecidos.
- Só agora é que você me dá esta novidade? - disse-lhe eu -. Tem razão;
a vida tem os seus direitos imprescritíveis; primeiro os vivos e os seus
consórcios; os mortos e os seus enterros que esperem.
Também eu fiz o mesmo; só agora falo do homem.
26 de fevereiro
Miranda morreu ontem às dez horas; enterra-se hoje às quatro. Creio que
deixa a família bem. Dávamo-nos sem ser grandes amigos. Eu, se fosse a somar os
amigos que tenho perdido por esse mundo, chegaria a algumas dúzias deles. Os
jornais dizem que não há convites para o enterro; irei ao enterro sem convite.
*****
Dez horas da noite
Lá fui a enterrar o Miranda. Não valeria a pena contá-lo, se não fosse o
que me sucedeu no fim. Muita gente, as tristezas do costume. A própria Cesária
parecia abatida; não digo se chorava ou não. Aguiar e Campos também
compareceram, e outros conhecidos.
No cemitério, deitada a última pá de terra na cova, lembrou-me ir ao
jazigo dos meus. Desviei-me e fui; achei-o lavado como de costume e, depois de
alguns minutos, vendo que a gente não acabava de sair, caminhei para o túmulo
do Noronha, marido de Fidélia. Sabia onde ficava, mas ainda lá não fora.
Agora que a viúva está prestes a enterrá-lo de novo, pareceu-me
interessante mirá-lo também, se é que não levara tal ou qual sabor em atribuir
ao defunto o verso de Shelley que
já pusera na minha boca, a respeito da mesma bela dama: I can,
etc. Túmulo grave e bonito, bem conservado, com dous vasos de flores naturais,
não ali plantadas, mas colhidas e trazidas naquela mesma manhã. Esta
circunstância fez-me crer que as flores seriam da própria Fidélia, e um coveiro
que vinha chegando respondeu à minha pergunta: "São de uma senhora que aí
as traz de vez em quando..."
A pergunta foi feita tão naturalmente que o coveiro não teve dúvida em
responder, nem eu em contá-lo aqui. Também não quero calar o que vim pensando
comigo. Já não havia ninguém dos que acompanharam o enterro do Miranda. Chegava
outro, e entre um e outro meti-me no carro e vim para casa. Em caminho pensei
que a viúva Noronha, se efetivamente ainda leva flores ao túmulo do marido, é
que lhe ficou este costume, se lhe não ficou essa afeição. Escolha quem quiser;
eu estudei a questão por ambos os lados, e quando ia a achar terceira solução
chegara à porta da casa. Desci, dei ao cocheiro a molhadura de uso, e enfiei
pelo corredor. Vinha cansado, despi-me, escrevi esta nota e vou jantar. Ao fim
da noite, se puder, direi a terceira solução: se não, amanhã. A terceira
solução é a que lá fica atrás, não me lembra o dia... Ah! Foi no segundo
aniversário do meu regresso ao Rio de
Janeiro, quando eu imaginei poder encontrá-la diante da pessoa
extinta, como se fosse a pessoa futura, fazendo de ambas uma só criatura
presente. Não me explico melhor, porque me entendo assim mesmo, ainda que
pouco. D. Cesária, se vier a sabê-lo, é capaz de ir dizê-lo ao próprio Tristão,
com uma gota amarga ou corrupta, ou ambas as cousas para variar... Já já, não;
está ainda com a morte do cunhado na garganta, mas tudo passa, até os cunhados.
Sem data
Já lá vão dias que não escrevo nada. A princípio foi um pouco de
reumatismo no dedo, depois visitas, falta de matéria, enfim preguiça. Sacudo a
preguiça.
A noite passada estive em casa da viúva Noronha, quase que a sós com
ela; havia a mais o tio, um colega da Relação e
uma parenta velha. Tristão fora aPetrópolis,
levado pelos padrinhos até à barca da
Prainha, e por mim, que os vi passar na rua da
Quitanda, e subi ao carro convidado por eles. Não lhes ouvi então o
motivo da ida a Petrópolis,
mas já o sabia de véspera; foi examinar uma casa para o noivado. Concluí, não
sei por quê, que eles ficavam morando aqui.
Posso dizer que verdadeiramente fiquei a sós com ela. Tendo ouvido ao
tio que a sobrinha andava com saudades do velho amigo - que sou eu -, imaginei
que era mentira; o tio queria parceiro para cartas. Não fui e acertei; a
parenta foi ao voltarete com os dous magistrados.
Eu, relativamente a Fidélia, já cheguei à liberdade de lhe perguntar se
não tinha saudades do noivo. A resposta foi afirmativa, mas calada, um sorriso
breve e um gesto de sobrancelhas. Tristão foi o assunto mais frequente da
conversação, dizendo eu todo o bem que penso dele e francamente é muito, ao que
ela retrucava sem vaidade, antes com modéstia e discrição; em si mesma devia
estar feliz. Disse-me que ele recebera cartas da família, confirmando por
extenso o que já lhe mandara em resumo. A da mãe era toda ternura, citou-me
algumas frases da futura sogra, e foi buscar a carta dela para que eu a lesse
também.
- Cartas políticas não vieram?
- Parece que vieram.
Li e louvei muito a carta da paulista, que achei efetivamente terna,
ainda que derramada, mas ternura de mãe não conhece sobriedade de estilo. Era
escrita à própria Fidélia.
Vendo que esta gostava da conversa, não lhe pedi música; ela é que foi
de si mesma tocar piano, um trecho não sei de que autor, que se Tristão não
ouviu emPetrópolis não
foi por falta de expressão da pianista. A eternidade é mais longe, e ela já lá
mandou outros pedaços da alma; vantagem grande da música, que fala a mortos e
ausentes.
Sábado
Fidélia parece retrair-se agora depois das primeiras confidências que me
fez, e é natural. Como eu lhe pedisse notícias de Tristão, respondeu-me que não
as tinha, e falou de outra cousa; mas, falando-lhe eu da alegria recente de D.
