Tradução:
Vincius Dantas
Nota do tradutor - Este texto foi originalmente apresentado
como uma conferência no Whtiney Museum, em 1982. Fredric Jameson ampliou e
desenvolveu seus principais tópicos no longo ensaio “Postmodernism or the
Cultural Logic of Late Capitalism”,recentemente publicado na New Left Review
(nº 146, julho agosto de 1981).
“Pós-modernidade” é até hoje um
conceito pouco aceito ou compreendido. Algumas das resistências a ele podem ser
atribuídas à falta de familiaridade com as obras que abrange e que são
encontráveis em todas as artes: a poesia de John Ashbery, por exemplo, mas
também a poesia conversacional, muito mais simples, lançada nos anos 60 como
reação à ironia e complexidade do modernismo acadêmico; a reação à arquitetura
moderna e, em particular, aos monumentais edifícios do International Style,
bem como as construções pop e os tetos de vidro decorado elogiados por
Robert Venturi em seu manifesto Aprendendo com Las Vegas, Andy Warhol e
a pop art mas também os mais recente Hiper-realismo; em música, o apogeu
de John Cage, assim como a posterior síntese dos estilos clássico e “popular”
de compositores como Philp Glass e Terry Riley ou, ainda, o rock new wave
e punk de grupos tais como Clash, Talking, Heads e Gang ou Four; no
cinema, tudo o que deriva de Godard – filme e vídeo contemporâneos de vanguarda
– além de um novo estilo de filmes comerciais ou ficcionais, cujo equivalente
no romance contemporâneo são as obras de William Burroughs, Thomas Pynchon e
Ishmael Reed, de um lado, e o nouveau roman francês, de outro, que
merecem ser citados como variedades do que se pode chamar pós-modernismo.
Uma lista como esta esclarece duas
coisas ao mesmo tempo: primeiro, os casos de pós-modernismo citados acima
aparecem, na sua maioria, como reações específicas a formas canônicas da
modernidade, opondo-se a seu predomínio na Universidade, nos museus, no
circuito das galerias de arte e nas fundações. Estes estilos, que no passado
foram agressivos e subversivos – o Expressionismo Abstrato, a grande poesia de
Pound, Eliot e Wallace Stevens, o International Style (Lê Corbusier , Frank Lloyd
Wright, Mies), Stravinsky, Joyce, Proust e Thomas Mann -, que escandalarizaram
e chocaram nossos avós, são agora, para a geração que entrou em cena com os
anos 60, precisamente o sistema e o inimigo: mortos, constrangedores,
consagrados, são monumentos reificados que precisam ser destruídos para que
algo novo venha a surgir. Isto quer dizer que serão tantas as formas de
pós-modernismo quantas foram as formas modernas, uma vez que as primeiras não
passam, pelo menos de início, de reações específicas e locais contra os
seus modelos. Obviamente isto não facilita em nada a discussão da pós-modernidade
como algo coerente, porque a unidade deste novo impulso – se é que tem alguma –
não se funda em si mesma mas em relação ao próprio modernismo contra o qual ela
investe.
O segundo traço desta linha do
pós-modernismo é a dissolução de algumas fronteiras e divisões fundamentais,
notadamente o desgaste da velha distinção entre cultural erudita e cultura
popular (a dita cultura de massa). Possivelmente esta é, entre todas, a mais
desalentadora manifestação da pós-modernidade, sob o ponto de vista
universitário – o qual tem tradicionalmente interesses declarados tanto na
preservação de um domínio de cultura qualificada e de elite contra o cerco de
filistinismos, do kitsch, da porcaria, da cultura de Seleções ou dos
seriados de TV, quanto na transmissão de técnicas de leitura, audição e modos
de ver difíceis e complexos a seus iniciados. Porém, muitos dos mais recentes
pós-modernismos têm se deslumbrado precisamente com todo esse universo da
propaganda e dos motéis, dos luminosos de Las Vegas, do espetáculo noturno e do
filme classe B de Hollywood, da chamada paraliteratura, como seus vários
gêneros padronizados de livros de bolso (terror, romance sentimental, biografia
popular, mistério policial, ficção científica ou visionária). Os autores
pós-modernos não “citam” mais tais “textos” como um Joyce ou um Mahler fariam,
mas os incorporam a ponto de ficar cada vez mais difícil discernir a linha
entre arte erudita e formas comerciais.
Outro indício completamente diverso
da dissolução dessas velhas categorias de gênero e linguagem pode se encontrar
naquilo que, às vezes, se denomina teoria contemporânea. Na geração passada
ainda existia o rigor de linguagem da filosofia profissional – os grandes
sistemas de Sartre, ou dos fenomenólogos, a obra de Wittgenstein, a filosofia
analítica ou a filosofia da linguagem -, ao lado da qual se podia distinguir o
discurso inteiramente diferente das demais disciplinas universitárias – da
ciência política, por exemplo, da sociologia ou da crítica literária. Hoje, se
pratica mais e mais uma espécie de escrita simplesmente denominada “teoria”
que, ao mesmo tempo, é todas e nenhum dessas matérias. Esta nova espécie de
linguagem, associada em geral à teoria francesa, tem se difundido amplamente,
marcando o fim da filosofia como tal. Como, por exemplo, deve ser chamada a
obra de Michel Foucault – filosofia, história, teoria social ou ciência
política? É “indecidível”, como se diz nos nossos dias; o que estou insinuando
é que esse tal “discurso teórico” pode perfeitamente ser incluído entre as
manifestações da pós-modernidade.
