LITERATURA BRASILEIRA
Uma carta, de Machado de Assis
Edição de referência: Contos completos de Machado de Assis
Publicado originalmente em A Estação 1884
Celestina acabando de almoçar voltou à alcova e indo casualmente à cesta de costura
achou uma cartinha de papel bordado. Não tinha sobrescrito mas estava aberta.
Celestina depois de hesitar um pouco desdobrou-a e leu:
Meu anjo adorado
Perdoe-me esta audácia mas não posso mais resistir ao desejo de lhe abrir o meu
coração e dizer que a adoro com todas as forças da minha alma. Mais de uma vez tenho
passado pela rua sem que a senhora me dê a esmola de um olhar e há muito tempo que
suspiro por lhe dizer isto e pedir-lhe que me faça o ente mais feliz do mundo. Se não me
ama como eu a amo creia que morrerei de desgosto. Os seus olhos lindos como as
estrelas do céu são para mim as luzes da existência e os seus lábios semelhantes às
pétalas da rosa têm toda a frescura de um jardim de Deus...
Não copio o resto; era longa a carta e no mesmo estilo composto de trivialidade e
imaginação. Apesar de longa Celestina leu-a duas vezes e em alguns lugares três e
quatro; naturalmente eram os que falavam da beleza dela dos olhos dos lábios dos
cabelos das mãos. Estas pegavam trêmulas na carta tão comovida ficara a dona tão
assombrada de um tal achado. Quem poria ali a carta? Provavelmente a escrava — a
única escrava da casa peitada pelo autor. E quem seria este? Celestina não tinha a
menor lembrança que pudesse ligar ao autor da carta; mas como ele dizia que ela
mesma não lhe dera a esmola de um olhar estava explicado o caso e só restava agora
reparar bem nos homens da rua;
Celestina foi ao espelho e lançou um olhar complacente sobre si. Não era bonita mas a
carta deu-lhe uma alta idéia de suas graças. Contava então trinta e nove anos parece
mesmo que mais um; mas este ponto não está averiguado de modo que possa entrar na
história. Era simples opinião da mãe; esta senhora porém contando sessenta e quatro
anos podia confundir as coisas. Em todo o caso qualquer que fosse o exato número a
própria dona dos anos não os discutiu e limitava-se a parecer bem. Não parecia mal nem
fazia má figura todas as tardes à janela.
Esquecia-me dizer que isto acontecia aqui mesmo no Rio de Janeiro entre 1860 e 1862.
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Celestina era filha de um antigo comerciante que morreu pobre tendo apenas feito para
a família um pequeno pecúlio. Era dele que esta vivia e mais de algumas costuras para
fora.
A idéia de casar entrou na cabeça de Celestina desde os treze anos e ali se conservou
até os trinta e sete pode ser mesmo que até os trinta e oito; mas ultimamente ela a
perdera de todo e só se enfeitava para não desafiar o destino. Solteirona e pobre não
contava que ninguém se enamorasse dela. Era boa e laboriosa e isto podia compensar o
resto; mas ainda assim não lhe dava esperanças.
Foi neste ponto da vida que Celestina deu com a carta na cesta de costura. Compreende-
se o alvoroço do pobre coração. Afinal recebia o prêmio da demora; aí aparecia um
namorado por seu próprio pé sem ela dar por ele e dispunha-se a fazê-la feliz.
Já vimos que ela atribuía à escrava da casa a intervenção naquele negócio e o primeiro
impulso foi ir ter com ela; mas recuou. Era difícil tratar diretamente um tal assunto não
estando nos seus quinze anos estouvados que tudo explicassem; era arriscar a
autoridade. Mas por outro lado se se calasse arriscava o namorado que não tendo
resposta poderia desesperar e ir embora. Celestina vacilou muito no que faria até que
resolveu consultar a irmã. A irmã Joaninha tinha vinte anos e era pessoa de muita
gravidade; podia dar-lhe um conselho.
— O quê? Não ouço.
— Queria consultar você sobre uma coisa.
— Que coisa? Você hoje está assim esquisita tão alegre e tão acanhada. Que é que
você quer Titina? Diga. Já adivinhei.
— O que é?
— É sobre aquele vestido da baronesa.
Celestina fez um gesto de desgosto e ia negar mas não conseguindo abrir-se com a
irmã preferiu mentir e foi buscar o vestido. Na verdade podia ser mãe dela viu-a nascer
ajudou-a a criar. Nunca entre ambas trocaram nenhuma confidência de namoro; e não é
que ambas os não tivessem tido. Mas as relações eram de respeito e discrição.
Não sabendo como sair da dificuldade Celestina adotou um plano intermédio; procuraria
primeiro descobrir a pessoa que lhe mandara a carta e se a merecesse como era de
supor à vista da linguagem da carta abrir-se-ia com a escrava e depois com a irmã.
Nessa mesma tarde ela foi mais cedo para a janela e mais enfeitada esteve menos
distraída com outras coisas. Não tirou os olhos da rua abaixo e acima; não apontava
rapaz ao longe que não o seguisse com curiosidade inquieta e esperançosa. Joaninha
ao pé dela notava que a irmã não estava como de costume; e pode ser mesmo que lhe
atribuísse algum princípio de namoro. A mãe é que não via nada. Sentada na outra janela
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(era uma casa assobradada) ora cochilava ora perguntava às filhas quem era que ia
passando.