Carmo, referiu-me as tristezas que lhe ouviu uma vez a propósito da volta do
afilhado, e do conselho que então lhe deu de ir com ele; ao que a boa senhora
retrucou que seria preciso separar-se do marido e não podia.
- Veja o perigo de dividir a alma com duas pessoas; eu, em moço, nunca o
fiz, menos o faria agora depois de velho.
Sobre isto (que não tinha sentido claro nem intenção) dissemos cousas
que não importa escrever aqui. Ela falou com graça, e provavelmente com
verdade, mas não tratamos do assunto principal do coração da moça. Eu
deleitava-me em apreciá-la por dentro, e por fora, não a achando menos curiosa
interna que externamente. Sem perder a discrição que lhe vai tão bem, Fidélia
abre a alma sem biocos, cheia de confiança, que lhe agradeço daqui.
9 de março
Tristão voltou de Petrópolis.
Deixou casa alugada em Vestfália,
casa posta pelo comendador Josino, que a vai deixar por algum tempo e segue com
a família para o sul; passou-lhe o contrato por três meses. D. Carmo e Fidélia
sobem a vê-la esta semana. Andam agora muito mais juntas, em casa ou na rua,
naturalmente a confidência é maior. Também eu ando com elas se as encontro,
também ouço as palavras de ambas.
- Mana - disse eu a Rita contando-lhe estas cousas em Andaraí -,
eis aqui em que acaba um velho e grave diplomata aposentado, sem os cansaços do
ofício, é certo, mas também sem as esperanças da promoção.
Rita entendeu e quase me puxou o nariz; preferiu dizer com saudade e
consolação que não tivesse ideias de cemitério. Esta alusão à visita que
fizemos ao jazigo da família, há mais de um ano, levou-me quase a confessar o
sentimento paterno que Fidélia acaso acorda em mim, mas recuei a tempo. Era
provável que Rita me dissesse, como fez um dia, que eram desculpas de mau
pagador. A mana gosta de mofar, sem criar ódio a ninguém, e menos a mim que a
outro. Ao cabo, há cousas que apenas se devem escrever e calar, é o que eu faço
a esta espécie de afeição nova que acho na viúva.
13 de março
Não há como a paixão do amor para fazer original o que é comum, e novo,
o que morre de velho. Tais são os dous noivos, a quem não me canso de ouvir por
serem interessantes. Aquele drama de amor, que parece haver nascido da perfídia da
serpente e da desobediência do homem, ainda não deixou de dar
enchentes a este mundo. Uma vez ou outra algum poeta empresta-lhe a sua língua,
entre as lágrimas dos espectadores; só isso. O drama é de todos os dias e de
todas as formas, e novo como o sol, que também é velho.
20 de março
D. Carmo tomou a si adornar a casa dos noivos. Soube isto pelo
desembargador, que chegou de Petrópolis e
deixou a casa "uma beleza" com a ordem em que ela dispõe os móveis e
os adornos, alguns destes obra já de suas mãos.
- Já? - perguntei.
- Já; D. Carmo trabalha depressa, e neste momento com grande afeição;
deu-lhes também muitos trabalhos seus. Converse com o Aguiar, que lhe dirá a
mesma cousa, e Tristão também; Fidélia é do mesmo parecer.
Rita, sem nada ver, acredita que seja assim; foi o que me respondeu.
Quanto a D. Cesária, também não viu nada, mas inclina-se a crer que lhe falte
alguma harmonia.
- Pode ser que não - aventurei.
- Não digo que D. Carmo não pudesse fazer alguma cousa capaz, mas com
esta pressa, às carreiras, não é provável. Demais ela não possui tanto gosto
como se quer; algum tem, mas falta-lhe graça. Aos noivos também; ele parece-me
espalhafatoso...
Quis defender os três, mas a certeza de que ela não tem de mim melhor
opinião, fez-me recuar, e dizer-lhe que nunca lhe achei tanto espírito. Fui
além; gabei-lhe os olhos. Como então passasse os dedos pelas sobrancelhas,
gabei-lhe a mão, e iria aos pés, se me mostrasse os pés, mas não me mostrou
mais nada.
21 de março
Explico o texto de ontem. Não foi o medo que me levou a admirar o
espírito de D. Cesária, os olhos, as mãos, e implicitamente o resto da pessoa.
Já confessei alguns dos seus merecimentos. A verdade, porém, é que o gosto de
dizer mal não se perde com elogios recebidos, e aquela dama, por mais que eu
lhe ache os dentes bonitos, não deixará de mos meter pelas costas, se for
oportuno. Não; não a elogiei para desarmá-la, mas para divertir-me, e o resto
da noite não passei mal. Estava em casa dela, onde a irmã escurecia tudo com a
sua viuvez recente. D. Cesária disse muitas cousas de fel e de mel, trocando-as
e completando-as com tal arte que alguma vez uma cousa parecia outra, e ambas
pareciam as duas unidas.
22 de março
A reflexão que vou fazer é curta; se tal não fora, melhor seria
guardá-la para amanhã, ou logo mais tarde, quando me recolher; mas é curta.
Curta e lúcida. Tristão pode acabar deitando ao mar a candidatura
política. Pelo que ouvi e escrevi o ano passado da primeira parte da vida dele,
não se fixou logo, logo, em uma só cousa, mudou de afeições, mudou de
preferências, a própria carreira ia ser outra, e acabou médico e político;
agora mesmo, vindo a negócios e recreios, acaba casando. Nesta parte não há que
admirar; o destino trouxe-lhe um feliz encontro, e o homem aceitará algemas, se
as houver bonitas, e aqui são lindas.
Já me fala menos de partidos e eleições, e não me conta o que os chefes
lhe escrevem. Comigo, ao menos, só me fala da viúva, e não creio que com outros
seja mais franco, nem mais extenso, dizendo as suas ambições políticas,
próximas e remotas. Não; todo ele é Fidélia, e pode bem mandar a cadeira das Cortesao
diabo, se a noiva lho pedir. Dir-se-á que é um versátil, cativo do mais recente
encanto? Pode ser; tanto melhor para os Aguiares. Se assim acontecer, lerei
esta página aos dous velhos, com esta mesma linha última.