Cabem aqui algumas palavras sobre o
emprego apropriado deste conceito: ele não é apenas mais um termo para a
descrição de determinado estilo. É também, pelo menos no emprego que faço dele,
um conceito de periodização cuja principal função é correlacionar a emergência
de novos traços formais na vida cultural com a emergência de um novo tipo de
vida social e de uma nova ordem econômica – chamada, freqüente e
eufemisticamente, modernização, sociedade pós-industrial ou sociedade de
consumo, sociedade dos mídia ou do espetáculo, ou capitalismo multinacional.
Podemos datar esta nova fase do capitalismo a partir do crescimento econômico
do pós-guerra nos Estados Unidos, no final dos anos 40 e começo dos 50, ou
então, na França, a partir da instituição da Quinta República, em 1958. A década de 50, sob
muitos aspectos, é o período chave de transição, um período em que a nova ordem
internacional (neocolonialismo, a Revolução Verde, a informatização e a mídia
eletrônica) não só se funda como, simultaneamente, se conturba e é abalada por
suas próprias contradições internas e pela oposição externa. Gostaria de
esboçar aqui alguns modos pelos quais a pós-modernidade nova expressa a verdade
interior desta ordem social emergente do capitalismo tardio. Vou limitar a
descrição a somente dois de seus traços mais significativos, os quais passo a
denominar pastiche e esquizofrenia; eles oferecem ocasião pra sentirmos a
especificidade da experiência pós-moderna do espaço e do tempo,
respectivamente.
Uma das práticas ou traços mais
importantes da pós-modernidade de hoje é o pastiche. Preciso primeiro explicar
este termo que as pessoas tendem em geral a confundir ou a assimilar ao
fenômeno verbal afim que é a paródia. Tanto pastiche quanto paródia envolvem
imitação ou, melhor ainda, o mimetismo de outros estilos, particularmente dos
maneirismos e tiques estilísticos de outros estilos. É óbvio que a literatura
moderna em geral oferece campo especial fértil para a paródia, visto que os
grandes escritores modernos têm em sua totalidade se sobressaído pela invenção
ou produção de estilos preferencialmente singulares: cite-se a frase longa
faulkneriana ou o conjunto de imagens da natureza tão característico de D. H.
Lawrence; cite-se o modo peculiar de Wallace Stevens empregar abstrações;
citem-se também os maneirismos dos filósofos, de Heidegger, por exemplo, ou
Sartre; citem-se os estilos musicais de Mahler ou Prokofiev. Estes estilos
todos diferem um do outro, e contudo, são comparáveis nisto: cada um é
absolutamente inconfundível; uma vez identificado provavelmente não se deixa
mais confundir com qualquer outro.
Assim sendo, a paródia se aproveita
da singularidade destes estilos para incorporar suas idiossincrasias e
singularidades e criar uma imitação que simula o original. Não estou querendo
dizer que o impulso satírico seja deliberado em todas as formas de paródia. De
qualquer maneira, um bom parodista precisa ter uma certa simpatia tácita pelo
original, tal como um excelente mímico precisa ter a capacidade de se colocar na
pessoa imitada. Todavia, o efeito geral da paródia é – quer simpática quer
maledicente – ridicularizar a natureza privada destes maneirismos estilísticos
bem como seu exagero e sua excentricidade em relação ao modo como as pessoas
normalmente falam e escrevem. Assim, subjaz à paródia o sentimento de que
existe uma norma lingüística, pro oposição à qual os estilos dos grandes
modernistas podem ser arremedados.
Porém, o que aconteceria se ninguém
mais acreditasse na linguagem normal, na fala comum, na norma lingüística (uma
espécie de precisão e de força comunicativas elogiadas por Orwell em seu famoso
ensaio)? Podemos considerar esta situação da seguinte maneira: talvez a imensa
fragmentação e privatização da literatura moderna – sua explosão em um bando de
estilos privados e maneirismos distintos – prefigurem tendências mais gerais e
profundas da vida social como um todo. Suponhamos que realmente a arte moderna
e o modernismo – longe de serem uma curiosa especialização estética – tenham
antecipado desenvolvimentos sociais nesta direção; e que nas décadas que se
seguiram à emergência dos grandes estilos modernos a sociedade tenha começado a
se fragmentar neste sentido – cada grupo passando a falar uma curiosa linguagem
privada própria, cada profissão passando a desenvolver seu idioleto ou código
privado e, por fim, cada indivíduo passando a ser uma espécie de ilha
lingüística, cindido dos demais. Se este for o caso, a própria possibilidade de
uma norma lingüística por meio da qual pudéssemos escarnecer as linguagens
privadas e os estilos idiossincráticos teria sumido, e só disporíamos então da
diversidade e da heterogeneidade estilísticas.
É este o momento em que o pastiche
aparece e a paródia se torna impossível. O pastiche é, como a paródia, a
imitação de um estilo singular ou exclusivo, a utilização de uma máscara
estilística, uma fala em língua morta: mas a sua prática desse mimetismo é
neutra, se as motivações ocultas da paródia, sem o impulso satírico, sem a
graça, sem aquele sentimento ainda latente de que existe uma norma, em
comparação com a qual aquilo que está sendo imitado é, sobretudo, cômico O
pastiche é paródia lacunar, paródia que perdeu seu senso de humor: o pastiche
está para a paródia assim como aquela coisa curiosa, a prática moderna de uma espécie
de ironia branca, está para o que Wayne Booth chama as ironias cômicas e
estáveis, isto é, as ironias do século XVIII.
Agora, porém, convém introduzir uma
nova peça neste quebra-cabeça que pode nos auxiliar a explicar por que a
modernidade clássica é coisa do passado e por que a pós-modernidade ocuparia
seu lugar. Este componente novo é o que geralmente se costuma chamar a “morte
do sujeito” ou, em expressão mais tradicional, o fim do individualismo como
tal. Os grandes modernismos estavam, como dissemos, ligados à invenção de um
estilo pessoal e privado, tão inconfundível como a nossa impressão digital, tão
incomparável como nosso próprio corpo. Porém, isso significa que a estética da
modernidade estava, de certo, organicamente vinculada à concepção de um eu
singular e de uma identidade privada, uma personalidade e uma individualidade
únicas, das quais se podia esperar o engendramento de sua visão singular de
mundo, forjada em seu próprio estilo, singular e inconfundível.
