sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Uma Carta de Machado de Assis


 LITERATURA BRASILEIRA

                                              Uma carta, de Machado de Assis

                    Edição de referência: Contos completos de Machado de Assis

                                           Publicado originalmente em A Estação 1884

Celestina acabando de almoçar  voltou à alcova  e  indo casualmente à cesta de costura  

achou  uma  cartinha   de   papel  bordado.  Não   tinha   sobrescrito    mas   estava   aberta.

Celestina  depois de hesitar um pouco  desdobrou-a e leu:

Meu anjo adorado

Perdoe-me  esta  audácia   mas  não  posso  mais  resistir  ao  desejo  de  lhe  abrir  o  meu

coração e dizer que a adoro com todas as forças da minha alma. Mais de uma vez tenho

passado pela rua  sem que a senhora me dê a esmola de um olhar  e há muito tempo que

suspiro por lhe dizer isto e pedir-lhe que me faça o ente mais feliz do mundo. Se não me

ama  como eu a amo  creia que  morrerei de desgosto. Os seus olhos  lindos como as

estrelas do céu são para mim as luzes da existência  e os seus lábios  semelhantes às

pétalas da rosa  têm toda a frescura de um jardim de Deus...

Não  copio  o  resto;  era  longa  a  carta   e  no  mesmo  estilo  composto  de  trivialidade  e

imaginação. Apesar de longa  Celestina leu-a duas vezes  e  em alguns lugares  três e

quatro;  naturalmente eram os que falavam da  beleza dela  dos olhos  dos  lábios  dos

cabelos  das  mãos.  Estas  pegavam trêmulas  na carta  tão comovida ficara a dona  tão

assombrada de um tal achado. Quem poria ali a carta?  Provavelmente  a escrava — a

única escrava da casa   peitada  pelo autor.  E quem seria este?  Celestina  não tinha  a

menor  lembrança  que  pudesse  ligar  ao  autor  da  carta;  mas   como  ele  dizia  que  ela

mesma não lhe dera a esmola de um olhar  estava explicado o caso  e só restava agora

reparar bem nos homens da rua;

Celestina foi ao espelho  e lançou um olhar complacente sobre si. Não era bonita  mas a

carta deu-lhe uma alta  idéia de suas graças. Contava então trinta e nove anos   parece

mesmo que mais um; mas este ponto não está averiguado de modo que possa entrar na

história. Era simples opinião da mãe; esta senhora  porém  contando sessenta e quatro

anos  podia confundir as coisas. Em todo o caso  qualquer que fosse o exato número  a

própria dona dos anos não os discutiu  e limitava-se a parecer bem. Não parecia mal  nem

fazia má figura  todas as tardes  à janela.

Esquecia-me dizer que isto acontecia aqui mesmo  no Rio de Janeiro  entre 1860 e 1862.

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Celestina era filha de um antigo comerciante  que morreu pobre  tendo apenas feito para

a família um pequeno pecúlio. Era dele que esta vivia e mais de algumas costuras para

fora.

A idéia de casar entrou na cabeça de Celestina  desde os treze anos  e ali se conservou

até os trinta e sete   pode ser  mesmo que até os trinta e oito;  mas  ultimamente ela a

perdera de todo  e só se enfeitava para não desafiar o destino. Solteirona e pobre  não

contava que ninguém se enamorasse dela. Era boa e laboriosa  e isto podia compensar o

resto; mas ainda assim não lhe dava esperanças.

Foi neste ponto da vida que Celestina deu com a carta na cesta de costura. Compreende-

se  o alvoroço  do  pobre  coração. Afinal   recebia  o  prêmio  da demora;  aí aparecia  um

namorado  por seu próprio pé  sem ela dar por ele  e dispunha-se a fazê-la feliz.