25 de março
Era minha ideia hoje, aniversário
da Constituição, ir cumprimentar o imperador,
mas a visita de Tristão fez-me abrir mão do plano. Deixei-me estar a conversar
com ele de mil cousas várias, depois saímos, passeamos e tornamos a casa.
Não aceitou jantar comigo por ter de ir jantar com ela. Naturalmente
falamos dela algumas vezes, ele, com entusiasmo, eu, com simpatia. Talvez eu
falasse menos que ele, é verdade; mas eu sou apenas amigo de ambos, e, de
costume, prefiro ouvir.
Outro assunto que nos prendeu também, menos que ela, foi a política, não
a de cá nem a de lá, mas a de além e de outras línguas. Tristão assistiu à Comuna, em
França, e parece ter temperamento conservador
fora da Inglaterra; em Inglaterra é liberal; na Itália
continua latino. Tudo se pega e se ajusta naquele espírito diverso.
O que lhe notei bem é que em qualquer parte gosta da política. Vê-se que nasceu
em terra dela e vive em terra dela. Também se vê que não conhece a política do
ódio, nem saberá perseguir; em suma, um bom rapaz, não me canso de o escrever,
nem o calaria agora que ele vai casar; todos os noivos são bons rapazes.
26 de março
Or bene, marcou-se o dia do casamento de Tristão e
Fidélia; é a 15 de maio. Já estava disposto entre eles, secretamente, para que
os papéis corressem emLisboa a
tempo. Os de cá vão correr já.
Foi a própria D. Carmo que me deu a notícia hoje, antes que me venha por
carta, como se tratasse de pessoas minhas, noivo e noiva, tão frequentes somos
os três e os quatro, mas logo reduziu tudo a si mesma.
- Realiza-se um grande sonho meu, conselheiro - disse ela -. Tê-los-ei
finalmente comigo. Espero arranjar-lhes casa aqui mesmo no Flamengo.
Ela disse-me uma vez que seria minha filha...
- Foi por ocasião das suas bodas de prata, não foi?
- Ouviu?
- Não ouvi; mas vi-lhe um gesto que vinha a dar na mesma. Lembre-se que
eu estava a seu lado, e ela, ao pé de seu marido; a distância era curta, e eu
não esqueço nada.
- Justamente. Senti-me feliz, mas não contei que a felicidade viesse a
ser maior.
Eu, para levar a conversa a outro ponto, insisti que não esqueço nada, e
referi várias anedotas de lembrança viva, todas verdadeiras, mas da minha
mocidade. Agora muita cousa me passa, muitas se confundem, algumas trocam-se.
Mas, enfim, mudara o caminho da conversação, que é o que eu queria para não
atalhar a felicidade da boa Aguiar com pergunta indiscreta acerca de política.
Não contei que ela própria falasse disso, como fez. Tristão já lhe não toca em
política, e as cartas escasseiam ou tratam de matéria aborrecida, que ele não
comunica a ninguém, guardando-as ou lendo-as por alto e de passagem. A mãe
escreveu-lhe ultimamente.
- A comadre mandou-me dizer que eu lhe quero roubar o filho, e
ameaçou-me de o vir buscar com uma esquadra; respondi-lhe gracejando também.
D. Cesária, que entrava então na sala, recebeu a notícia do dia do
casamento; ouvira falar disso, e vinha saber se era verdade. O alvoroço e
doçura com que falou à outra compensou em grande parte o mal que me dissera
dela, e por outra maneira confirmou o que lá pensei uma vez (e não sei se
escrevi) sobre a propriedade deste mundo. Deus vencia
aqui o Diabo, com um sorriso tão manso e terno que faria esquecer a
existência do imundo consócio. O marido daquela dama não seria capaz de tamanho
contraste, creio eu; falta-lhe disposição, e principalmente maneiras. É sujeito
capaz de pagar com um pontapé a notícia que lhe trouxerem da sorte grande. Não
sabe ser feliz, posto não lhe custe nada; não sei se me explico bem, mas basta
que o sinta comigo. Isto e outras cousas que fui pensando vieram comendo o
tempo, e às onze horas estava em casa.
Antes de me meter na cama, refleti que efetivamente Tristão já me não
fala em política, nem me cita as cartas que recebe, e pode ser que elas
escasseiem deveras. Soubesse eu fazer versos e acabaria com um cântico ao deus do amor;
não sabendo, vá mesmo em prosa: "Amor, partido grande entre os partidos,
tu és o mais forte partido da terra..." Lerei esta outra página aos dous
moços, depois de casados.
4 de abril
Não esperava por esta. Tristão veio pedir-me que lhe sirva de padrinho
ao casamento. Não podia negar-lho, e aceitei o convite, ainda que sem grande
gosto. Aí tinha ele o Aguiar, ou o Campos, mas enfim, quero ajudar a felicidade
de todos. Deu-me outros pormenores: casamento à capucha, entre onze horas e
meio-dia, almoço no Flamengo,
em família, e os dous serão levados à Prainha modestamente,
embarcarão ali para Petrópolis.
Minúcias escusadas, mas tudo se deve escutar com interesse a um coração que
ama.
8 de abril
- Sabe o que D. Fidélia me escreveu agora? - perguntou-me Aguiar -. Que
o Banco tome
a si vender Santa-Pia.
- Creio que já ouvi falar nisso...
- Sim, há tempos, mas era ideia que podia passar; vejo agora que não
passou.
- Os libertos têm continuado no trabalho?
- Têm, mas dizem que é por ela.
Não me lembra se fiz alguma reflexão acerca da liberdade e da
escravidão, mas é possível, não me interessando em nada que Santa-Pia seja ou
não vendida. O que me interessa particularmente é a fazendeira - esta
fazendeira da cidade, que vai casar na cidade. Já se fala no casamento com
alguma insistência, bastante admiração, e provavelmente inveja. Não falta quem
pergunte pelo Noronha. Onde está o Noronha? Mas que fim levou o Noronha?