Contudo, hoje, a partir das mis
distintas perspectivas, os teóricos sociais, os psicanalistas, mesmo os
lingüistas, para não mencionar aqueles que como nós trabalham na área da
cultura e das mudanças formais e culturais, estão todos investigando a hipótese
de que esse tipo de individualismo e de identidade pessoal é coisa do passado;
de que o antigo indivíduo ou o sujeito individualista está “morto”; de que
podemos considerar o conceito de indivíduo singular e a própria base teórica do
individualismo como ideológica. De fato, existem duas posições sobre esta
questão, uma mais radical que a outra. A primeira se contenta em afirmar: sim,
em tempos idos, na era clássica do capitalismo competitivo, no apogeu da
família nuclear e na ascensão da burguesia como classe social hegemônica, existia
isso que se chama individualismo, existiam sujeitos individuais. Mas hoje, na
era do capitalismo corporativo, do assim chamado homem da organização, das
burocracias empresariais e estatais, da explosão demográfica – hoje não mais
existe o velho sujeito individual burguês.
Há também uma segunda posição, a
mais radical, que pode ser considerada a posição pós-estruturalista.
Acrescenta: o sujeito individual burguês não é somente coisa do passado como
também não passa de um mito, antes de mais nada ele nunca existiu
realmente; nunca existiram sujeitos autônomos desse tipo. Este construto não
passaria, mais precisamente, de uma mistificação filosófica e cultural que
procurava persuadir as pessoas de que elas “tinham” sujeitos individuais e
possuíam tal identidade pessoal singular.
Para nossos propósitos, não é
particularmente importante decidir qual dessas posições é a correta (ou melhor,
qual delas é mais produtiva e interessante). Ao invés, o que precisamos reter é
um dilema estético: se está esgotada a experiência e a ideologia do eu
singular, um experiência e uma ideologia que sustentavam a prática estilística
da modernidade clássica, já fica claro o que artistas e escritores do período
atual afinal estariam fazendo. Fica claro, contudo, que os modelos mais antigos
– Picasso, Proust, T. S. Eliot – não funcionam mais ( ou são propriamente
nocivos), visto que ninguém mais possui essa espécie de mundo privado e único,
nem um estilo para expressa-lo. E isto talvez não seja uma questão apenas
“psicológica”: temos também de levar em conta o peso imenso de setenta ou
oitenta anos da própria modernidade clássica. Há mais uma razão pela qual os
artistas e os escritores do presente não conseguirão mais inventar novos
estilos e mundos – é que todos estes já foram inventados; o número de
combinações possíveis é restrito; os estilos mais singulares já foram
concebidos. Assim, a influência da tradição estética de modernidade – agora
morta – “pesa como um pesadelo sobre o cérebro dos vivos”, como dizia Marx em
contexto diferente.
Daí, repetimos, o pastiche: no
mundo em que a inovação estilística não é mais possível, tudo o que restou é
imitar estilos mortos, falar através de máscaras e com as vozes dos estilos do
museu imaginário. Mas isto significa que a arte pós-moderna ou contemporânea
deverá ser arte sobre arte de um novo modo; mais ainda, isto significa que uma
de suas mensagens essenciais implicará necessariamente a falência da estética e
da arte, a falência do novo, o encarceramento no passado.
Como isto talvez pareça muito
abstrato, desejo apresentar alguns exemplos, um dos quais é tão presente que,
raramente, ocorreria relaciona-lo ás várias manifestações da arte erudita aqui
discutida. Esta prática específica do pastiche não é “culta”, mas existe no
próprio interior da cultura de massa e é genericamente conhecida como o “filme
de nostalgia” (o que os franceses com precisão denominam la mode rétro).
Temos de imaginar esta categoria da maneira mais ampla possível: não há dúvida
que, em termos estritos, ela consiste tão somente de filmes sobre o passado e
sobre momentos geracionais deste passado. Assim, um dos filmes que inauguraram
este novo “gênero” (se chegar a tanto) foi American Graffiti, de George
Lucas, que, em 1973, procurou resgatar toda a atmosfera e as singularidades
estilísticas dos anos 50 nos Estados Unidos, dos Estados Unidos da era de
Eisenhower. Chinatown, o conhecido filme de Polanski, procede da mesma
maneira em relação aos anos 30, assim como faz O conformista de
Bertolucci para o contexto italiano e europeu da mesma época – a era fascista
na Itália – etc. Poderíamos passar horas enumerando estes filmes: por que
chamá-los pastiche? Não seriam antes obras pertencentes a um gênero mais
tradicional, conhecido como filme histórico – obras que talvez pudessem ser
mais facilmente analisadas pela ampliação, desta outra forma bastante conhecida
que é a do romance histórico?