Já vimos que ela atribuía à escrava da casa a intervenção naquele negócio  e o primeiro

impulso foi ir ter com ela; mas recuou. Era difícil tratar diretamente um tal assunto  não

estando   nos   seus   quinze   anos   estouvados   que   tudo   explicassem;   era   arriscar   a

autoridade.  Mas   por outro  lado  se se calasse  arriscava o  namorado  que   não tendo

resposta  poderia desesperar e ir embora. Celestina vacilou muito no que faria  até que

resolveu  consultar  a  irmã. A  irmã  Joaninha  tinha vinte  anos  e  era  pessoa  de  muita

gravidade; podia dar-lhe um conselho.

— O quê? Não ouço.

— Queria consultar você sobre uma coisa.

— Que coisa? Você  hoje está assim esquisita  tão alegre  e tão acanhada. Que é que

você quer  Titina? Diga. Já adivinhei.

— O que é?

— É sobre aquele vestido da baronesa.

Celestina fez um gesto de desgosto  e  ia  negar   mas  não conseguindo abrir-se com a

irmã  preferiu mentir  e foi buscar o vestido. Na verdade  podia ser mãe dela  viu-a nascer  

ajudou-a a criar. Nunca entre ambas trocaram nenhuma confidência de namoro; e não é

que ambas os não tivessem tido. Mas as relações eram de respeito e discrição.

Não sabendo como sair da dificuldade  Celestina adotou um plano intermédio; procuraria

primeiro descobrir a  pessoa que lhe  mandara a carta  e se a merecesse  como era de

supor  à vista da  linguagem da carta  abrir-se-ia com a escrava  e depois com a  irmã.

Nessa  mesma tarde  ela foi  mais cedo  para a janela  e  mais enfeitada  esteve  menos

distraída com outras coisas.  Não tirou os olhos da  rua  abaixo e acima;  não apontava

rapaz ao longe  que não o seguisse com curiosidade inquieta e esperançosa. Joaninha  

ao pé dela  notava que a irmã não estava como de costume; e pode ser mesmo que lhe

atribuísse algum princípio de namoro. A mãe é que não via nada. Sentada na outra janela

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(era  uma casa assobradada)  ora cochilava  ora  perguntava às filhas quem era que  ia

passando.

— Celestina  aquele não é o dr. Norberto?

— Joaninha  parece que lá vai a família do Alvarenga.

Perto  das  ave-marias   viu  Celestina  surdir  da  esquina  um  rapaz   que   tão  depressa

entrara na rua  pôs os olhos na casa.

Passou  pelo  lado oposto   lento  evidentemente abalado  olhando ora  para o chão  ora

para a janela. Foi até o fim da rua  atravessou-a  e voltou pelo lado da casa. Já então era

um  pouco  escuro   não  tanto   porém   que  encobrisse  a  gentileza  do  rapaz   que  era

positivamente um rapagão.

Celestina ficou realmente fora de si. A irmã não viu o que era  mas concluiu que alguém

teria  passado  na  rua  que  enchera  a alma de  Celestina  de  uma vida  desusada.  Com

efeito  durante a  noite  esteve ela como  nunca  alegre  e ao  mesmo tempo  pensativa  

esquecendo-se de si e dos outros. Quase que não quis tomar chá  e só a muito custo se

recolheu para dormir.

“ pensou Joaninha ao deitar-se.

Celestina  recolhida ao quarto  meteu-se na cama  e releu a carta do rapaz  lentamente  

saboreando as palavras de amor  e os elogios à beleza dela.  Interrompia a leitura  para

pensar nele  vê-lo surdir de uma esquina  ir pela rua fora do lado oposto  e tornar depois

do  lado dela. Via-lhe os olhos  o andar  a figura...  Depois tornava à carta  e  beijava-a

muitas vezes  e numa delas  sentiu a pálpebra molhada.  Não se vexou da lágrima; era

das que se confessam. Quando cansou de ler a carta  meteu-a debaixo do travesseiro  e

dispôs-se a dormir.