Não são muitos que perguntam, mas as mulheres são mais numerosas - ou
porque as afligiam as lágrimas de Fidélia - ou porque achem Tristão
interessante - ou porque não neguem beleza à viúva. Também pode ser que as três
razões concorram juntas para tanta curiosidade; mas, enfim, a pergunta faz-se,
e a resposta é um gesto parecido com esta ou outra resposta equivalente: - Ah!
Minha amiga (ou meu amigo), se eu fosse a indagar onde param os mortos, andaria
o infinito e acabaria a eternidade.
É engenhoso, mas não é bom, principalmente não é certo. Os mortos param
no cemitério, e lá vai ter a afeição dos vivos, com as suas flores e
recordações. Tal sucederá à própria Fidélia, quando para lá for; tal sucede ao
Noronha, que lá está. A questão é que virtualmente não se quebre este laço, e
que a lei da vida não destrua o que foi da vida e da morte. Creio nas afeições
de Fidélia; chego a crer que as duas formam uma só, continuada.
Quando eu era do corpo diplomático efetivo não acreditava em tanta cousa
junta, era inquieto e desconfiado; mas, se me aposentei foi justamente para
crer na sinceridade dos outros. Que os efetivos desconfiem!
15 de abril
Já se não vende Santa-Pia, não por falta de compradores, ao contrário;
em cinco dias apareceram logo dous, que conhecem a fazenda, e só o primeiro
recusou o preço. Não se vende; é o que me disseram hoje de manhã. Concluí que o
casal Tristão iria lá passar o resto dos seus dias. Podia ser, mas é ainda mais
inesperado.
O que ouvi depois é que Tristão, sabendo da resolução da viúva, formulou
um plano e foi comunicar-lho. Não o fez nos próprios termos claros e diretos,
mas por insinuação. Uma vez que os libertos conservam a enxada por amor da
sinhá-moça, que impedia que ela pegasse da fazenda e a desse aos seus cativos
antigos? Eles que a trabalhem para si. Não foi bem assim que lhe falou; pôs-lhe
uma nota voluntariamente seca, em maneira que lhe apagasse a cor generosa da
lembrança. Assim o interpretou a própria Fidélia, que o referiu a D. Carmo, que
mo contou, acrescentando:
- Tristão é capaz da intenção e do disfarce, mas eu também acho possível
que o principal motivo fosse arredar qualquer suspeita de interesse no
casamento. Seja o que for, parece que assim se fará.
- E andam críticos a contender sobre romantismos e naturalismos!
Parece que D. Carmo não me achou graça à exclamação, e eu mesmo não lhe
acho graça nem sentido. Aplaudi a mudança do plano, e aliás o novo me parece
bem. Se eles não têm de ir viver na roça, e não precisam do valor da fazenda,
melhor é dá-la aos libertos. Poderão estes fazer a obra comum e corresponder à
boa vontade da sinhá-moça? É outra questão, mas não se me dá de a ver ou não
resolvida; há muita outra cousa neste mundo mais interessante.
19 de abril
Tristão, a quem falei da doação de Santa-Pia, não me confiou os seus
motivos secretos; disse-me só que Fidélia vai assinar o documento amanhã ou
depois. Estávamos no Carceller tomando
café. Ouvi-lhe também dizer que recebeu cartas de Lisboa,
duas políticas; instam por ele. Quis saber se acudiria ao chamado, mas o gesto
com que ele via subir o fumo do charuto parecia mirar tão somente a noiva, o
altar e a felicidade; não ousei passar adiante.
Saindo do Carceller,
ouvi-lhe que ia fazer uma encomenda; talvez algum presente para a noiva, mas
não me disse o que era, nem o destino. Falou-me, sim, da madrinha e da amizade
que ela lhe tem; ao que redargui, confirmando:
- Posso dizer-lhe que é grande.
- É grande e antiga.
Contou-me então o que eu já sei, anedotas da infância e da adolescência,
e nisto me entreteve andando alguns minutos largos; parece-me realmente bom e
amigo. A idade em que foi daqui e o tempo que tem vivido lá fora dão a este
moço uma pronúncia mesclada do Rio e
de Lisboa que
lhe não fica mal, ao contrário. Despedimo-nos à porta de um ourives; há de ser
alguma joia.
28 de abril
Lá se foi Santa-Pia para os libertos, que a
receberão provavelmente com danças e com lágrimas; mas também pode ser que esta
responsabilidade nova ou primeira...
6 de maio
A gente Aguiar parece estar sobressaltada.
Tristão recebeu novas cartas e alguns jornais de Lisboa, e
longamente os leu para si, agora alegre, logo carrancudo. O que leu nos jornais
foram trechos marcados a lápis azul e a tinta preta, e nada referiu aos dous
velhos. Ao contrário, levou os jornais para o quarto, onde nenhum deles lhos
foi pedir nem ver. Também não lhe perguntaram nada, ele ficou a pensar consigo,
e assim correu o resto da tarde. Depois de jantar foram para Botafogo.
Lá se desfizeram as sombras, porque o encontro
de Tristão e Fidélia era sempre uma aurora para ambos; a preocupação dos
Aguiares passou, e a noite acabou com a mesma família de bem-aventurados.
Não estive lá; soube isto por mana Rita, que
conversou com D. Carmo, e veio confiar-me tudo "como a um cofre",
disse ela. Eu aceitei a confidência e agradeci a definição, e aqui as deixo com
esta linha última. Em verdade, Tristão é feito de modo que a política o pode
levar sem esforço, e Fidélia, retê-lo sem dificuldade.
8 de maio
Tristão quer ser casado pelo padre Bessa e
pediu-lho. O padre mal pôde ouvir o pedido, consentiu e agradeceu deslumbrado.