— Celestina aquele não é o dr. Norberto?
— Joaninha parece que lá vai a família do Alvarenga.
Perto das ave-marias viu Celestina surdir da esquina um rapaz que tão depressa
entrara na rua pôs os olhos na casa.
Passou pelo lado oposto lento evidentemente abalado olhando ora para o chão ora
para a janela. Foi até o fim da rua atravessou-a e voltou pelo lado da casa. Já então era
um pouco escuro não tanto porém que encobrisse a gentileza do rapaz que era
positivamente um rapagão.
Celestina ficou realmente fora de si. A irmã não viu o que era mas concluiu que alguém
teria passado na rua que enchera a alma de Celestina de uma vida desusada. Com
efeito durante a noite esteve ela como nunca alegre e ao mesmo tempo pensativa
esquecendo-se de si e dos outros. Quase que não quis tomar chá e só a muito custo se
recolheu para dormir.
“ pensou Joaninha ao deitar-se.
Celestina recolhida ao quarto meteu-se na cama e releu a carta do rapaz lentamente
saboreando as palavras de amor e os elogios à beleza dela. Interrompia a leitura para
pensar nele vê-lo surdir de uma esquina ir pela rua fora do lado oposto e tornar depois
do lado dela. Via-lhe os olhos o andar a figura... Depois tornava à carta e beijava-a
muitas vezes e numa delas sentiu a pálpebra molhada. Não se vexou da lágrima; era
das que se confessam. Quando cansou de ler a carta meteu-a debaixo do travesseiro e
dispôs-se a dormir.
Mas qual dormir! Fechava os olhos mas o sono andava pelas casas dos indiferentes não
queria nada com uma pessoa em quem as esperanças mortas reviviam com o vigor da
adolescência. Celestina recorria a todos os estratagemas para dormir; mas o rapaz da
carta fincava-lhe os olhos ardentes e ia de um lado para outro; não tinha mais que
contemplá-lo. Não era ele o namorado o apaixonado o noivo próximo? Que ela planeara
tudo: no dia seguinte escreveria uma resposta ao rapaz e dá-la-ia à escrava para que a
entregasse. Estava disposta a não perder tempo.
Era meia-noite quando Celestina conseguiu adormecer; e antes o fizesse há mais tempo
porque sonhou ainda com o rapaz e não perdeu nada.
Sonhou que ele tornara a passar recebera a resposta e escrevera de novo. No fim de
alguns dias pediu-lhe autorização para solicitar a sua mão. Viu-se logo casada. Foi uma
festa brilhante concorrida à qual todas as pessoas amigas foram cerca de dezoito
carros. Nada mais lindo que o vestido dela de cetim branco um ramalhete de flores de
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laranjeira ao peito algumas outras nos apanhados da saia. A grinalda era lindíssima.
Toda a vizinhança nas janelas. Na rua gente na igreja muita gente e ela entrando por
meio de alas ao lado da madrinha... Quem seria a madrinha? D. Mariana Pinto ou a
baronesa? A baronesa... A mãe talvez quisesse D. Mariana mas a baronesa... Em
sonhos mesmo discutiu isso interrompendo a entrada triunfal no templo.
O padrinho do noiva era o próprio ministro da Justiça que ia ao lado dele fardado
condecorado brilhante e que no fim da cerimônia veio cumprimentá-la com grande
atenção. Celestina estava cheia de si a mãe também a irmã também e ela prometia a
esta um casamento igual.
— Daqui a três meses você está também casada dizia-lhe ao receber dela os parabéns.
Muitas rosas desfolhadas sobre ela. Eram caídas da tribuna. O noivo deu-lhe o braço e
ela saiu como se fosse entrando no céu. Os curiosos eram agora em maior número.
Gente e mais gente. Chegam os carros; lacaios aprumados abrem as portinholas. Lá vai
depois o cortejo devagar e brilhante todos aqueles cavalos brancos pisando o chão com
uma gravidade fidalga. E ela ela tão feliz! ao lado do noivo!
A fada branca dos sonhos continuou assim a fazer surdir do nada uma porção de coisas
belas. Celestina descobriu no fim de uma semana de casada que o marido era príncipe.
Celestina princesa! A prova é que aqui está um palácio e todas as portas louça
cadeiras coches tudo tem armas principescas no escudo uma águia ou leão um animal
qualquer mas soberano.
— Vossa Alteza se quiser...
— Rogo a Vossa Alteza.
— Perdão Alteza...
E tudo assim até quase de manhã. Antes do sol acordou esteve alguns minutos esperta
mas tornou a dormir para continuar o sonho que então já não era de príncipe. O marido
era um grande poeta viviam ao pé de um lago ao pôr-do-sol cisnes nadando um
princípio da lua e a felicidade entre eles. Foi esta a última fase do delírio.
Celestina acordou tarde; ergueu-se ainda com o sabor das coisas imaginadas e o
pensamento no namorado noivo próximo. Embebida na imagem dele foi às suas
abluções matinais. A escrava entrou-lhe na alcova.
— Nhã Titina...
— Que é?
A preta hesitou.
— Fala fala.
— Nhã Titina achou na sua cesta uma carta?
— Achei.
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— Vosmecê me perdoe mas a carta era para nhã Joaninha...
Celestina empalideceu. Quando a preta a deixou só Celestina deixou cair uma lágrima —
e foi a última que o amor lhe arrancou.
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