Tenho minhas razões pra julgar que
precisamos de novas categorias para tais filmes. Permitam-me, antes, cometer um
disparate: digamos que eu seja de opinião que Guerra nas Estrelas é
também um filme de nostalgia. O que significaria isto? Presumo que possamos
estar de acordo quanto ao fato de que ele não é um filme histórico sobre nosso
próprio passado intergaláctico. Permitam-me colocá-lo de modo um pouco
diferente: numa das experiências culturais mais importantes para as gerações
que cresceram entre os anos 30 e 50 era o seria da vesperal de sábado tipo Buck
Rogers – vilões de mundos desconhecidos, verdadeiros heróis americanos,
heroínas em apuros, o raio da morte ou a caixa do fim do mundo, e a atribulação
à beira do abismo, no instante final, cujo miraculoso desenlace haveria de ser
visto no sábado seguinte. Guerra nas Estrelas reinventa esta experiência
sob a forma do pastiche: isto é, não mais existe qualquer motivação para uma
paródia de tais seriados, pois eles acabaram há muito tempo. Guerra nas
Estrelas, ao contrário de uma sátira insossa dessas formas já mortas,
satisfaz um anseio profundo (talvez dissesse mesmo reprimido) de vivê-las novamente:
é um objeto complexo através do qual, em um plano primeiro, crianças e
adolescentes podem fruir plenamente as aventuras, enquanto o público adulto
pode saciar um desejo mais profundo e propriamente nostálgico de retornar
àquele período antigo, de viver uma vez mais suas estranhas engenhocas
estéticas do passado. Este é, pois, metonimicamente, um filme histórico:
não reinventa, diferentemente de American Graffiti, uma imagem do
passado em sua totalidade vivida; ao contrário, ele reinventa a sensação e a
forma dos objetos de arte característicos de uma época passada (os seriados),
procurando despertar um sentido do passado que se associa a tais objetos. Por
sua vez, Caçadores da Arca Perdida ocupa uma posição intermediária: em
certa medida é sobre os nos 30 e 40, mas na verdade também concebe
metonimicamente esse período, mediante suas mais características estórias de
aventura (que não são mais as nossas).
Permitam-me, agora, discutir mais
uma interessante anomalia que pode nos levar adiante nesta compreensão do filme
de nostalgia em particular e do pastiche em geral. Nesta anomalia
inclui-se um filme recente chamado Corpos Ardentes (Body Heat), o
qual, como foi bastante assinado pelos críticos, é uma espécie de refilmagem
remota de O Destino Bate à Porta (The Postman Always Rings Twice)
ou Pacto de Sangue (Double Indemnity) (a cópia alusiva e factícia
de velhas tramas não passa de outro traço de pastiche). Além disso, Corpos
Ardentes não é, rigorosamente, um filme de nostalgia, uma vez que se passa
em cenário contemporâneo, numa pequena cidade da Flórida, perto de Miami. Por
outro lado, sua contemporaneidade no detalhe específico é, no fundo, ainda mais
ambígua: os créditos – sempre nossa primeira pista – estão desenhados com
letras em estilo art déco dos anos 30, o que não pode senão estimular
reações nostálgicas (primeiramente a Chinatown, sem dúvida, mas também a
alguma referência histórica além do filme). Afinal, o próprio estilo do herói é
ambíguo: William Hurt é um novo astro, mas que não tem nada do inconfundível
estilo da geração precedente de superestrelas (Steve McQueen ou mesmo Jack
Nicholson), melhor ainda, sua máscara aqui é uma espécie de mescla de
características desses últimos com o papel mais antigo de um tipo em geral
associado a Clark Gable.
Há, portanto, uma tênue sensação de
arcaísmo em relação a tudo. O espectador começa a se perguntar por que esta
estória, que poderia se passar em qualquer parte, ambienta-se em uma
cidadezinha da Flórida, a despeito de suas referências contemporâneas. Após um
certo tempo, começa-se a perceber que o cenário interiorano tem uma função
estratégica crucial: permitir que o filme prescinda da maioria dos sinais e
referências que pudessem ser associados ao mundo contemporâneo, à sociedade de
consumo – utensílios, artefatos, especulações, o mundo material do capitalismo
avançado. Em termos precisos, então, seus objetos (carros, por exemplo) são
produtos dos anos 80, mas tudo no filme conspira pra borrar essa referência
imediata e contemporânea, possibilitando sua aceitação, como uma obra de
nostalgia também – como uma ambientação da narrativa em algum passado
nostálgico indefinível, uma década de 30 eterna, digamos, fora da história.
Parece-me extremamente sintomático constar que o estilo dos filmes de nostalgia
esteja invadindo e colonizando até mesmo os filmes atuais que têm cenários
contemporâneos: Como se, por alguma razão, fôssemos hoje incapazes de focalizar
nosso próprio presente, como se tivéssemos nos tornando inaptos para elaborar
representações estéticas de nossa própria experiência corrente. Se for este o
caso, trata-se de uma terrível incriminação à própria sociedade capitalista de
consumo – ou, quando menos, de um sintoma alarmante e patológico de uma
sociedade que se tornou incapaz de se relacionar com o tempo e a história.
Voltemos, assim, à questão: por que
o filme de nostalgia ou o pastiche precisam ser distinguidos do filme ou
romance histórico antigo? (O melhor exemplo literário para toda essa discussão,
a meu ver, os romances de E. L. Doctorow – Ragtime , com sua atmosfera
de passagem de século, e Loon Lake, cuja maior parte transcorre nos anos
30. Mas estes, a meu ver, não são romances históricos senão pela aparência.
Doctorow é um artista sério e um dos poucos romancistas radicais, genuinamente
de esquerda, em ação hoje em
dia. Não é nenhum desserviço a ele, contudo, sugerir que suas
narrativas representam menos o nosso passado histórico do que as nossas idéias
ou estereótipos culturais sobre esse mesmo passado.) A produção cultural foi
empurrada para o interior da mente, para dentro do sujeito monádico: já não
mais fita diretamente, com seus próprios olhos, o mundo real à procura do
referente; como na caverna de Platão, ela é forçada a buscar as suas imagens
mentais do mundo nas paredes de seu confinamento. O realismo que nos resta é um
“realismo” que decorre da captação – chocante – deste confinamento e da
consciência viva de que, por razões especiais de algum tipo, nos vemos
condenados a buscar o passado histórico através de nossas imagens pop e
de nossos estereótipos a seu respeito, sendo que o próprio passado permanece,
para sempre fora de alcance.