Há uma ideia de simetria na bênção do casamento dada pelo mesmo sacerdote que o
batizou, que entrará por alguma cousa na resolução do noivo, mas também pode
ser que a principal intenção fosse fazê-lo feliz. Aquele sacerdote obscuro e
escondido na praia Formosa virá
subir a escadaria da matriz da Glória (o
casamento é na matriz da Glória) para
abençoar o casamento de duas pessoas lustrosas e vistosas. Aguiar disse-me que
o padre está que parecia ser ele próprio o noivo.
- Note bem, conselheiro - concluiu ele, dando-me
aquela notícia que é já de alguns dias -, note que quando Tristão lhe fez
presente de uma batina nova, o padre Bessa recebeu-a vexado, porque então a
velhice da sua lhe entrou melhor pelos olhos. Agora a alegria é grande e
franca, não imagina. Creio que é do papel espiritual e sacramental que lhe
oferecem; ele já não casa ninguém há muitos anos.
15 de maio
Enfim, casados. Venho agora da Prainha, aonde os
fui embarcar para Petrópolis. O
casamento foi ao meio-dia em ponto, na matriz da Glória, poucas
pessoas, muita comoção. Fidélia vestia escuro e afogado, as mangas presas nos
pulsos por botões de granada, e o gesto grave. D. Carmo, austeramente posta, é
verdade, ia cheia de riso, e o marido também. Tristão estava radiante. Ao subir
a escadaria, troquei um olhar com a mana Rita, e creio que sorrimos; não sei se
nela, mas em mim era a lembrança daquele dia do cemitério, e do que
lhe ouvi sobre a viúva Noronha. Aí vínhamos nós com ela a outras núpcias. Tal
era a vontade do Destino. Chamo-lhe
assim, para dar um nome a que a leitura antiga me acostumou, e francamente
gosto dele. Tem um ar fixo e definitivo. Ao cabo, rima com divino,
e poupa-me a cogitações filosóficas.
Na igreja havia curiosos do bairro, damas
principalmente. Cada uma destas era pouca para apanhar com os olhos as figuras
dos noivos, desde a porta até o altar-mor. Movimento, sussurro, cabeças
inclinadas, tudo isso encheria este pedaço de papel sem proveito. Mais
interessante seria o que alguma boca disse do primeiro casamento e suas
alegrias, e da viúva e suas tristezas, e os demais quartos dessa perpétua lua
da criação.
Quando acabou a cerimônia e o padre Bessa deixou
o altar, a efusão da madrinha foi grande. Vi o abraço que deu aos dous, um
depois de outro, e afinal juntos; Tristão beijou-lhe a mão, Fidélia também,
ambos comovidos, e ela, ainda mais comovida que eles, selou tudo com dous
beijos de mãe. À uma hora da tarde estávamos de volta ao Flamengo, e pouco
depois almoçávamos. Venho cansado demais para dizer tudo o que ali se passou
antes, durante e depois da comida, até à hora em que fomos levar os
recém-casados à Prainha. Passou-se
o costume, salvo a nota particular que os quatro me deram e foi profunda. Não citei
entre os assistentes o Campos, que não era dos menos satisfeitos, embora
Tristão lhe leve a sobrinha, meia esposa e meia filha pela ordem que lhe punha
em casa desde que foi viver com ele. Também não falei do filho dele, primo
dela. O resto, pessoas íntimas e poucas.
Um incidente, tão ajustado que pareceu de
encomenda. Em meio do almoço chegou um telegrama de Lisboa para
Tristão com duas palavras, dous nomes e a data: "Deus abençoe". Os
pais sabiam pelo correio que o casamento era hoje, e quiseram mandar-lhes a
bênção pelo cabo. Tristão leu as palavras para si e depois para todos, e o
papel correu a mesa. Naturalmente os recém-casados apertaram as mãos, e D.
Carmo adotou o texto da verdadeira mãe com o seu olhar de mãe postiça. Eu
deixei-me ir atrás daquela ternura, não que a compartisse, mas fazia-me bem. Já
não sou deste mundo, mas não é mau afastar-se a gente da praia com os olhos na
gente que fica.
Daí a brindar pelos noivos não me custou nada;
fi-lo discretamente, e estendi o brinde à gente Aguiar, que me ficou
reconhecida. Rita disse-me, ao voltar daPrainha, que as
minhas palavras foram deliciosas. Confessei-lhe que seriam mais adequadas se eu
as resumisse em emendar Bernardim Ribeiro: "Viúva
e noiva me levaram da casa de meus pais para longes terras..." Mas,
além de lembrar o primeiro marido, podia estender as longas terras além de Petrópolis, e viria
afligir a festa tão bonita.
- Foi melhor ficar nas palavras deliciosas que
eu disse - concluí modestamente.
26 de maio
Nestes últimos dias só tenho visitado o casal
Aguiar, que parece meter-me cada vez mais no coração. Vivem felizes, recebem e
mandam notícias aos dous filhos de empréstimo. Estes descerão na semana próxima
para subir no mesmo dia; o único fim é abraçar os velhos.
Em Petrópolis tem
chovido, mas também há dias bonitos, e deles e das chuvas Fidélia manda
impressões interessantes; talvez a principal causa destas seja o próprio estado
conjugal. A alma da gente dá vida às cousas externas, amarga ou doce, conforme
ela for ou estiver, e o texto de Fidélia é dulcíssimo. D. Carmo mostrou-me
ontem a última carta da moça, escrita nas quatro páginas, letra miúda e
cerrada, e linhas estreitas. A ternura não embarga a discrição nem esta diminui
aquela. No fim da carta, Fidélia insinua a ideia de irem todos quatro à Europa, ou os
três, se Aguiar não puder deixar o Banco. A velha
vai dizer que não pode ser por ora.
- Nem por ora, nem jamais - concluiu dobrando a
carta -; estou cansada e fraca, conselheiro, e meia doente. Não dou para folias
de viagens.
- Viagens dão saúde e força, opinei.
- Pode ser, mas em outra idade; na minha é já
impossível.