Mas qual dormir! Fechava os olhos  mas o sono andava pelas casas dos indiferentes  não

queria nada com uma pessoa em quem as esperanças mortas reviviam com o vigor da

adolescência. Celestina  recorria a todos os estratagemas  para dormir;  mas o  rapaz da

carta fincava-lhe  os  olhos  ardentes   e  ia  de  um  lado  para  outro;  não tinha  mais  que

contemplá-lo. Não era ele o namorado  o apaixonado  o noivo próximo? Que ela planeara

tudo: no dia seguinte escreveria uma resposta ao rapaz  e dá-la-ia à escrava  para que a

entregasse. Estava disposta a não perder tempo.

Era meia-noite  quando Celestina conseguiu adormecer; e antes o fizesse há mais tempo  

porque sonhou ainda com o rapaz  e não perdeu nada.

Sonhou que ele tornara a  passar  recebera a resposta e escrevera de novo.  No fim de

alguns dias  pediu-lhe autorização para solicitar a sua mão. Viu-se logo casada. Foi uma

festa  brilhante   concorrida   à  qual  todas  as  pessoas  amigas  foram   cerca  de  dezoito

carros. Nada mais lindo que o vestido dela  de cetim branco  um ramalhete de flores de

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laranjeira  ao  peito  algumas outras  nos apanhados da saia. A grinalda era  lindíssima.

Toda a vizinhança nas janelas. Na rua gente  na igreja muita gente  e ela entrando por

meio de alas  ao  lado da  madrinha... Quem seria a  madrinha?  D.  Mariana  Pinto ou a

baronesa?  A   baronesa...  A   mãe  talvez  quisesse  D.  Mariana   mas  a  baronesa...  Em

sonhos mesmo discutiu isso  interrompendo a entrada triunfal no templo.

O  padrinho  do  noiva  era  o  próprio  ministro  da  Justiça   que  ia  ao  lado  dele  fardado  

condecorado   brilhante   e  que   no fim  da  cerimônia  veio  cumprimentá-la  com  grande

atenção. Celestina estava cheia de si  a mãe também  a irmã também  e ela prometia a

esta um casamento igual.

— Daqui a três meses  você está também casada  dizia-lhe ao receber dela os parabéns.

Muitas rosas desfolhadas sobre ela. Eram caídas da tribuna. O noivo deu-lhe o braço  e

ela saiu  como se fosse  entrando  no  céu.  Os  curiosos eram  agora em  maior  número.

Gente e mais gente. Chegam os carros; lacaios aprumados abrem as portinholas. Lá vai

depois o cortejo devagar e brilhante  todos aqueles cavalos brancos pisando o chão com

uma gravidade fidalga. E ela  ela  tão feliz! ao lado do noivo!

A fada branca dos sonhos continuou assim a fazer surdir do nada uma porção de coisas

belas. Celestina descobriu  no fim de uma semana de casada  que o marido era príncipe.

Celestina  princesa!  A   prova   é  que  aqui  está  um  palácio   e  todas  as  portas   louça  

cadeiras  coches  tudo tem armas principescas  no escudo  uma águia ou leão  um animal

qualquer  mas soberano.

— Vossa Alteza se quiser...

— Rogo a Vossa Alteza.

— Perdão  Alteza...

E tudo assim  até quase de manhã. Antes do sol acordou  esteve alguns minutos esperta  

mas tornou a dormir para continuar o sonho  que então já não era de príncipe. O marido

era  um  grande  poeta  viviam  ao  pé  de  um  lago   ao  pôr-do-sol   cisnes  nadando   um

princípio da lua  e a felicidade entre eles. Foi esta a última fase do delírio.

Celestina  acordou  tarde;  ergueu-se  ainda  com  o  sabor  das  coisas  imaginadas   e  o

pensamento   no   namorado    noivo   próximo.  Embebida   na   imagem  dele   foi  às   suas

abluções matinais. A escrava entrou-lhe na alcova.

— Nhã Titina...

— Que é?

A preta hesitou.

— Fala  fala.

— Nhã Titina achou na sua cesta uma carta?

— Achei.

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— Vosmecê me perdoe  mas a carta era para nhã Joaninha...

Celestina empalideceu. Quando a preta a deixou só  Celestina deixou cair uma lágrima —

e foi a última que o amor lhe arrancou.

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