Desejo agora retornar ao que
considero o segundo traço básico da pós-modernidade, a saber, sua específica
relação com o tempo – o que se poderia chamar “textualidade” ou écriture
– mas que eu prefiro discutir em termos das teorias correntes da esquizofrenia.
Antecipadamente quero refutar possíveis equívocos quanto ao emprego feito aqui
desta palavra: sua intenção é descritiva, e não diagnóstica. Nunca me ocorreu
que alguns dos artistas pós-modernos mais significativos – John Cage, John
Ashberry, Philippe Solers, Robert Wilson, Andy Warhol, Ishmael Reed, Michael
Snow e mesmo o próprio Samuel Beckett – sejam de alguma maneira
esquizofrênicos. Nem se trata de um diagnóstico do tipo cultura-e-personalidade
de nossa sociedade de sua arte: obviamente há coisas mais comprometedoras a
dizer contra o nosso sistema social do que permite o uso de uma psicologia de
almanaque. Nem estou seguro de que a teoria da esquizofrenia que vou esboçar –
uma teoria amplamente desenvolvida na obra do psicanalista francês Jacques
Lacan – é clinicamente precisa; o que pouco importa aos meus propósitos.
A originalidade do pensamento de
Lacan neste campo está no fato de haver considerado a esquizofrenia
substancialmente como uma desordem de linguagem, associando-a a toda uma teoria
da aquisição da linguagem como o elo esquecido da concepção freudiana da
formação do psiquismo adulto. Para tanto, ele nos dá uma versão lingüística do complexo
de Édipo, segundo a qual a rivalidade edipiana é interpretada não em temos do
indivíduo biológico, o rival das atenções maternas, mas em termos daquilo que
ele chama Nome-do-Pai, a autoridade paterna agora considerada como função
lingüística. O que precisamos extrair disso é a idéia de que a psicose e, mais
particularmente, a esquizofrenia a partir da deficiência infantil em aceder
plenamente ao domínio da fala e da linguagem.
Quanto à linguagem, o modelo
lacaniano é um modelo estruturalista ortodoxo, baseado em uma concepção do
signo lingüístico dotada de dois (ou talvez três ) componentes. Um signo, uma
palavra, um texto são aqui modelizados conforme o relacionamento de um
significante – uma materialidade, o som de uma palavra, a escrita de um texto –
com um significado, o sentido da materialidade da palavra ou do texto. O
terceiro componente seria o assim chamado “referente”, o objeto “real” do mundo
“real” ao qual o signo remete – o gato real em oposição ao conceito de gato ou
ao som “gato”. Ocorre porém que existe em geral no estruturalismo uma tendência
de tratar esta referência como uma espécie de mito, de tal modo que ninguém
possa mais falar sobre o “real” de forma objetiva e exterior. Assim, o que nos
resta é o próprio signo e seus dois componentes. Ao mesmo tempo, o
estruturalismo trata de refutar a velha concepção da linguagem como nomeação
(e.g. Deus deu a linguagem a Adão com a finalidade nomear os animais e as
plantas do Éden), a qual envolve uma correspondência termo-a-termo de cada significante
com cada significado. Ao adotar uma visão estrutural, com razão anotamos que
frases não funcionam desse modo: não traduzimos uma a uma as palavras ou
significantes em termos de seu significado. Pelo contrário, o que lemos é a
frase interira, e é do interrelacionamento de suas palavras ou significantes
que se deduz uma significação mais global – denominada agora um
“efeito-de-sentido”. O significado – talvez mesmo a ilusão ou a miragem do
significado e do sentido em geral – é um efeito produzido pelo
interrelacionamento das materialidades significantes.
Tudo isso nos coloca em condições
de compreender a esquizofrenia como um distúrbio do relacionamento entre
significantes. Para Lacan, a experiência da temporalidade, da temporalidade
humana (passado, presente e memória), a persistência da identidade pessoal
através de meses e anos – a própria sensação vivida e existencial do tempo –
são também um efeito de linguagem. Porque a linguagem possui um passado e um
futuro, porque a frase se instala no tempo, é que nós podemos adquirir aquilo
que nos dá a impressão de uma experiência vivida e concreta do tempo. Mas já o
esquizofrênico não chega a conhecer dessa maneira a articulação da linguagem,
nem consegue ter a nossa experiência de continuidade temporal tampouco, estando
condenado, portanto, a viver em um presente perpétuo, com o qual os diversos
momentos de seu passado apresentam pouca conexão e no qual não se vislumbra
nenhum futuro no horizonte. Em outras palavras, a experiência da materialidade
significante isolada, desconecta e descontínua, eu não consegue encadear-se em
uma seqüência coerente. O esquizofrênico não consegue desse modo reconhecer sua
identidade pessoal no referido sentido, visto que o sentimento de identidade
depende de nossa sensação da persistência do “eu” e de “mim” através do tempo.