Seguiu-se uma pausa, durante a qual Aguiar olhou
de soslaio para a mulher, ela, para si, e eu, para ambos alternadamente. Entrou
um vizinho, e falamos de outras cousas.
Quinta-feira
Tristão e Fidélia desceram hoje e Aguiar os foi
buscar à Prainha. Dali
vieram almoçar ao Flamengo, onde D.
Carmo esperava os recém-casados e os abraçou cheia de coração. O velho ficou de
ir do Banco à Prainha, quando a
barca houvesse de sair à tarde para Petrópolis.
Tudo isso ouvi de noite aos dous velhos, e ouvi
mais que a velha e os moços passaram um dia deleitosíssimo. Não foi este o
próprio vocábulo empregado por ela; já lá disse algures que D. Carmo não possui
o estilo enfático. Mas o total do que me disse vem a dar nele.
Conversaram os três de várias cousas, de Petrópolis, de música
e de pintura; os dous tocaram piano, logo depois saíram à praia, com a velha.
Justamente na praia, Fidélia pegou da ideia que propusera em carta de fazerem
uma viagem à Europa, à qual D.
Carmo se recusou por débil e cansada. Então Fidélia explicou o que seria a
viagem; em primeiro lugar curta, a Lisboa, para ver a
mãe de Tristão, depois a Paris, e se
houvesse tempo, à Itália; partiriam
em agosto ou setembro, e em dezembro estariam de volta.
- Não é o tempo, filha - replicou D. Carmo -;
pouco ou muito, desde que lá estivesse iria ao fim, mas é este corpo já
cansado, e depois, não indo Aguiar, quem há de cuidar dele?
- Pois ele que vá também - acudiu Tristão.
- Este ano não pode.
A conversação foi andando com eles, ao longo da
praia, onde o mar, indo e vindo, era como se os convidasse a meterem-se nele
até desembarcar "no porto da ínclita
Ulisseia", como diz o poeta. D. Carmo ainda se lembrou de
lhes perguntar por que não transferiam a viagem para o ano; Aguiar poderia ir
também. Não responderam.
- Recusaria o acordo eu - disse Aguiar à noite,
ao me contarem isto -. Assim repliquei aos dous na Prainha, quando ali
os fui meter na barca. Também eu não deixaria Carmo.
11 de junho
Hoje apareceram-me os recém-casados pela
primeira vez, encontro casual, na rua do Ouvidor, às duas
horas da tarde; iam a compras. Gostei de os ouvir, e ainda mais de a ver. A
graça com que ela dava o braço ao marido e deslizava na rua era mais completa
que a anterior ao casamento; obra do casamento e da felicidade. Iam ouvindo,
iam falando, iam parando aos mostradores.
Descem definitivamente no dia 20 deste mês, e
partem nos primeiros dias de agosto para Lisboa; irão logo
a outras partes.
- Por que não vem daí, conselheiro? -
perguntou-me Tristão.
- Depois de tanta viagem? Sou agora pouco para
reconciliar-me com a nossa terra.
Sublinho este nossa, porque disse a
palavra meio sublinhada; mas ele creio que não a ouviu de nenhuma espécie.
Olhava para a consorte, como avivando o programa da viagem que iam fazer, e
seguiram pela rua abaixo com a mesma graça vagarosa.
25 de junho
Campos e Aguiar queriam, à sua vez, que o jovem
casal viesse aposentar-se em casa deles, e alegaram a razão de ser por poucos
dias, pois que tinham de embarcar. Tristão e Fidélia recusaram e foram para o Hotel dos Estrangeiros. A razão
alegada por estes foi a mesma dos poucos dias, e eu creio que era verdadeira,
mas principalmente seria a de não dar preferência a um nem a outro.
- Passaremos estes últimos dias nas duas casas,
alternadamente - propôs Tristão.
Era natural e cortês, sendo ele só e Aguiar,
casado. Assim fazem desde o dia 20, em que os dous desceram de Petrópolis; lá os vi
ontem, dia de São João.
Não escrevo o que lá se passou para me não
demorar a dizer tudo, que é muito. Vi-os felizes a todos quatro. D. Carmo
parecia esconder a tristeza da viagem que se aproxima, ou temperá-la com a
ideia da volta, a que aludia frequentemente e a propósito de tudo, como a
avivar a obrigação. Assim correram as horas depressa. Saí com eles até o hotel; dali
seguiu Campos para Botafogo e vim
eu para o Catete.
29 de junho
A outra visita foi por noite de São João; hoje,
noite de São Pedro, chegarei também ao Flamengo, e, se
couber, falaremos também das cousas antigas.
30 de junho
Lá estive na casa Aguiar. Não falamos de cousas velhas nem de cousas
novas, mas só das futuras. No fim da noite adverti que falávamos todos, menos o
casal recente; esse, depois de algumas palavras mal atadas, entrou a dizer de
si mesmo, um dizer calado, espraiado e fundido. De quando em quando os dous
davam alguma sílaba à conversação, e logo tornavam ao puro silêncio. Também
tocaram piano. Também foram falar entre si ao canto da janela. Sós os quatro
velhos - o desembargador com os três -, fazíamos planos futuros.
Certo é que D. Carmo alguma vez acompanhou os dous com os seus olhos
inquietos, como a perguntar-lhes que parte viriam eles ter no futuro que ela e
nós imaginávamos; mas o receio de os interromper na felicidade tapava-lhe a
boca, e a santa senhora contentava-se de os mirar e amar. Ao chá a conversação
fez-se de todos, e Tristão referiu alguns casos de Lisboa,
casos de política e de recreação.
Vindo para casa acudiu-me em caminho uma ideia, indiscreta, decerto, mas
felizmente não a disse a ninguém, e mal a deixo nesta folha de papel. A ideia é
saber se Fidélia terá voltado ao cemitério depois
de casada. Possivelmente, sim; possivelmente, não. Não a censurarei, se não: a
alma de uma pessoa pode ser estreita para duas afeições grandes. Se sim, não
lhe ficarei querendo mal, ao contrário. Os mortos podem muito bem combater os
vivos, sem os vencer inteiramente.
Sem data
Hoje foi a última recepção dos Aguiares, e eu quis despedir-me dos
viajantes, que embarcam depois de amanhã. Bastante gente, entre ela o Faria e
D. Cesária, e a viúva do corretor Miranda, ainda abatida. A nota geral da noite
não era alegre, ao contrário: todos buscavam ir pelo tom da casa, que era
tristonha. A própria Fidélia parecia definhar-se ao pé da amiga, e uma vez a
mana Rita a foi achar que dizia à outra:
- D. Carmo, por que não vem conosco? Ainda é tempo de comprar bilhetes,
e se os não houver, Tristão adia a viagem, e vamos no outro paquete.
D. Carmo respondia que não; sentia-se cansada e abatida.
- Viagem não cansa, e lá chegando cria alma nova.
Rita juntou o seu voto ao da moça, e ambas teimaram com ela, mas não puderam
nada. Como última razão, vinha a separação do marido, razão velha e parece que
decisiva. Rita notou que as duas estavam sinceramente desconsoladas, mas D.
Carmo buscava fortalecer-se, enquanto que Fidélia não acabava de vencer o
desgosto.
- Olhe, mano, eu ainda creio que ela desfaz a viagem...
Era no escuro, à vinda da praia; por isso a mana não me pôde ver o gesto
incrédulo, mas certamente o adivinhou e trocou o que disse. "Não, que
desfaça não digo, mas daria muito para não ter consentido em partir".
Repetiu-me as palavras que Fidélia lhe disse de D. Carmo, chamando-lhe boa e
santa, "a santa Aguiar".
Confesso que vim de lá aborrecido; preferia não ter ido, ou quisera ter
saído logo. Tristão vem cá almoçar comigo amanhã.
Véspera de embarque
Tristão cumpriu a promessa, veio almoçar comigo, eram onze horas e meia.
Vinha triste - triste e calado. Quer dizer que falamos muito pouco. Não havendo
melhor assunto de conversa que esse mesmo silêncio, lembrou-me dizer-lhe que
compreendia as saudades que ele levava daqui, já da terra, já das pessoas, e
particularmente das duas pessoas que lhe queriam tanto. A ocasião era boa para
dizer dos dous velhos as melhores cousas - ou repeti-las, pois já mas tinha
confiado várias vezes; outrossim, inteirar-me dos seus planos de futuro, até
onde ia a viagem, e em que tempo tornaria com a formosa esposa. Não me disse
nada; afirmou de cabeça e mergulhou no mesmo grande silêncio do princípio.
Creio que não me ouviu metade.
No fim do almoço, como fumássemos, deu-me novamente a indicação da casa
em Lisboa,
o título da folha política em que colabora, e ia confiar-me alguma cousa mais
que calou, pareceu-me. Mergulhou outra vez no silêncio. Eu respeitava aquela
melancolia e deixava-me ir atrás do fumo do charuto. Tristão finalmente
despediu-se.
- Não nos veremos mais? - perguntou-me.
- Irei ao cais Pharoux,
pode ser que a bordo também.
- Até amanhã; vá fazendo as encomendas.
Levei-o até à escada, que ele começou a descer vagarosamente, depois de
me apertar a mão com força. A meio caminho deteve-se e subiu outra vez.
- Olhe, conselheiro, Fidélia e eu fizemos tudo para que a velha e o
velho vão conosco; não podem, ela diz que está cansada, ele, que não se separa
dela, e ambos esperam que voltemos.
- Pois voltem depressa - aconselhei.
Tristão fitou-me os olhos cheios de mistérios, e tornou à sala; vim com
ele.
- Conselheiro, vou fazer-lhe uma confidência, que não fiz nem faço a
ninguém mais; fio do seu silêncio.
Fiz um gesto de assentimento. Tristão meteu a mão na algibeira das
calças e tirou de lá um papel de cor; abriu-o e entregou-mo que lesse. Era um
telegrama do pai, datado da véspera; anuncia-lhe a eleição para daqui a oito
dias.
Ficamos a olhar um para o outro, calados ambos, ele como que a apertar
os dentes. Depois de alguns segundos de pausa:
- Eleição certa - disse ele -. As cartas já me faziam crer isto, mas não
cuidei que fosse tão próxima.
Restituí-lhe o telegrama. Tristão insistiu pelo meu silêncio, e
acrescentou:
- Queria que eles viessem conosco; eu lhes diria a bordo o que
conviesse, e o resto seria regulado entre as duas - ou entre as três, contando
minha mãe. Fidélia mesma é que me lembrou este plano, e trabalhou por ele, mas
não alcançamos nada; ficam esperando.
Quis dizer-lhe que era esperarem por
sapatos de defunto, mas evitei o dito, e mudei de pensamento. Como
ele não dissesse mais, fiquei um tanto acanhado; Tristão, porém, completou a
intenção do ato, acrescentando:
- Confesso-lhe isto para que alguém que nos merece a todos dê um dia
testemunho do que fiz e tentei para me não separar dos meus velhos pais de
estimação; fica sabendo que não alcancei nada. Que quer, conselheiro? A vida é
assim cheia de liames e de imprevistos...
Não sei que disse mais; a mim chegava-me outra ideia que também deixei
passar, não querendo ser indiscreto. Era indagar se Fidélia sabia já do
telegrama; ele dissera-me que o não mostrara a ninguém, mas é claro que a
mulher era ele mesmo, e estava excluída do silêncio que tivera com os outros.
18 de julho
Vim de bordo, aonde fui acompanhar os dous, com o velho Aguiar, o
desembargador Campos e outros amigos. D. Carmo foi só até o cais; estava
sucumbida, e enxugava os olhos. Ficou parada, a ver a lancha em que íamos,
dizendo adeus com o lenço; não tardou que o espaço nos separasse inteiramente
da vista.