Por outro lado, o esquizofrênico
vivencia mais do que nós, e com nitidez, uma experiência muito mais intensa de
um definido instante do mundo, pois nosso próprio presente é sempre parte de
algum conjunto mais amplo de projetos, o que nos obriga a focalizar e a
selecionar nossas percepções. Em outras palavras, não receptamos o mundo
exterior globalmente como uma visão indiferenciada: estamos sempre empenhados
em utilizá-lo, sempre enveredamos por ele, sempre atentamos neste ou naquele
objeto ou pessoa que nele está. Contudo, o esquizofrênico não só é “ninguém”
por não ter uma identidade pessoal, como seu desempenho é nulo, pois ter
projeto significa estar apto a se envolver com alguma continuidade futura. O esquizofrênico
está sujeito desse modo a uma visão indiferenciada do mundo no presente, uma
experiência que não é de modo algum agradável:
Eu me lembro muito bem o dia em que
aconteceu. Passávamos uma temporada no campo e eu tinha ido sozinha passear
como sempre fazia. De repente, ao passar pela escola, ouvi uma canção alemã, as
crianças estavam tendo uma aula de canto. Fiquei escutando parada e naquele
instante um estranho sentimento me percorreu, um sentimento difícil de precisar
mas parecido com aquilo eu depois eu haveria de conhecer muito bem – uma
desnorteante sensação de irrealidade. Eu me sentia como se nunca tivesse visto
a escola, ela se tornara tão grande quanto um quartel; as crianças que cantavam
eram prisioneiros, forçados a cantar. Era como se a escola e a canção das
crianças estivessem separadas do resto do mundo. Ao mesmo tempo meu olhar se
deparou com um trigal cujos limites não dava para discernir. A vastidão
amarela, ofuscando ao sol, juntamente com a cantiga das crianças aprisionadas
no quartel-escola de pedra lisa encheram-me de tal angústia que desatei a
chorar. Voltei correndo para nosso jardim e comecei a brincar de “transformar
as coisas naquilo que elas são”, brincar de voltar à realidade, em suma. Foi a primeira
manifestação daqueles elementos que viriam sempre a estar presentes em
posteriores sensações de irrealidade: vastidão sem limites, luz brilhante,
superfície lisa e cintilante das coisas. (Renee Sechebaye, Autobiografia de uma Moça
Esquizofrênica.)
Notem com as continuidades temporais
são quebradas, a experiência do presente torna-se assoberbante e poderosamente
vívida e “material”: o mundo surge ante o esquizofrênico com alta intensidade,
contendo uma misteriosa sobrecarga afetiva, resplandecendo de energia
alucinatória. Porém, o que parecia uma experiência das mais desejáveis – um
aumento de nossas percepções, uma intensificação libidinal ou alucinógena de
nosso ramerrão normal e de nossas situações comuns – é sentido aqui como perda,
como “irrealidade”.
O que desejo sublinhar, contudo, é
precisamente o modo pelo qual o significane isolado se torna sempre mais
material – ou, melhor ainda literal -, sempre mas vívido em termos
sensórios, quer a nossa experiência seja atraente quer atemorizante. A mesma
coisa pode ser demonstrada no domínio da linguagem: o que o distúrbio
esquizofrênico da linguagem faz a cada palavra remanescente é reorientar o
sujeito ou o falante a dirigir uma atenção ainda mais literalizante para cada
uma delas. Ao passado que, na fala normal, procuramos penetrar a materialidade
das palavras (suas estranhas sonoridades, sua aparência impressa, meu timbre de
voz e especial acento, e assim por diante) em direção ao seu sentido.
Ultrapassado o sentido, a materialidade das palavras se torna obsessiva, como
ocorre quando crianças repetem sem cessar uma mesma palavra até seu sentido
desaparecer e ela adquirir um fascínio ininteligível. Para retomar nossa
descrição anterior – um significante que perdeu seu significado se transforma
com isso em imagem.
Esta longa digressão sobre
esquizofrenia nos permite acrescentar agora um dado que não podia ser tratado
em nossa exposição anterior – a saber, a própria temporalidade. Para tanto,
devemos desviar nossa discussão da pós-modernidade das rtes visuais para as
artes temporais – para música, poesia e certas modalidades de textos narrativos
como os de Beckett. Alguém que já ouviu a música de John Cage pode
perfeitametne ter vivenciado uma experiência similar àquelas que acabamos de
evocar: frustração e desespero – a audição de um único acorde ou nota seguidos
de um silêncio tão longo que a memória não pode mais reter aquilo que acabou de
ouvir; enfim, um silêncio condenado ao esquecimento a cada novo e estranho
presente sonoro, o qual também vai desaparecer. Esta experiência podia ser
ilustrada com muitos tipos de produção cultural contemporânea. Selecionei um
texto de um poeta mais jovem, em parte porque seu !grupo” ou “escola”,
conhecido como Poetas da Linguagem, tem feito experimentos de várias naturezas
com a descontinuidade temporal (aqui descrita em termos da linguagem
esquizofrênica), o que é fundamental tanto para sua experimentação lingüística
quanto para aquilo que eles gostam de chamar “Frase Nova”. É um poema de Bob
Perelman intitulado “China” (incluído na sua recente antologia Primer ,
publicada por This Press, de Berkeley, Califórnia):
Vivemos no terceiro mundo a contar do
sol. Número três.
Ninguém manda em
nós.
As pessoas que nos ensinaram a contar
estavam sendo
muito bondosas.
Sempre é hora de cair fora.
Em caso de chuva, você tem ou não tem
o guarda-chuva.
O vento leva embora seu chapéu.
O sol também se levanta.
Preferia que as estrelas não nos
descrevessem uma
às outras, preferia
que a gente
fizesse isto por nossa conta.
Corra na frente de sua sombra.
Uma irmã eu aponta para o céu pelo
menos uma vez a
cada década é uma
boa irmã.
Paisagem motorizada.
O trem te leva aonde ele for.
Pontes no meio da água.
Gente se arrastando ao longo de
vastas áreas de
concreto,
caminhando para o
avião.
Não esqueça o estado em que o seus
sapatos e chapéu
ficarão quando você
não estiver por
perto.
Até as palavras flutuando no ar têm
sombras azuis.
Comemos se for gostoso.
As folhas caindo. Olhe as coisas ali.
Perceba o lance.
Sabe o que aconteceu? O que? Aprendi
a falar. Ótimo.
Uma pessoa com a cabeça cortada caiu
no choro.
Após cair, o que é que a boneca podia
fazer? Nada.
Vá dormir.
Você está demais de short. E a bandeira
Também está
demais.
Todo mundo vibrou com as explosões.
Hora de acordar.
Melhor é se acostumar aos sonhos.
Naturalmente é possível objetar que
isto não é uma escrita esquizofrênica no sentido clínico, parece inexato afirma
que estas frases sejam materialidades significantes pairando livremente, cujos
significados tenham evaporado. Realmente, existe aqui um sentido global. Na
verdade, na medida em que este é, de um jeito velado e estranho, um poema
político, parece mesmo captar algo da emoção da imensa e inacabada experiência
social da nova China, sem paralelo na história mundial: o surgimento
imprevisto, entre as duas superpotências, do “número três”; a novidade de um
mundo material completamente nov, produzido por seres humanos com pleno domínio
de seu próprio destino coletivo; a experiência marcante de uma coletividade
que, acima de tudo, se tornou um novo “sujeito da história” e que, após longa
sujeição ao feudalismo e ao imperialismo, fala em seu próprio nome, por si
mesma, pela primeira vez (“Sabe o que aconteceu?... Aprendi a falar”). Contudo,
tal significado paira sobre ou sob o texto. Não se consegue, creio, ler este
texto segundo qualquer uma das velhas categorias da Nova Crítica, nem encontrar
as complexas relações internas e texturas que caracterizavam o “universal
concreto” dos modernismos clássicos como o de Wallace Stevens.
A obra de Perelman ( e a Poesia da
Linguagem em geral) deve alguma coisa a Gertrude Stein e, além dela, a certos
aspectos de Flaubert. Assim, não é descabido neta altura introduzir uma velha
opinião de Sartre, sobre as frases flaubertianas, que comunica uma impressão
vívida do movimento de tais frases:
Sua frase cerca o objeto, agarra-o,
imobiliza-o e aniquila-o, enreda-se nele, transforma-se em pedra e petrifica-o
consigo mesma. É cega e surda, sem sangue, sem um sopro de vida; um silêncio
profundo a separa da frase seguinte; ela cai no vazio, eternamente, e arrasta
sua presa nessa queda infinita. Toda realidade, uma vez descrita, é riscada da
lista. (Jean-Paul Sartre, O que é Literatural?)
A descrição é hostil e a vivacidade
de Perelman é historicamente bem diversa da prática homicida de Flaubert. (Para
Mallarmé, observou Barthes há tempos, em chave semelhante, a frase, a palavra
são modos de assassinar o mundo exterior.) Ademais esta última exprime um pouco
do mistério de frases eu caem no vazio de um silêncio tão grande que,
momentaneamente, a gente se pergunta se alguma frase nova teria ainda condições
de aflorar para tomar o lugar das anteriores.
Passemos, no entanto, ao segredo
deste poema. É um pouco o Hiper-realismo que parecia um retorno à
representação, depois das abstrações anti-figuras do expressionismo Abstrato,
até que as pessoas começassem a se dar conta de que estas pinturas não são
exatamente realistas, porque o que elas representam não é o mundo exterior mas,
tão-somente, uma fotografia do mundo exterior ou, em outras palavras, uma
imagem deste mundo. Falsos realismos, eles são, na verdade, arte sobre arte,
imagens de imagens. No nosso caso, o objeto representado de fato não é, apesar
de tudo, a China: aconteceu a Perelman encontrar em uma papelaria de Chinatown
um livro de fotos, um livro cujas legendas e caracteres não passavam obviamente
de letra morta para ele (ou deveríamos dizer materialidades significantes?) As
frases do poema as suas legendas para tais fotos. Suas referências são
outras imagens, um outro texto, e a “unidade” do poema não existe absolutamente
no texto nas fora dele, na unidade fechada de um livro ausente.
Para concluir, devo agora tentar
caracterizar ligeiramente o relacionamento da produção cultural deste tipo com
a vida social nos Estados Unidos hoje. Chego o momento também de responder à
principal objeção a conceitos de pós-modernidade, como esse aqui esboçado: a
saber, que todos os traços que enumeramos não são de maneira alguma novos,
caracterizaram abundantemente a modernidade propriamente dita ou aquilo que
chamamos modernismo canônico. Afinal de contas, não é sabido o interesse de
Thomas Mann pelo pastiche, e não são certos capítulos de Ulysses a sua mais
cabal ilustração? Não mencionamos Flaubert, Mallarmé e Gertrude Stein neste
balanço da experiência da temporalidade pós-moderna: Afinal, o que é novo nisso
tudo: Precisaríamos realmente de um conceito de pós-modernidade?
Responder a esta pergunta é trazer
à tona toda uma discussão sobre periodização, sobre como um historiador
(literário ou não) postula uma ruptura radical entre dois períodos a partir de
certo momento distintos. Devo me limitar a sugerir que as rupturas radicais
entre períodos não envolvem em geral mudanças completas de conteúdo, mas
sobretudo a reestruturação de um certo número de elementos anteriormente
existentes: traços que, em período ou sistema anterior, era secundários se
tornam agora dominantes, e traços que eram dominantes se tornam, por sua vez,
secundários. Neste sentido, tudo o que foi descrito aqui é encontrável em
períodos anteriores e, de modo evidente, na própria modernidade: meu palpite é
que até o momento atual esses elementos não passavam de traços menores ou
secundários da arte moderna, marginais ao invés de centrais, e que passamos a
ter algo novo no instante em que eles se tornam os traços centrais da produção
cultural.