Fidélia ia realmente triste; o mar não tardaria em espancar as sombras,
e depois a outra terra, que a receberia com a outra gente. Eu, no tombadilho do
paquete, imaginei o cemitério, o túmulo, a figura, as mãos postas e o resto.
Tristão, à despedida, disse palavras amigas e saudosas a Aguiar, mandou outras
para a madrinha, e a mim pediu-me que não esquecesse os pais de empréstimo e os
fosse ver e consolar. Prometi que sim. Descemos para a lancha e afastamo-nos do
paquete.
Tenho embarcado e desembarcado muitas vezes, devia estar gasto. Pois não
estou. Não sentia a separação, é verdade; trazia os olhos no velho Aguiar e o
pensamento na velha Carmo. Quanto ao desembargador vinha triste com a
separação, mas a sobrinha obrigou-o a prometer, à última hora, que iria vê-la
no ano próximo, e ele não advertiu que o pedido desdizia da promessa que lhe
tinha feito de regressar no fim do ano ao Rio de
Janeiro.
Despedimo-nos no cais. Aguiar seguiu para o Banco,
eu vim para casa, onde escrevo isto. De noite irei ao Flamengo,
a cumprir desde já a promessa que fiz a Tristão e a Fidélia.
Não acabarei esta página sem dizer que me passou agora pela frente a
figura de Fidélia, tal como a deixei a bordo, mas sem lágrimas. Sentou-se no
canapé e ficamos a olhar um para o outro, ela desfeita em graça, eu desmentindo Shelley com
todas as forças sexagenárias restantes. Ah! Basta! Cuidemos de ir logo aos
velhos.
*****
Dez horas da noite
Venho do Flamengo.
Quisera ficar mais tempo, mas eles precisavam descansar da separação. Campos
também lá foi, e ambos saímos cedo, nove e meia; não se falou dos viajantes.
29 de agosto
Chegou paquete da Europa,
trouxe cartas de Lisboa e
notícias políticas. As cartas eram saudosas, e as notícias, interessantes;
aliás só vieram à noite. Na rua tinha-me Aguiar dito o que havia nas cartas de
Tristão e de Fidélia e na que a comadre escrevera a D. Carmo; fui vê-las ao Flamengo.
A da comadre era cheia de louvores à nora, que achava mais bela que no retrato,
e mais terna que ninguém; foram as próprias palavras dela, e para uma sogra não
me destoaram muito. Assim o disse a D. Carmo, que sorria complacente, com uma
espécie de ternura mórbida. Éramos sós os três, e a saudade, grande.
Pouco depois chegou Campos. Vinha aturdido, e ao dar comigo pareceu
querer falar-me em particular. Em particular, a um canto, disse-me que Tristão
lhe escrevera dizendo achar-se eleito deputado quando desembarcou em Lisboa,
e pedindo-lhe que desse a notícia à gente Aguiar como entendesse melhor; não
lhes escrevia a eles sobre isso para evitar o sobressalto. Que me parecia?
- Sempre se lhes há de dizer tudo - respondi -; o melhor é que seja
logo, e aqui estamos para dizer as cousas cautelosamente.
- Também me parece.
- Eu engenharei uma fábula...
Engenhei o que pude. Falei do golpe que o moço recebeu quando
desembarcou deputado, e viu misturadas as alegrias dos pais com as dos amigos
políticos; devia dizer também que a primeira ideia de Tristão foi rejeitar o
diploma e vir para Santa-Pia; mas que o partido, os chefes, os pais... Não fui
tão longe; seria mentir demais. Ao cabo, não teria tempo. Os dous velhos
ficaram fulminados, a mulher verteu algumas lágrimas silenciosas, e o marido
cuidou de lhas enxugar.
Assim correram as cousas, a mentira e os efeitos. Os dous procuramos
levantar-lhes o ânimo. Eu empreguei algumas reflexões e metáforas, afirmando
que eles viriam este ano mesmo ou no princípio do outro; bastava saberem a dor
que causava aqui a notícia.
D. Carmo não parecia ouvir-me, nem ele; olhavam para lá, para longe,
para onde se perde a vida presente, e tudo se esvai depressa. Aguiar ainda
pegou na carta que o desembargador lhe mostrava; leu para si as palavras de
Tristão, que eram aborrecidas em si mesmas, além da nota que o autor
intencionalmente lhes pôs. D. Carmo pediu-lha com o gesto, ele meteu-a na
carteira. A boa velha não insistiu. Campos e eu saímos pouco depois.
30 de agosto
Praia fora (esqueceu-me notar isto ontem), praia fora viemos falando
daquela orfandade às avessas em que os dous velhos ficavam, e eu acrescentei,
lembrando-me do marido defunto:
- Desembargador, se os mortos
vão depressa, os velhos ainda vão mais depressa que os mortos... Viva
a mocidade!
Campos não me entendeu, nem logo, nem completamente. Tive então de lhe
dizer que aludia ao marido defunto, e aos dous velhos deixados pelos dous
moços, e concluí que a mocidade tem o direito de viver e amar, e separar-se
alegremente do extinto e do caduco. Não concordou - o que mostra que ainda
então não me entendeu completamente.
Sem data
Há seis ou sete dias que eu não ia ao Flamengo.
Agora à tarde lembrou-me lá passar antes de vir para casa. Fui a pé; achei
aberta a porta do jardim, entrei e parei logo.
- Lá estão eles - disse comigo.
Ao fundo, à entrada do saguão, dei com os dous velhos sentados, olhando
um para o outro. Aguiar estava encostado ao portal direito, com as mãos sobre
os joelhos. D. Carmo, à esquerda, tinha os braços cruzados à cinta. Hesitei
entre ir adiante ou desandar o caminho; continuei parado alguns segundos até
que recuei pé ante pé. Ao transpor a porta para a rua, vi-lhes no rosto e na
atitude uma expressão a que não acho nome certo ou claro; digo o que me
pareceu. Queriam ser risonhos e mal se podiam consolar. Consolava-os a saudade
de si mesmos.
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