Posso, não obstante, apresentar
este argumento de forma mais concreta, voltando ao relacionamento entre
produção cultural e a generalidade da vida social. A modernidade clássica ou
mais antiga era uma arte do contra. Ela despontou dentro da sociedade comercial
da época dourada ao mesmo tempo com escândalo e insulto para o público burguês
– feia dissonante, boêmia, sexualmente chocante. Era objeto de zombaria (quando
a polícia não era requisitada para apreender os livros e fechar as exposições):
um insulto ao bom gosto e ao senso comum ou, como Freud ou Marcuse colocariam,
um provocador desafio aos princípios de realidade e desempenho reinantes na sociedade
burguesa do começo do século XX. A modernidade em geral não se dá nada bem com
os tabus morais vitorianos, nem com seu mobiliário carregado, tampouco com as
etiquetas da sociedade elegante. Quer dizer, seja qual for o conteúdo político
explícito do modernismo, este sempre foi, de um modo mais ou menos implícito,
perigoso, explosivo e subversivo em relação à ordem estabelecida.
Se, agora, voltarmos repentinamente
ao momento atual, podemos medir o enorme alcance das mudanças. Joyce e Picasso
não somente deixaram de ser esquisitos e repulsivos como se tornaram clássicos
e adquiriram agora para nós uma aparência de realistas. Ao passo que muito
pouca coisa restou da arte contemporânea, em forma ou conteúdo, que pareça
intolerável e escandaloso à sociedade de nosso tempo. As formas mais agressivas
desta arte – punk rock, digamos, ou o chamado material sexual explícito
– são consumidas com voracidade pela sociedade e comercializadas com êxito, ao
contrário das produções da anterior modernidade. O que significa que, mesmo eu
a arte contemporânea ainda apresente os mesmos traços formais do antigo
modernismo, a sua posição dentro de nossa cultura está basicamente alterada.
Por um lado, a produção de mercadorias, em particular nosso vestuário,
mobiliário, moradia e outros artefatos, está agora intimamente associada às
mudanças do styling que decorreram da experimentação artística: nossa
propaganda, por exemplo, se alimenta da pós-modernidade em todas as artes e não
pode mais dispensá-la. Por outro lado, os clássicos da modernidade anterior são
agora parte do assim chamado cânon, e são ensinados em escolas e universidades
– o que, por sua vez, os esvazia de todo seu velho potencial subversivo. De
fato, um modo de marcar a ruptura entre os períodos e datar o surgimento da pós
modernidade pode se encontrar precisamente aí: na época (parece que início dos
anos 60) em que a posição do modernismo radical e sua estética dominante se
institucionalizaram na Universidade, quando passaram a ser considerados
acadêmicos por toda uma geração de poetas, pintores e músicos.
Pode-se também chegar à ruptura por
um outro caminho, para descrevê-la em termos de períodos da atual vida social.
Como venho sugerindo, marxistas e não-marxistas confluíram para um sentimento
comum de que a certa altura, após a II Guerra Mundial, uma nova espécie de
sociedade começava a se formar (variadamente descrita como sociedade
pós-industrial, capitalismo multinacional, sociedade de consumo, sociedade dos
mídia e assim por diante). Novos tipos de consumo, obsolescência programada, um
ritmo ainda mais rápido de mudanças na moda e no styling, a penetração
da propaganda, da televisão e dos meios de comunicação em grau até agora sem
precedentes e permeando a sociedade inteira, a substituição do velho conflito cidade
e campo, centro e província, pela terciarização e pela padronização universal,
o crescimento das grandes redes de auto-estradas e o advento da cultura do
automóvel – são vários dos traços que pareciam demarcar uma ruptura radical com
aquela sociedade antiquada de antes da guerra, na qual o modernismo era ainda
uma força clandestina.
Acredito que a emergência da
pós-modernidade está estritamente relacionada à emergência desta nova fase do
capitalismo avançado, multinacional e de consumo. Acredito também que seus
traços formais expressam de muitas maneiras a lógica mais profunda do próprio
sistema social. No entanto, vou limitar-me a indicar esta relação a propósito
de um só de seus temas capitais: o desaparecimento do sentido da história, o
modo pelo qual o sistema social contemporâneo como um todo demonstra que
começou, pouco a pouco, a perder a sua capacidade de preservar o próprio
passado e começou a viver em um presente perpétuo, em uma perpétua mudança que
apaga aquelas tradições que as formações sociais anteriores, de uma maneira ou
de outra, tiveram de preservar. Basta mencionar a saturação informacional
gerada pelos meios de comunicação: como Nixon e, ainda mais, Kennedy, são
figuras de um passado agora distante. Sinto-me tentado a afirmar que a própria
função dos meios de comunicação é de relegar ao passado tais experiências
históricas recentes, isto o mais rapidamente possível. A função informativa dos
meios seria, desse modo, a de ajudar a esquecer, a de servir de verdadeiro
instrumento e agente de nossa amnésia histórica.
Neste caso, os dois traços da
pós-modernidade sobre os quais muito me alonguei – a transformação da realidade
em imagens, a fragmentação do tempo em uma série de presentes perpétuos – são
ambos extraordinariamente consentâneos com este processo. Minha conclusão aqui
deve tomar a forma de uma pergunta sobre o valor crítico da novíssima arte. Há
uma certa concordância de que a modernidade velha funcionou em oposição à
sociedade, de modos variadamente descritos como negativo, crítico, contestante,
subversivo, oposicionista etc. Pode-se dizer algo no gênero sobre a
pós-modernidade e a sua situação social? Vimos que existe um modo pelo qual a
pós-modernidade repercute e reproduz – reiterando a lógica do capitalismo da
sociedade de consumo. A questão mais importante é saber se também existe uma
forma de resistência a essa lógica. Tal questão devemos, todavia, deixar em
aberto.
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Fredric Jameson é professor na Universidade da Califórnia,
Santa Cruz, junto ao Programa de História da Consciência. Autor de vários
livros, entre os quais Marxismo e Forma (1971, tradução brasileira no
prelo da Editora Hucitec); coeditor da revista Social text.
__________________________________________________
Novos Estudos CEBRAP, São
Paulo, nº 12, pp.16-26, jun.85
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